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2.1 A MAÇÃ ENVENENADA: GESTOS DE AUTOR, CORPO E OBRA ENTRE HERBERTO HELDER E KURT COBAIN

2.2.4 Historiografias suicidas

Como enxergar dentro desses paradigmas moventes a obra do Nirvana? Certamente, Kurt Cobain não foi um poeta que não produziu ou que se recusou a publicar. Sua obra, por ora, entendida somente como aquela decididamente lançada por ele, começa em 1989, com Bleach [Alvejante], álbum distribuído por uma gravadora independente, a SubPop. Porém, a partir de 1991, com Nevermind, o desígnio de Cobain não era outro senão tornar-se líder da maior banda de rock do mundo. O outro único disco de estúdio pós-fama é In Utero, de 1993. Dele, esperava-se a continuidade do sucesso comercial de Nevermind. O que se recebeu foi um trabalho mais cru, focado nas poeticidades do corpo humano (representações verbais e imagéticas relacionadas aos membros corporais, aos sentidos e a tantas outras questões: cheiros, tatos, órgãos, excrementos, fetos e úteros que permeiam o álbum e as produções associadas a ele) e menos pronto para o consumo pop.

Entre eles e antes deles, houve singles e um disco coletâneo de canções anteriormente lançadas em lado B, Incesticide, de 1992. Entre eles, também, inúmeros registros de performances ao vivo, feitas por fãs ou por gravadoras e emissoras, como a MTV. Por falar nesta, também vários clipes foram realizados pelo Nirvana e veiculados na então popularíssima emissora, incluindo o sucesso Smells like teeen spirit (BAYER, 1991).

Além disso, a produção pessoal de Cobain extrapolava o Nirvana. Ele produzia diários, ininterruptamente, produzia filmes caseiros com tramas bizarras e trabalhava também com artes plásticas (sua forma de expressão predileta na infância) em pinturas, colagens e instalações, como se pode ver, por exemplo, na contracapa de In Utero (1993) – dentre outros materiais gráficos do Nirvana – de montagem sua. 106

Houve também o MTV Unplugged in New York, apenas o segundo registro em vídeo da banda divulgado amplamente, após a morte de Cobain. O acústico, que trazia uma montagem cênica para sempre lembrado como fúnebre, também por efeito da morte do cantor, foi gravado na emissora no fim do ano de 1993, mas veio a público como lançamento de unidades comercializáveis em áudio e vídeo apenas em 1994, post-mortem.

O que religa a imagem de Kurt Cobain ao fenômeno descrito anteriormente nas figuras de Fernando Pessoa e do baú pessoano, mencionadas no início desta seção de “Historiografias Suicidas”, é o fato de esses registros de performances, bem como outros registros de performances ao vivo e em estúdio, nunca foram lançados por Cobain. Quer dizer, essas obras

não foram lançados por ele em vida, não durante a vida do compositor do Nirvana, que se matou em 5 de abril de 1994.

Sua morte gera imediatamente um arquivo de morte, como se junto ao disparo da Remington que estraçalhou seu rosto, fossem dissipados também automaticamente uma miríade de outros documentos, tanto no âmbito pragmático das respostas imediatas ao suicídio, por parte da família, dos amigos, da polícia, da mídia e dos fãs, como no âmbito artístico, relativo à significação de sua obra e do próprio termo obra. Além disso, convém pensar como significaremos o gesto do suicídio se pudermos aqui também confundir-nos com o binômio-rasura da performance, entre vida e obra.

