• Nenhum resultado encontrado

1.1. O RUÍDO NA MÚSICA POP, UM PANORAMA

1.2.1 Performance em risco

Jorge Cardoso Filho pontua em Práticas de escuta do Rock: experiência estética, mediações e materialidades da comunicação, o que ele chama de modelo musical popular- massivo, responsável pela educação estética41 de pelo menos três gerações de ouvintes. Seguirei aqui algumas de suas proposições quanto ao fenômeno.

Baseada no empenho corporal e na repetição próprios da canção de consumo, seja em forma de registro ou em performance co-presente, sempre pautada no aspecto geracional, ainda que não sempre em termos de classe ou raça, a canção pop contemporânea manteve sua relevância ao longo da segunda metade do século passado. Uma cultura fundamentalmente jovem é, pois, associada ao rock como gênero, nessa época. E, contudo, apesar de seu caráter massificante e repetitivo, essa experiência estética é capaz de atingir o caráter do literário no âmbito daquilo que Paul Zumthor (2007) identifica como o prazer poético – componente fundamental da poesia para este autor –, através da performance da voz poética e da participação ativa/participativa do público, que equivale a uma implicação fundamental dos corpos em trânsito envolvidos na experiência estética.

Cardoso Filho também identifica a música – mesmo aquela registrada fonograficamente – através de princípios de movimentação, fricção e trânsito. Falando sobre o álbum Nevermind, do Nirvana, ele enuncia:

41

Para Cardoso, “Cada prática de escuta do Rock é resultado de uma configuração social, cultural, tecnológica e estética específicas” (CARDOSO, 2013, p. 49). Essas práticas não são absolutas, mas criam ambientes de expectativas, bem como possíveis fricções e singularidades consequentes desse primeiro efeito antecipativo. Além do mais, elas educam os ouvintes com os quais entram em contato, demonstrando outras possibilidades de audição e fazendo-os “escutar mais”. Em suma, há várias diferentes maneiras de estabelecer-se contato com uma obra musical, nenhuma absolutamente estabelecida: há práticas de escuta. Todavia, em contraposição a essa liberdade de apropriações, pode-se falar, segundo Cardoso, numa “escuta adequada”, correspondente a cada tipo de item cultural. Sobre a questão da educação estética imposta pelo modelo musical popular-massivo, ver os escritos de Cardoso (p. 21-23).

Como a substância da música não é apenas o som, mas também o movimento de corpos – entendido aqui no sentido da Física, como todo objeto que ocupa lugar no espaço – observa-se, então, uma convocação do somático e desse aspecto primitivo de toda relação com um ambiente, na interação com o álbum [...] mesmo quando os sons são produzidos devido à manipulação de áudio ou sintetizadores eletrônicos, o princípio de propagação da onda sonora continua sendo da fricção dos corpos, ou seja, do movimento de corpos. (CARDOSO, 2013, p. 102-107).

Esse traço de comprometimento do corpo, Cardoso identifica como aspecto dominante na escuta do segundo disco do Nirvana, Nevermind, de 1991. Cardoso escreve que as práticas da banda de Seattle estavam relacionadas às “estratégias de construção de autenticidade do underground [em] promover uma valorização de elementos como a simplicidade e o cotidiano das ruas. Um retorno ao lema ‘do it yourself’ do movimento punk. Simplicidade, honestidade e agressividade” (CARDOSO, 2013, p. 90). Ademais, nas apresentações ao vivo da banda, o empenho do corpo era aspecto fundamental, o que persiste nos registros materiais produzidos por eles.

Paul Zumthor discorda nesse ponto. Embora não fale especificamente do Nirvana, Zumthor pensa que “aquilo que se perde com os media [...] é a corporeidade, o peso, o calor, o volume real do corpo, do qual a voz é apenas expansão” (ZUMTHOR, 2007, p. 16). De minha parte, gostaria primeiramente de estabelecer que a voz, nas linhas desta tese, não é a perda do corpo, mas a denúncia dele (informação material de que ele, em ruído, existiu), bem como a própria materialidade do corpo em resiliência e a abertura ruidosa do plano sensível delineado por ele para a fratura potencial de outros corpos. Aproveito para referenciar a imagem dos vaga-lumes de Georges Didi-Huberman (2011) de modo a instar acerca das performances corporais fugidias suscitadas pela citação de Zumthor. O contraargumento proposto é: há resistências dessas performances, mesmo em seus registros. Há vaga-lumes.

