• Nenhum resultado encontrado

2.1 A MAÇÃ ENVENENADA: GESTOS DE AUTOR, CORPO E OBRA ENTRE HERBERTO HELDER E KURT COBAIN

2.2.2 Ritualístico e mnemônico

Em um dado momento histórico, todos os textos eram manuscritos. Era trabalho dos copistas medievais realizar laboriosamente, letra a letra, a criação de um novo livro. Tarefa certamente ritualística uma vez que se tratavam ali, em grande parte, de textos sagrados. Independentemente de seus conteúdos, é certo também que os livros, através desse método, possuíam um caráter de singularidade – mais tarde revogado pela prensa guthenberguiana –, pois cada cópia era realizada através de uma performance corporal do copista. A aura de Verdade do formato livresco, construída através dessa herança religiosa composta de mito e rito101, contudo, sobrevive à invenção da prensa e chega aos tempos modernos. É também essa herança que levará Hegel a desacreditar na possibilidade de uma historiografia das nações e do continente africano, baseado na falta de documentação grafada daqueles povos. Como um povo sem Verdade poderia ter construído, em algum senso, uma História?

Achille Mbembe discute a questão em Crítica da razão negra:

O momento gregário do pensamento ocidental será então aquele ao longo do qual, ajudado pelo instinto imperialista, o acto de captar e de apreender ir-se- á progressivamente desligando de qualquer tentativa de conhecer a fundo aquilo do que se fala. A Razão na História, de Hegel, representa o ponto culminante deste momento gregário [...] A noção de raça permite que se representem as humanidades não europeias como se fossem um ser menor, o reflexo do homem ideal de quem estavam separadas por um intervalo de tempo instransponível [...] Falar delas é, antes de mais, assinalar uma ausência – a ausência do mesmo [...] (MBEMBE, 2014, p. 39).

Num artigo intitulado “Performances do tempo espiralar”, Leda Maria Martins ensaia um conceito de afrografias, a ser entendido como uma nova forma epistemológica, de modo a

101 Ver a discussão dessa composição em Profanações (AGAMBEN, 2007, p. 65-80). De toda forma,

pensar a potência performática dos rituais e festejos do congado mineiro como formas resistivas de historiografia (ou talvez, como formas resistivas ao próprio conceito de historiografia). A partir de uma perspectiva historiográfica tradicional, positivista, esse entendimento seria inaceitável, uma vez que as afrografias se baseiam em princípios de deslocamento, metamorfose e recobrimento; elas se desenham como um saber dos gestos e dos timbres, das práticas performáticas, do corpo e da voz; elas se escrevem em rasura, através da repetibilidade em diferença. Martins se baseia na distinção entre lugares de memória e ambientes de memória, feita por Pierre Nora, para analisar as performances rituais, cerimônias e festejos do congado de Minas Gerais em suas potências historiográficas, (re)construtores de conhecimento, memória e esquecimento.

A grafia dessas performances, então, ausente na forma consagrada ocidental do livro- Verdade,102 dá-se através de outros modos, no gesto, no movimento, na coreografia, no adorno, na superfície da pele, nos timbres e nos ritmos. Ela institui uma forma de escrita historiográfica que nos impede de buscar sua reconstituição total de modo consciente, mas cuja rasura nos afeta e por isso voltamos perpetuamente a seus ensaios.

As performances rituais, cerimônias e festejos, por exemplo, são férteis ambientes de memória de vastos repertórios de reservas mnemônicas, ações cinéticas, padrões, técnicas e procedimentos culturais residuais recriados, restituídos e expressos no e pelo corpo. Os ritos transmitem e instituem saberes estéticos, filosóficos e metafísicos (MARTINS, 2002, p. 72)

Pensemos, então, a questão da performance. Em depoimento oral, Luciany Aparecida, refletindo sobre as performances drag que vira na noite anterior, como parte do concurso Monstra, do Bar Âncora do Marujo, em Salvador, questionou se o tripé que anteriormente sustentava o conceito de performance em corpo, público e cena ainda teria razão para se manter, ou se, no signo da monstruosidade, essas performances cada vez mais se confundissem no contínuo indissociável e ininterrupto de vida e obra (informação verbal).103

Em diálogo com o teatrólogo americano Marvin A. Carlson (2010), podemos pensar a performance como corpo-espaço-tempo no qual definimos a nós mesmos, indivíduos e comunidades, dramatizamos nossos mitos e histórias coletivas, apresentamos a nós mesmos alternativas, através de um rito performático coletivo. A performance contemporânea,

102 Necessário dizer: esses elementos ágrafos certamente nunca foram ausentes por completo na cultura

ocidental.

