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2.1 A MAÇÃ ENVENENADA: GESTOS DE AUTOR, CORPO E OBRA ENTRE HERBERTO HELDER E KURT COBAIN

2.1.3 Não-humanos e fugidios

A lírica contemporânea está permeada pela noção da literatura de testemunho. Em O que resta de Auschwitz (2008), Giorgio Agamben discute a cisão contemporânea resultante do processo de subjetivação. Embora não se localize exclusivamente na modernidade, essa experiência de trauma parece ser levada ao limite nesse período histórico. Agamben localiza processos semelhantes a esse fenômeno moderno na dessubjetivação própria do fazer poético que desde sempre acusou essa cisão. Anteriormente, referíamo-nos a ela na forma das musas; aquele ser que, ainda em Homero, vê e sabe, mas fala somente através do poeta. Bem mais tarde, esse fenômeno será notado e sistematizado por poetas como John Keats, Samuel Coleridge e Arthur Rimbaud – este, no sintético je est un autre [Eu é um outro]. Já na construção do filósofo italiano, essa figura é representada na lírica do pós-guerra pela imagem do muçulmano. Esse jargão, surgido num campo de concentração nazista, é usado para se referir àquela massa de indivíduos que já perderam toda e qualquer faculdade ou possibilidade de subjetivação, aqueles que já não falavam, já não reagiam, já estavam entregues. O mesmo tipo de indivíduo surgiu em todos os campos, com variações no epiteto entre “idiotas”, “aleijados”, “camelos”, “enfeites”, etc. Todavia, o nome mulçumano se relaciona com a postura corporal adotada por esses indivíduos, uma postura que denunciava, para além de suas visagens abatidas pela desnutrição, a total entrega de suas possibilidades de subjetivação. A posição era similar àquela adotada pelos muçulmanos em reza: são ambas posturas de resignação. Dissimilares, é claro, já num primeiro relance, pela convicção demonstrada no ritual religioso, em oposição à falta de assertividade dos muçulmanos dos campos: “enquanto a resignação do muslim se enraíza na convicção de que a vontade de Alá está presente em cada instante, nos menores acontecimentos, o muçulmano de Auschwitz parece ter, pelo contrário, perdido qualquer vontade e qualquer consciência” (AGAMBEN, 2008, p. 52-53). A passividade do muçulmano se fratura da – embora esteja terminantemente associada a – receptividade auto-afetiva do sujeito.

Há uma imagem provida por Agamben que me parece bastante elucidativa. Diz respeito à película fotográfica que é impressionada pela luz. Esta estaria para o testemunho como algo outro estaria para o muçulmano. Podemos imaginar esse algo outro como sendo

um filme que não se deixa revelar, o duplo daquele primeiro sujeito. Este é o que se deixa trazer à luz, que recebe e demonstra afeição, tem prazer em se deixar revelar e uma contraposta vergonha relacionada a esse prazer de deixar-se ver, pois, de alguma forma, segundo Agamben, essa tráfico com a luz tornaria a película cúmplice da ação. Podemos igualmente pensar esse duplo quanto à noção de autor e obra ou mesmo quanto às noções de obra escrita e obra interpretada. 89

Vemos que são gestos esses sempre no limite do possível, na beira do paradoxo. E, à luz desse debate, volta-se à questão: o que a aparência, a sintaxe e o estilo de um texto dizem sobre quem o escreveu? De certo modo, podemos pensar que esses elementos nada dizem sobre aquele que escreveu o texto. Eles são quem o escreveu, confusão de vida e obra, na forma da testemunha, ou a possibilidade de subjetivação. Assim sendo, o que eles dizem sobre o muçulmano? A resposta é simples: nada, pois não há possibilidade de dizer. O muçulmano é perpétuo anônimo e obscuro. Seria ele resitência ou subserviência? Paradoxal, não é nenhum dos dois como forma definida.

Volto, afinal, a Herberto Helder para finalizar meu argumento. E peço que rememorem também o gesto de Luis Jiménez descrito acima, especialmente os versos “eu penso que ele meteu os dedos de cada mão até ambos os braços desaparecerem do mundo” (HELDER, 2016, p. 589); gesto do “eu”, sujeito poético de Helder, ao pensar a morte/criação do escultor norte americano, ou “acto de paixão absoluta, de fusão com a matéria, de transmutação” (MARTELO, 2016, p. 17), como Rosa Maria Martelo descreve. Eis Helder, no início de Servidões:

Trouxeram uma vez um porco selvagem caçado nas serras e atiraram-no para cima da mesa da cozinha, uma longa mesa coberta de zinco. Abriram-no de alto a baixo com enormes facalhões e cutelos, o sangue corria por todos os lados, meteram as mãos e os antebraços na massa vermelha, e eles