Eis como o biógrafo Charles R. Cross reconstrói os últimos momentos de Cobain em Mais pesado que o céu – a citação é longa, mas necessária. A tradução é de Cid Knipel:

Na cozinha, ele abriu a porta de sua geladeira Traulson de aço inoxidável de 10 mil dólares e apanhou uma lata de cerveja de raízes da Barq [sic], tomando cuidado para não soltar a espingarda. Levando essa carga impensável –cerveja de raízes [sic], toalhas, uma caixa de heroína e uma espingarda, tudo o que mais tarde seria encontrado num arranjo bizarro – ele abriu a porta para o quintal e atravessou o pequeno pátio. A aurora estava rompendo e a neblina pairava próximo ao chão [...] Ele trilhou os vinte passos até a estufa, galgou os degraus de madeira e abriu o conjunto de portas francesas dos fundos. O piso era de linóleo: seria fácil de limpar. [...] Como um diretor de filmes, ele havia planejado este momento até os mínimos detalhes, ensaiando esta cena ao mesmo tempo como diretor e como ator. [...] Ficou sentado pensando nessas coisas por vários minutos. Fumou cinco Camel Light. Sorveu vários goles de sua cerveja de raízes. Tirou o bilhete do bolso. Ainda havia um pequeno espaço nele. Ele o estendeu no chão de linóleo. [...] Conseguiu rabiscar mais algumas palavras [...] Depositou o bilhete no alto de um monte de terra para vasos e fincou a caneta no meio, para que, como uma estaca, segurasse o papel no alto, sobre a terra.

Tirou a espingarda da capa de náilon macia. Dobrou cuidadosamente a capa [...] Tirou a jaqueta, estendeu-a sobre a capa e colocou as duas toalhas no alto desse monte. Ah, empatia, um presente delicado. Ele foi até a pia e apanhou uma pequena quantidade de água para o fogareiro de droga e sentou-se novamente. Abriu a caixa com 25 cartuchos de espingarda e tirou três, enfiando-os na câmara da arma. Moveu o mecanismo da Remington para que um único cartucho estivesse na câmara. Retirou a trava de segurança da arma.

Fumou seu último Camel Light. Tomou mais um gole da Barq. Lá fora, estava começando um dia nublado [...]

Ele agarrou a caixa de charutos e tirou um pequeno saco plástico que continha cem dólares de heroína preta mexicana [...] Ele pegou metade, um chumaço do tamanho de uma borracha de lápis e o colocou na colher. Sistemática e habilmente, preparou a heroína e a seringa, injetando-a logo acima do cotovelo [...] Devolveu os instrumentos para a caixa [...] Afastou para o lado seus instrumentos, flutuando cada vez mais rápido, sentindo sua

respiração reduzir. Ele tinha de se apressar agora: tudo estava se tornando nebuloso e um matiz de verde-água enquadrava cada objeto. Agarrou a pesada espingarda, encostou o cano contra o céu da boca. Faria barulho; ele tinha certeza disso. E então ele se foi. (CROSS, 2002, p. 404-407).

Há muito de mitificação na descrição de Cross. O mesmo autor também publicou, mais tarde, Kurt Cobain: a criação do mito (2014). Ironicamente, esse é um mito para o qual Cross grandemente contribuiu, afinal essa não é a cena tal como ela aconteceu, mas tal como Cross imaginou a sua reconstituição. Retirei muitas conjecturas e poeticidades do texto fonte. O que resta na citação acima é o modo quase mecânico das descrições, que remetem ao ato de reconstrução, como seria no caso da reconstituição de um crime, em tom policialesco. Elas denunciam também o caráter programático do ato, ensaiado nos mínimos detalhes. Parte ritual, parte registro. O rito executado repetidamente em diferença ou o ensaio, o gesto ensaiado, tão próprio da arte cênica, mas próprio também do junkie [usuário de drogas] que reencena ou executa vez após vez seu ato religioso, na forma da preparação e da injeção da heroína. Rito e mito se unem para produzir um gesto do âmbito do religioso, uma cena pela qual uma legião de fãs que leu a obra de Cross reimaginaria ou imaginaria presenciar o suicídio de Cobain. Tão popular se tornou a publicação que muitos relatos imaginativos de Cross são percebidos como versões fidedignas dos fatos.107 Porém, qual seria a religião, no caso do suicídio? Qual seria o componente mítico?