Gostaría ainda de sugerir que as figurações da linguagem propostas por essa resiliência, ou quase-corpos, como os chama Rancière (2015), além de serem de natureza intermitente e piscarem feito vaga-lumes, desaparecendo quando confrontados diretamente com a luz, transitam inclusive através de sistemas sígnicos diversos, para compor a mais ampla gama de textos e discursos num trânsito de formas estético-político. Há, também, nessas resistências performáticas uma dimensão de sociabilidade que persiste e sobrevive

mesmo em seus registros, sejam fonográficos ou audiovisuais, e é preponderante na experiência do Nirvana, como reitera Cardoso Filho. 42

Cobain, por diversas vezes pontuou o fato de que era herdeiro de uma tradição do punk-rock que, embora germinado na costa leste dos Estados Unidos, havia migrado para a Califórnia no início dos anos 1980, com bandas como X e Black Flag, e mais tarde daria vazão à cena grunge43 de Seattle e à cena alternativa de Olympia das quais o Nirvana emergiu. Muitos dos aspectos pontuados por Jorge Cardoso são facilmente remetidos à cena punk descrita por McNeils e McCain em Mate-me por favor.

Por outro lado, é importante mencionar também os antecendentes e intermitências beats de algumas dessas práticas poéticas, como bem pontua Carrie Noland. Falando do movimento punk dos anos 1970, ela enfatiza sua ancestralidade:

Porém, as relações entre música popular e poesia não começaram com a comercialização da música folk nos anos 1960; mesmo durante os anos 1950, a jovem cultura do rock ‘n roll havia sido fomentada por sua associação com as florescentes comunidades poéticas de Nova Iorque e de São Francisco. Jack Kerouac, originador dos beats e leitor daqueles “renegados da alta cultura” Celine, Rimbaud e Yeats, dividia essas influências com os poetas Gregory Corso, Gary Snyder e Allen Ginsberg, que, de suas partes, tiveram um papel importante em animar a cultura hippie

rock dos anos 1960 (NOLAND, 1995, p. 588, tradução minha). 44

As leituras públicas realizadas pelos beats, apesar de seus ambientes boêmios, ainda possuíam uma forte carga de autoridade literária relacionada à dita “alta cultura”, pois sua formação lidava com a fraseologia do jazz em sua prosódia, mas tinha uma base ainda

42 Especificamente no trecho a seguir, Jorge Cardoso discute a questão da socialidade implícita da experiência

estética do Nirvana em diálogo com os componentes técnicos da gravação: “O encontro estético com o Nevermind prescinde, portanto, das tecnicidades no desenvolvimento da experiência. Parece mesmo demonstrar que, nesse caso, a experiência não é tão modulada pelos componentes técnicos desenvolvidos pela indústria fonográfica mas que outros componentes podem desempenhar papel preponderante [...] No caso do Nevermind o elemento preponderante da experiência parece mesmo ser a dimensão da socialidade.” (CARDOSO, 2013, p. 98).

43 Grunge é o termo usado para se referir genericamente a bandas que saíram de Seattle e daquela região do

noroeste americano entre meados da década de 1980 (a primeira onda do grunge) e a primeira metade da década de 1990 (a segunda onda). De um modo bem generalista, podemos dizer que o grunge era uma fusão de heavy-

metal e punk, embora a amplitude musical das bandas enquadradas sob esse rótulo seja muito grande. Algumas

das bandas da primeira onda são: Green River, Soundgarden, Melvins, Malfunkshun, Skin Yard, and The U- Men. A segunda onda inclui Nirvana, Alice in Chains, Soundgarden, Pearl Jam e Stone Temple Pilots. Os lançamentos se centram ao redor da gravadora independente SubPop e de uma cultura underground de publicações independentes e zines próprias da região.

44

No texto fonte: “But the relations between poetry and popular music did not begin with the commercialization of folk music in the sixties; even during the fifties the early culture of rock music had been nourished by its association with the thriving poetic communities of New York and San Francisco. Jack Kerouac, originator of the Beats and a reader of those "'renegades of high culture,"' Celine, Rimbaud, and Yeats, shared these influences with poets Gregory Corso, Gary Snyder, and Allen Ginsberg, who in turn played an important role in animating the hippie rock music culture of the 1960s.” (NOLAND, 1995, p. 588).