103

Fala da professora Luciany Aparecida (então professora substituta da UNEB), no encontro da disciplina de Seminários Temáticos IV do curso de Pós-Graduação em Literatura e Cultura da UFBA, em Salvador, dia 08 de março de 2017.

diferentemente de sua contraparte aristotélica, abdica da consciência absoluta e reflexividade prévia mínima dos gestos. Por outro lado, ela é provida de um vértice imediatamente político, que parece rasurar o fazer e construir-se cotidiano.

O tripé referido por Aparecida é diversamente definido por Carlson (2010) como o indivíduo, o performer e o restante da plateia, sendo a performance caracterizada assim pelo fator inapelável de interação. Esse tripé revoga o teatro de tradição aristotélica em que há clara distinção entre espectador e espetáculo. Por outro lado, mantém a distinção prévia entre sujeito e obra, uma vez que se mantém a ideia de que por trás da performance existe um sujeito que talvez a explica e a anteceda. O performer é o performer e não se confunde com o sujeito (ator) que a realiza.

Na tríplice fronte apresentada pela professora Aparecida, essa ideia talvez se mantenha na ideia de “cena” dramática. De todo modo, a sugestão da professora Denise Carrascosa, regente da disciplina, acatada aqui por mim, foi o entendimento do corpo performático como rasura associada a seu autor. Aqui, ruído que se confunde e em gesto crítico (potencialmente) elimina (até) o autor. Afeta igualmente o público que se insere e participa ativamente da performance.

Faz-se necessário, então, refletirmos, ainda que brevemente, sobre as questões do individual e do coletivo no âmbito da memória, tradição e performance e sobre como se dá, nesse jogo, a construção epistemológica proposta acima por Leda Maria Martins.

2.2.3 Eu, tu, ele, nós

No que diz respeito ao indivíduo, traços mnemônicos já estavam na teoria da correlação entre memória e consciência discutida por Sigmund Freud no início do século XX. No capítulo XII de A Interpretação dos Sonhos (2010), Freud explica o funcionamento básico do sistema mnemônico como impressões geradas no inconsciente a partir de estímulos externos sobre o corpo do indivíduo. Esses estímulos podem cada um gerar uma série de efeitos e traços mnemônicos diversos que se mantêm residuais no insconsciente, podendo ou não vir à tona. Para Freud, quão mais intensos forem as impressões (os da mais tenra juventude estariam entre essas impressões mais profundas), menor a possibilidade de que elas venham a subir para o nível da consciência. Sobretudo, o desejo gerado por essas impressões, ou seja, o desejo da perpetuação do estímulo inicial seria sempre inalcançável, mas são elas

que carregam a energia através do sistema nervoso e colocam o indivíduo, finalmente, em ação libidinosa.

Na tradição literária, um dos mais fortes estudiosos dos efeitos desses traços mnemônicos é Marcel Proust. Eis como Walter Benjamin analisa o uso que Proust faz desses traços:

Proust trata desses "outros sistemas" [alheios à consciência] de maneiras diversas, representando-os, de preferência, por meio dos membros do corpo humano, falando incansavelmente das imagens mnemônicas neles contidas e de como, repentinamente, elas penetram no consciente independentemente de qualquer sinal deste, desde que uma coxa, um braço, ou uma omoplata assuma involuntariamente, na cama, uma posição, tal como o fizeram uma vez no passado (BENJAMIN, 1989, p. 108, em nota, comentário meu). Há uma diferença entre a consciência e os traços ou imagens mnemônicos, próprios da chamada memória involuntária. Esta, como o nome diz, não se refere a processos conscientes. De fato, quando falamos em processos conscientes, para a teoria freudiana e para a literatura proustiana, já não se tratam de traços mnemônicos, uma vez que a memória involuntária só dá conta daquilo que não foi experienciado conscientemente. A célebre passagem da madeleine, em Proust, ilustra esse conceito na obra do escritor francês. O sujeito é invadido por essa experiência que não é sua “propriedade”, em termos objetivos ou mesmo subjetivos, mas naquele instante se apropria dela, ele a experimenta, realizando uma violência sobre o passado, na forma de uma experiência consciente ou de uma lembrança. Uma fenda, que permitiu certa vez a impressão do traço mnemônico, vem à tona por força de uma fratura material que esboça um plano sensível: um cheiro, um gosto, um braço colocado de certa maneira, um adorno, um movimento, uma cor.