A questão é complexa e não nos propomos a finalizá-la. Satisfaz dizer, por enquanto, de modo estrito e excludente, que o mito é a eternidade do nome autoral para além da comunidade, mas também em seus laços mortais com a comunidade, restante dentro e fora dela, cidadão e expurgo expiatório. E nesse sentido, o rito suicida é uma profecia autorrealizável, o cumprimento da produção de uma imagem que, retroativamente, constrói o sujeito poético e (re)significa a sua obra.108

Michel Laub, afinal, escreve nas linhas iniciais de seu romance, cuja temática é também o cantor do Nirvana: “Um suicídio muda tudo que seu autor disse, cantou ou escreveu” (LAUB, 2013, p. 7). Assim, e se levarmos em consideração os argumentos estabelecidos até aqui, torna-se complicado perceber o gesto suicida de Cobain como

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True (2006) aponta inconsistências, por exemplo, no que seria, segundo Cross, a primeira overdose de Cobain, às vésperas da primeira apresentação do Nirvana no Saturday Night Live. True atesta, porém, que a cena se torna tão poderosa no relato de Cross (e tão simbólica da figura de Cobain, por associar o estrelato à dissolução das drogas) que é quase irrelevante que seja verdade ou não: a criação ganha força própria.

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Obviamente não estou afirmando que Kurt Cobain se matou por uma decisão consciente para se eternizar. Apenas ele poderia ter afirmado isso. Todavia, esse foi potencialmente um efeito resultante do ato “heroico” autoinflingido – phamakós.

performance ágrafa, quando percebemos que o próprio relato de Cross só é possível graças àquela performance solitária, naquele recôndito cômodo inicial, sim, mas também graças à grafada posição de autoridade que aquele corpo ocupava no momento histórico do gesto suicida. O gesto de Cobain, naquele instante, (não) é silencioso, mas desencadeia um barulho enorme, como ele mesmo previra.

Por outro lado, o gesto daquele 5 de abril envolve corpo-espaço-tempo (público? cena?) numa subversão efetiva e simbólica, caracterizando, talvez, uma verdadeira performance. Portanto, não se esgota ali, pois o trabalho da performance parece sempre se dar num âmbito mais amplo de encadeamento coletivo, embora possivelmente inconsciente, mnemônico. Imaginaríamos estar lá assistindo Cobain mais uma vez, seu público? Ele nos imaginava? 109

Essa interseção entre privacidade e performance parece ser um desdobramento contemporâneo do ato estético-político que reinsere o artista em seu corpo e rasura a ideia da “morte do autor”, traduzindo-o de volta para a primeira pessoa. Veja-se, por exemplo, as performances da francesa Sophie Calle; uma em especial deve ser destacada: Douleur Exquise [Dor requintada], de 2003. A performance é constituída pela relato e os registros dos dias que precederam e sucederam o término de um namoro da artista. À primeira vista, é um tema que interessa somente a ela e que se deu, em performance, na privacidade de seu tempo particular. São fotografias, anotações, cartas, esboços de quartos de hotel, etc. Contudo, a reinserção desses relatos em forma de documentos mais tarde expostos ao público reinventa o momento de isolamento passado como performance e encenação pública “real”. Há então um jogo estabelecido entre o que é privado e o que é público, entre o que é passado e o que é presente, entre o que é vida e o que é performance, entre o que é obra de arte e o que é documento. Por outro lado, temos o exemplo do empresário Sadi Gitz, que em 4 de julho de 2019 tirou sua própria vida na abertura de um seminário em Aracaju, Sergipe.110 O evento público contava com as presenças ilustres do governador do Estado, Belivaldo Chagas, e do Ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque. O fato de que o empresário escolheu esse evento notoriamente público para finalizar a própria vida mostra também o aspecto político

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Nessa linha de raciocínio, Roger Beebe (2002) escreve sobre o processo de luto mediado em massa e diz que essa foi, sem dúvida, uma das afetações desencadeadas pela morte midiática de Cobain, o trauma ou mal estar geracional, descrito por autoras como Elizabeth Wurtzel como “a bala que atravessou toda uma geração”. Ele diz que apesar da natureza privada da decisão, rapidamente o evento ganhou contornos simbólicos e sintomáticos em relação à dita Geração X. Não foi, contudo, o único desses afetos, como veremos mais adiante.