fortemente letrada em sentido tradicional ligada à tradição de Celine, Rimbaud e Yeats. Eram renegados, talvez, mas ainda inseridos na dita “alta” cultura, mesmo na ótica de Noland. Todavia, mais tarde, nos anos 1980, intermitências dessas práticas de leituras públicas e oralidade seriam vistas, por exemplo, no hip-hop e nas práticas da slam poetry. 4546

E essa ligação comunitária proporcionada pela performance oral/corporal pública parece essencial na experiência transformativa do punk. Vejamos o relato de Scott Kempner sobre seu primeiro encontro com os The Stooges, a mítica banda de Iggy Pop nos anos 1960, padrinhos do punk-rock e autores do álbum favorito de Kurt Cobain, Raw Power, de 1973. A tradução é de Lúcia Brito:

Outros caras podem te dar um soco na boca, mas tem cura, só que Iggy estava me ferindo psiquicamente, pra sempre. Eu nunca mais poderia ser o mesmo depois dos primeiros vinte segundos daquela noite – e nunca mais fui. A gente voltou na noite seguinte, e foram exatamente as mesmas canções, mas foi totalmente novo em folha. Aquilo não tinha nada a ver com a noite anterior, não tinha nada a ver com ensaio, não tinha nada a ver com passagem de som – era vivo, estava nascendo e vindo assustar as porras das suas crianças no meio da noite e bem na sua cara... E toda vez que eu via aquela banda era a mesma coisa – nunca havia um ontem47, nunca havia um show que eles já tivessem apresentado, nunca havia um show que eles fossem apresentar de novo. Iggy colocava a vida em perigo em cada show. (MCCAIN, 2004, p. 92-93).

A ênfase no modo “psíquico” com que Iggy feria seus confrades me remete a um trecho do artigo de Liliana Coutinho sobre performance. Ali se propõe uma concepção de filosofia baseada na performance. O artigo se intitula “Uma filosofia performativa: a dança como metáfora filosófica no texto de Alphonso Linguis, The first person singular” e consta na compilação A performance ensaiada, organizada por Wellington Júnior.

O corpo vivo, pela sua experiência relacional e ativa na constituição do mundo em que vive, desenha um plano de existência que se estende para além do organismo. Investindo um espaço sensível, energético, revela a ligação ao corpo orgânico a outros corpos, a outros eventos. Não podemos fazer aqui um corte claro entre o que é corporal, o que é psíquico e o que é emocional, ou entre o que é do indivíduo ou o que é da comunidade e do ambiente com o qual ele está em relação (COUTINHO, 2011, p. 47).

45 Hip-hop é hoje, sobretudo, percebido como um gênero musical, mas originalmente o termo dá conta de uma

subcultura própria que gira em torno de certos pilares da cultura afro e latinoamericana, particularmente germinada nos Estados Unidos e na costa nordeste, em Nova Iorque. Os pilares são as figuras do DJ (atada à noção do loop nas mesas de vinil que originaram a técnica do sample, já discutida anteriormente) e do Rapper (daí a proximidade à verbalidade lírica), o Graffiti e o Break-dance (adiciona-se mais tarde também o Beat box).

46 Poetry Slam ou Slam Poetry é uma forma de poesia oral competitiva, em que os poetas são julgados por uma

comissão que os avalia em notas de zero a dez. Originou-se nos Estados Unidos durantes os anos 1980.

47 Destaco esse trecho, pois será importante mais adiante para repensar o caráter regressivo e sectário do rock ‘n

Vez após vez, o que é ressaltado na performance de Iggy Pop e alguns outros de seus contemporâneos é a periculosidade, o risco que envolvia a performance, abraçando, performer, cena e público, perigo este relacionado a diversos fatores, não necessariamente políticos na acepção mais óbvia, mas efetivamente sociais, culturais, sexuais, estéticos e, por consequência, imediatamente políticos.

Outro elemento ressaltado para falar de Iggy Pop é, congruentemente, o aspecto teatral ou não teatral de sua performance: “Não era teatral, era teatro. Alice Cooper era teatral, ele tinha todo o aparato, mas com Iggy não era encenação. Era a coisa real” (MCCAIN, 2011, p. 89), relata Alan Vega, também conhecido como Alan Suicide, cantor e artista, ex-vocalista da banda Suicide. Novamente, há nesse relato a fascinação do “real”.