Benjamin pensa a memória como a força conservadora cuja função essencial é proteger o consciente das impressões externas violentas que arriscariam, se viessem à tona instantaneamente, destruir o sujeito.104 Assim, cria-se a memória inconsciente como reserva desses traços, imagens e estímulos. A lembrança (ou experiência do passado, via madeleine) seria, por outro lado, a força violenta de ruptura que tenta recuperar do esquecimento uma narrativa e, nesse processo, desagrega a memória. A lembrança consciente surge em lugar de um traço mnemônico.

104

Na contracultura, pensamento similar foi desenvolvido por Aldous Huxley, ao longo de suas pesquisas com psicotrópicos, nas quais ele buscava exatamente expandir tais limitações sensíveis, ainda que temporariamente. Ver As portas da percepção (HUXLEY, 2012).

Todavia, o nível individual apresentado nas teorias de Freud e na escrita de Proust carrega uma série de limitações à construção de si, como vemos em Relatar a si mesmo: uma crítica da violência ética (2015). Tentarei, a seguir, mover a discussão do nível individual para o coletivo. Em Relatar a si mesmo, Judith Butler fala sobre as possibilidades de criação do sujeito relacionadas à oportunidade de relatar-se, através da linguagem, quando confrontado ou interpelado por outrem. Ela sugere que entre as qualidades constitutivas da subjetividade está a opacidade primária do ser, possivelmente resultado de seu caráter inevitavelmente relacional. O “eu” é criado perpetuamente externo a si. Mais do que isso, o eu relata a si dentro de uma cena de interpelação levada a cabo não por uma necessidade de explicar sua anterioridade, dobrando-se sobre o passado consciente de si, mas pela imediata alteridade e intrínseca vulnerabilidade da questão primária e curiosa “quem és tu?”. Convergem sobre essa questão também o fato de que as normas que possibilitam o reconhecimento ou não do sujeito como sujeito (sua visibilidade) são necessariamente sociais, assim como é a linguagem na qual o sujeito se expressa e reconhece a si e a seu corpo. Essas normas ou regimes de verdade, conquanto sejam externos ao ser, são potencialmente questionados na medida em que e somente se há também um questionamento de si e um desejo de conhecimento do outro. O que significa que qualquer possibilidade de movimentação das normas implica também um risco à subjetividade do indivíduo, “colocar-se em risco, colocar em perigo a própria possibilidade de reconhecimento por parte dos outros” (BUTLER, 2015, p. 36). O processo comunicativo é o que Butler nomeia “ser despossuída” pelas normas ou pela linguagem. Fazer uso delas é necessariamente ser despossuída, expropriada, ter extraído de si um relato. O que nos leva necessariamente a ter de lidar com a coletividade.

Antes, contudo, faz-se premente a questão: essa expropriação parece se referir ao discurso, não ao corpo, como condição necessária para a construção de si. Como resta o corpo nessa equação? Como pensar, então, o corpo, nem todo-externo (pois há órgãos internos e subjetividades em pleno funcionamento, inacessíveis ao olhar), nem binômio interno-externo (pois não há possibilidade de separação do dentro e fora como opostos, uma vez que abdicamos da terminal separação entre corpo e espírito), nem somente discurso (mas também pensado e reconstruído por ele); mas o um-consigo ético-estético que é, carregado de e pensado como discurso, inextricavelmente preso a um indivíduo unitário, muçulmano e silencioso, do qual não pode ser expropriado senão como imagem, registro ou discurso?

Butler, em seus trabalhos mais recentes, parece enxergar nesse enlace de expropriação a possibilidade de uma “condição coletiva, caracterizando todos nós de maneira igual, não só estabelecendo o ‘nós’, mas também estabelecendo uma estrutura de substituibilidade no núcleo da singularidade” (BUTLER, 2015, p. 49). Uma possível suplementaridade, levando em conta o princípio que todo corpo é este corpo, a partir do ponto, do centro dêitico, em que se fala. E este corpo (qualquer que seja), como já foi dito, está sujeito a uma incomensurabilidade, de modo que esteja fadado à tentativa de recuperar-se, reconstruir-se, traduzir-se, ficcionalizar-se ou fabular-se; enfim, criar-se em novas formas, a partir de sua incapacidade de dar conta de si.