110 Notícia disponível em <https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/editorias/pais/online/empresario-se-

desse ato final. Quem dirá, contudo, que esse não é, em paradoxo, um momento também extremamente íntimo?

Como a canção de Eric Clapton “Tears in Heaven”, que torna lírica a morte de seu filho e a reconstrói na imaginação de uma legião de fãs que antes haviam lido as notícias do acontecimento trágico nos jornais, o suicídio de Cobain também constitui uma performance pública e íntima, na medida em que, a partir do circo midiático que forma em torno de si, retroativamente remonta toda a sua obra para apontar aquele fim, seja de modo correto ou incorreto, não mais importa, a narrativa está montada. Como se verá no terceiro capítulo, é difícil não ler seu suicídio em grande parte do material pregresso, que se torna poluído pela imersão de seu autor no campo diegético da obra via suicídio midiático. A mídia implica que esse ruído surja e se insurja, arriscando dominar a emissão. O que é problemático, pois isso poderia resultar, como foi temido à época, numa onda coletiva de suicídio daqueles que se identificavam com o líder do Nirvana.

Charles R. Cross dedica um capítulo de seu livro Kurt Cobain: a construção do mito a essa questão, num esforço de minimizar a repercussão negativa do suicídio de Cobain para a comunidade. Segundo ele, esse não foi o caso.

Cross nota que, embora a imprensa tenha dado atenção a especulações de que o suicídio da estrela do rock tenha “inspirado” entre 19 e 68 casos de suicídio (as listas variam), estudos e análises estatísticas, conduzidos por especialistas em saúde pública, sobre a morte de Cobain demonstram o oposto, contrariando as expectativas dos especialistas que, à época, esperavam uma epidemia. Cross afirma que “a atenção despertada e as circunstâncias da morte de Kurt podem ter na verdade encorajado as pessoas a buscarem ajuda” (CROSS, 2014, p. 143), abrindo na sociedade um debate muito mais honesto sobre depressão, vício e suicídio do que antes era possível. Ele discorre pausadamente sobre a questão no capítulo “Acontece todo dia”, tomando como base as pesquisas e depoimentos de especialistas como David A. Jobes, autor de um dos estudos acerca dos impactos da morte midiática de Cobain, e Vicki Wagner, diretora executiva do Programa de Prevenção ao Suicídio entre Jovens de Seattle, e analisando os principais fatores envolvidos e as providências tomadas pelas autoridades americanas competentes, à época do caso. O título do capítulo de Cross é também importante aqui, pois equaliza o caso de Cobain a inúmeros outros casos de dependentes químicos anônimos à mídia (ou computados apenas como números) que renunciam a seus laços sociais

e vidas orgânicas cotidianamente. A droga, nesses casos, seria também phármakon, a bala igualmente.

Todavia, talvez estejamos exagerando a potência do gesto suicida em si, colocando-o no centro de toda uma vida-obra, como portador de sua significância, de seu sentido, de sua explicação. Esse é – não nos esqueçamos – o arrazoado próprio da noção historiográfica de tradição positivista, na linha de uma história monumental. De fato, o gesto suicida de Cobain gera uma infinidade de registros historiográficos e se aproxima, talvez, mais significantemente da ordem historiográfica grafada. Quem sabe, paradoxal, ele esteja no limite do que se pode considerar, por um lado, História, no sentido hegeliano, e sobrevivência cultural, no sentido das afrografias. Neste caso, a que diz respeito a sobrevivência proposta por essa performance, quando certamente não sobrevive o corpo que a propõe? Sobrevive, quem sabe, a vida e a resistência de outras performances, não aquela, mas as performances (não necessariamente cobainianas) arriscadas do punk, a comunidade à qual Cobain se filiava e que até em sua performance suicida (vide novamente a carta) referenciou.