À época, outro grande catalisador cultural na cidade nova-iorquina era o Teatro Ridículo, de figuras como Jon Vaccaro e Charles Ludlam. Comparações entre o teatro da época e o movimento punk são abundantes em Mate-me por favor, ambos eram excitantes, brilhantes, divertidos, fulgurantes, rebeldes e permeados pela interseção com o mundo das drogas . “Iggy era perigoso.”, diz Danny Fields, ex-executivo da Elektra Records e da Atlantic Records e ex empresário dos Stooges e dos Ramones (MCCAIN, 2011, p. 94). Poucas páginas depois surge a frase “John Vaccaro era perigoso”, agora dita pelo fotógrafo e empresário Leee Childers [sic], ex-vice-presidente da MainMan (companhia que empresariava David Bowie) e ex-empresário dos Heartbreakers, a banda de Richard Hell (MCCAIN, 2011, p. 118). Cyrinda Foxe, atriz e modelo norte-americana contemporânea do movimento, complementa: “O teatro ridículo era muito mais excitante que o rock & roll. Era muito mais ao vivo – não era todo cortado, remendado, ajeitado e vendido pra mídia como o rock & roll tinha sido [...] até os Dolls aparecerem” (MCCAIN, 2011, p. 154).

Os Sex Pistols e o punk britânico eram mais obviamente politizados do que as bandas americanas, classificadas pelo idealizador dos Pistols, Malcolm McLaren como “aquele tipo de cultura pop-trash de Warhol, que era tão católica, tão chata e tão pretensiosamente americana, onde tudo tem que ser um produto, tudo tem que estar à venda”. (MCCAIN, 2011, p. 249). Segundo o próprio McLaren foi ele quem resolveu “pôr a política na roda”. Contudo, ele não fez isso sem a meta de vender igualmente um produto. A diferença era talvez a orientação político-ideológica do produto que ele estava vendendo, muito mais inclinado à esquerda no espectro político e talvez ao niilismo no plano filosófico. Porém, antes de fundar os Sex Pistols, o empresário britânico agenciou os New York Dolls.

Um detalhe que percebo ao ler os relatos de McCain e McNeil é como de fato não havia nada de especial (de um modo imanente) na cena punk nova-iorquina. Era apenas uma cena musical-artística, viva à sua época. Prestamos atenção a ela até hoje, talvez, simplesmente, porque ela teve uma grande publicidade e os ouvidos do mundo estavam voltados para os EUA, como de costume (ou os EUA faziam os ouvidos do mundo voltarem- se para lá). Assim, aquela cena se fez inscrever nos anais. Assim, ela se fez escritura, se fez História. Produziram-se documentos que buscam, ainda hoje, tal qual o livro que aqui trabalho, atestar sua autoridade. Ainda assim, é relevante notar como figuras nacionais ou contemporâneos conseguem (re)construir uma identidade/comunidade musical, estética e política através de relações com essas personalidades míticas estrangeiras.48 Sim, figuras míticas, de fato, ainda que em suas épocas nem todas elas fossem comercialmente bem sucedidas.

E esse é outro fator sempre ressaltado nos relatos de músicos e artistas da época (voltando à Nova Iorque dos anos 1970): aquela cena não era “vendável”. Não que eles não buscassem vender sua música ou não se dispusessem por questões ideológicas à comercialização. Isso é talvez, com parcas exceções, só outro mito. A questão é que o mercado ainda não se via numa posição favorável entre o público para cooptar o risco,49 “E as gravadoras, que já pensavam que os Dolls eram travestis, agora também pensavam que eram viciados em drogas. Viciados perigosos. Perigosos para a sociedade e ainda por cima travestis.” (MCCAIN, 2011, p. 173).

Os New York Dolls se tornaram famosos pela androgenia50 e pela horizontalidade performática presente em seus primeiros shows, em que não se dissociavam artistas e público.

[...] não dava pra saber quem era da banda entre aquele bando que estava no palco [...] Todo mundo estava circulando por lá, dançando, cantando e berrando, tudo junto, e esta foi a primeira vez que vi os New York Dolls. Era simplesmente a coisa mais empolgante que eu já tinha visto na minha vida (MCCAIN, 2011, p. 174-175).

48 Cito, por exemplo, o músico Jonata Doll que mencionei na seção anterior. Sua alcunha provém exatamente do

nome da banda nova-iorquina New York Dolls, da qual era fã e pela qual toda uma geração de músicos e público, agora cearenses, também foi influenciada.