Novamente, entram aqui os diálogos que sugeri anteriormente com o phármakon de Derrida (2005), talvez, porque o corpo não seja mais o corpo solar tal como era entendido pelos antigos gregos e egípcios, pai da palavra, capaz de responder por ela, atestando-a através de sua honestidade e fé indômita. Como já não podemos estipular terminantemente que o corpo seja absoluta presença e a palavra absoluta ausência, o corpo do qual falamos aqui já não se projeta unicamente solar, entidade à qual a palavra é inútil, desnecessária, excedente, acessório. O corpo é agora carregado, construído e reconstruído também pelo discurso, pela fala, pela poética, pela criação, pelo phármakon, que se introjeta nele, qual veneno ou cura, para projetá-lo novo, qual cyborg perfeito e, ambivalente, qual amputado anônimo, muçulmano (AGAMBEN, 2008). Resta dele, portanto, igualmente, um excedente, inapreensível ruído ambivalente.

Em clara referência ao trabalho de Derrida, Rancière comenta, sobre o mesmo tema:

O homem é um animal político porque é um animal literário, 105 que se deixa desviar de sua destinação “natural” pelo poder das palavras. Essa literalidade é ao mesmo tempo a condição e o efeito da circulação dos enunciados literários [...] Mas os enunciados se apropriam dos corpos e os desviam de sua destinação na medida em que não são corpos no sentido de organismos, mas quase-corpos, blocos de palavras circulando sem pai legítimo que os acompanhe até um destinatário autorizado. Por isso não produzem corpos coletivos. Antes, porém, introduzem nos corpos coletivos imaginários linhas de fratura, de desincorporação (RANCIÈRE, 2015, p. 58-60).

Voltando à coletividade, se o relato de si é impossível por se tratar, aparentemente, de um processo consciente e discursivo (portanto, necessariamente incompleto, incapaz de enxergar em si o que não é discurso e consciente) torna-se relevante pensar na possibilidade

de um saber inconsciente (ou um saber-de-mistério; saber-desconhecimento; saber-ignorante), como proposto por Leda Martins. Esse seria um modo de conhecimento capaz de introduzir nos corpos coletivos imaginários as linhas de fratura de que fala Rancière.

Para além da limitação do indivíduo, esse saber-ignorante estaria pronto a arriscar se perder enquanto sujeito portador de uma Identidade, de uma Verdade, de uma História, ou de uma Literatura, num jogo de potencialidade muito mais ético, que envolve necessariamente o coletivo de uma performance rito-poética e mnemônica. A performance aí une mito e rito e reencontra o indivíduo com o seu corpo, o qual ele continua a desconhecer, no signo da monstruosidade que o percorre em temporalidades diversas da temporalidade da subjetivação. Essas, conquanto são reescritas a partir da voz, timbre, corpo, adorno e superfície corporal do indivíduo (discurso e não-discurso, ambos o filme revelado à luz e o seu duplo inominável), o trespassam e o interrompem, indiferentes a sua subjetividade, mas em constante diálogo com ela, possibilitando-a e sendo instantaneamente criticadas por ela, somente na medida em que o sujeito questiona também a si mesmo, trazendo não à luz, mas à obscurescência do gestual (muçulmano?) a memória inconsciente e a força plástica de um indivíduo, um povo ou uma cultura, em forma ritual e estética. Constitui-se um transe. Passado, presente e futuro.

Como registros, eles arriscam a possibilidade de se tornarem negativistas e maníacos, em eterno presente. Entendidos como vaga-lumes (DIDI-HUBERMAN, 2011), porém, pois houve resistências, eles convocam ao transe, convocam o corpo a um saber alterno que ultrapasse a frigidez e a negatividade para permitir ao indivíduo, uma vez que ele se descubra em rito comunitário, instar-se presente, passado e futuro.

Também na linha dessa coletividade preponderante, Leda Martins professa que, na performance ritualística, há um percurso não alheio ao conceito de força plástica apresentado por Nietzsche: “O coletivo superpõe-se, pois, ao particular, como operador de formas de resistência social e cultural que reativam, restauram e reterritorializam, por metamorfoses emblemáticas, um saber alterno, encarnado na memória do corpo e da voz”. (MARTINS, 2002, p. 80). Talvez esteja aí, afinal, nas formas ágrafas da performance, uma outra possibilidade de fazer historiográfico. Isso não é para dizer que essas sejam as formas ideais de produção da história. Parece-me que elas sejam, sobretudo, (hesito em dizer subsistência, embora sejam certamente formas encontradas através da fome e da falta) formas de resistência, sem dúvida, arriscadas; necessárias.