49

Thomas C. Shevory (em outro artigo datado de 1995) argumenta em “Bleached Resistance: The Politics of Grunge” que a grande razão para o sucesso comercial do grunge é que o movimento “suavizou o punk” (SHEVORY, 1995, p. 44). Isso talvez seja verdade em certos aspectos. Por outro lado, há no grunge um elemento muito forte de questionamento às barreiras de gênero e ao machismo geral do meio do rock & roll.

50 A tendência parece ter sido global. Incluam-se, pois, os exemplos de David Bowie, Boy George e, ainda nos

Já nos anos 1990, podemos perceber essa mesma questão naquela que parece ser uma das tensões centrais do movimento grunge, a tensão entre o pertencimento local e a disseminação global. Afinal, no início da carreira do Nirvana, ainda nas cenas locais de Seattle e Olympia, parecia haver um sentimento geral de pertencimento, que resultaria mais tarde, através da persistência desses traços fugidios sobreviventes mesmo em seus registros formais, numa prática de escuta corporal, em uma situação de escuta notadamente comunitária. “[...] fica implícita uma necessidade de interação comunitária com a música do Nirvana, como num ritual onde todos os participantes executam seus papéis de forma completa – ‘mover-se’, ‘dançar’ seriam os papéis dos ouvintes” (CARDOSO, 2013, p. 102).51

Como nos shows do New York Dolls, em seu alvorecer, esses eram eventos eminentemente comunitários. Isso não quer dizer que não havia individualidades, egos e interesses ou mesmo que cada show era necessariamente uma catarse pública e um êxtase coletivo, mas que a cena fluía, talvez, mais organicamente, dentro de uma comunidade mais ou menos fechada, como destaca Leee Childers “[...] você tinha que ser visto vendo os Dolls. Era um lance participativo. E as pessoas da plateia faziam parte do show tanto quanto quem estava no palco.” (MCCAIN, 2011, p. 156). Dentro desse universo, pequenos traços no ar e gestos fugidios podem deixar marcas duradouras acanhadas no fundo da memória, de uma magnitude potente e criadora, especialmente uma vez que aquela comunidade ou baú abre-se para o mundo como commodity. Veja-se, afinal, a lenda dos New York Dolls, para todos os efeitos, na posteridade, uma banda que tocava vestida de mulher: “[...] só teve aquele único show em que a gente usou vestidos. Todo mundo usou vestido, menos Johnny, que disse ‘Vão se foder, não vou botar um vestido!” (MCCAIN, 2011, p. 202). O depoimento é de Peter Jordan, membro e fundador dos Dolls. Tal qual a camisa de Richard Hell, uma performance, um gesto fugidio que, alienado, tomou contornos mais duradouros que si.

A influência dos Dolls sobre nosso personagem inicial Richard Hell também é notória:

[...] os Dolls tiveram um monte a ver com o fato de eu [Richard Hell] querer ter uma banda. Era muito mais excitante fazer rock & roll do que ficar sentado em casa escrevendo poesia. As possibilidades eram infindáveis.

51

Ainda sobre o tema da relação público e performance, Décio Torres Cruz pontua o aspecto carnavalesco da literatura pop da segunda metade do século XX que é também ligada à função do superastro e sua relação com o público. Em O pop: Literatura, mídia e outras artes, ele escreve, em diálogo com Silviano Santiago, “[...] o superastro alimenta-se do carnaval e da máscara alheia, vivendo o espetáculo do ‘desbunde’, o eterno carnaval, deixando entrever uma atitude artística da vida que se confunde com uma atitude existencial [...] o superastro é deus, artista, pessoa, superior, diferente, semelhantes, tudo ao mesmo tempo. Platéia e superastro se espelham mutuamente, criando o clima da grande festa onde a nova ordem é dançar, desengajar-se dos atrelamentos político-ideológicos da década anterior e ‘desbundar’ através de uma nova ideologia, a política da festa e do corpo.” (CRUZ, 2013, p. 146). Destaco nessa última citação o desengajar-se dos atrelamentos políticos ideológicos, uma vez que essa noção será produtiva em diálogos adiante.

Quer dizer, eu podia lidar com os mesmo temas com os quais eu ficaria penando sozinho no meu quarto pra publicar revistinhas mimeografadas que só umas cinco pessoas iriam ver. (MCCAIN, 2011, p. 213).

Há duas questões imediatamente apresentadas aqui. Primeiramente, o rock ‘n roll apresentado como veículo poético capaz de reproduzir os mesmos temas que interessavam ao literato Richard Hell no meio expressivo da poesia. Segundo, o fator de entusiasmo ligado