89 Embora não me arrisque a fazer uma leitura psicanalítica mais profunda da questão, é importante fazer

referência, sobre o duplo, ao texto de Freud, “O inquietante”, de 1919. Freud identifica o inquietante como um retorno a uma fase primitiva já superada do desenvolvimento (ou o retorno de algo dessa fase que havia sido reprimido) em que o Eu não se diferenciava tão nitidamente do mundo. Freud postula também a associação desses estados de desenvolvimento primitivo a concepções de mundo “bárbaras” animistas, em que se acreditava que o pensamento humano poderia ter efeito material sobre o mundo. O surgimento do inquietante acusa exatamente essa divisão da consciência que Freud associa também aos ditos de poetas que sugerem a mesma dupla natureza do ser humano que discutimos acima, “No Eu forma-se lentamente uma instância especial, que pode contrapor-se ao resto do Eu, que serve à auto-observação e à autocrítica, que faz o trabalho da censura psíquica e torna-se familiar à nossa consciência [Bewußtsein] como ‘consciência’ [Gewissen]. No caso patológico do delírio de estar sendo observado, ela torna-se isolada, dissociada do Eu, discernível para o médico. O fato de que exista uma instância assim, que pode tratar o restante do Eu como um objeto, isto é, de que o ser humano seja capaz de auto-observação, torna possível dotar de um novo teor a velha concepção do duplo e atribuir-lhe várias coisas [...]” (FREUD, 2010, p. 264).

reapareceram depois como calçados de luvas sangrentas, vivas; deitaram então para os baldes as vísceras que fumegavam: os pulmões, o fígado, os intestinos. De tudo aquilo subia um perfume agudo, embriagado, doloroso. À noite tive febre. Havia qualquer coisa pérfida e perversa neste mundo das frutas fortes, dos animais esquartejados, dos cheiros, este mundo espesso e quente, um mundo de imagens orgânicas. (HELDER, 2016, p. 601-602) São mãos fumegantes e vermelhas monstruosas que surgem em vísceras aos nossos olhos. Não mãos humanas simplesmente recobertas de sangue, vapor e vísceras, vivas!90 Obra, irremediável obra In Utero! Esse é o único sujeito possível, enquanto, por outro lado, os braços desaparecem do mundo.

O romance de Laub busca se aproximar do gênero testemunho, porém fica claro que não há comprometimento do corpo nos gestos de sua escrita, excetuado, quem sabe, o gesto de morte ensaiado pelo narrador ao acelerar seu carro em direção ao acidente que fratura sua vida, único momento em que ele não deixa a ação clara e explicitada, com decisões bem examinadas, momento em que sua motivação é silenciada na forma da palavra inaudita, a palavra não-enunciada. É essa a real tragédia de seu narrador, o não-comprometimento fundamental de sua personagem, regra quebrada apenas naquele fugidio instante.

Valéria, novamente, ou, o narrador sugerindo-nos a voz de Valéria, fala em itálico. O narrador é seu interlocutor, bem como enunciador, embora o discurso o tenha como destinatário imediato.

Você que teve uma vida tão cheia de aventuras, e alguma vez teve a experiência mais importante? Alguma vez você se envolveu de verdade com alguma coisa? Você já gostou de alguém de verdade? Já fez algum sacrifício por outra pessoa? Abriu mão de alguma coisa valiosa? Deu alguma prova? Aceitou perder uma única vez? Digo perder de verdade, sem a recompensa de ser vítima. Só você e a sua derrota. Você e o fim. Só o fim. Mais nada e ninguém, apenas o fim. (LAUB, 2013, p. 107).

Em dado momento do romance, Valéria, a personagem, àquela altura da narrativa, ainda viva, questiona o narrador sobre suas preocupações quanto ao serviço no quartel, que o impede de ir ao desejado show do Nirvana: por que você não simplesmente vai? A ação é irrealizável ao narrador-sem-nome. Ele conjectura somente. Ir ao show significaria tornar-se desertor, arriscar a prisão, abdicar de diversas ou impensadas possibilidades futuras, quem sabe um concurso público.

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Freud discute também a possibilidade do inquietante estar ligado a um objeto vivo que aparenta estar morto ou de um objeto morto que aparenta estar vivo. O duplo é também, afinal, na forma da alma imortal, uma primeira reação psicológica humana à presença da morte.

Figura 2 – Kurt Cobain, Vancouver, 1992

Fonte : Peterson (2003)91

A foto acima consta na compilação de Charles Peterson intitulada Touch me I’m sick [Toque em mim estou doente] (2003). Uso-a aqui para criar um choque entre a perspectiva de não-comprometimento corporal do personagem de Laub e o necessário compromentimento do corpo na performance daquele momento representado pela foto, em seu click fugidio. Na foto, Cobain é representado em performance. No meio de uma cambalhota, ele parece quase ereto. Parece continuar tocando, canhoto e, naquele momento, invertido também de ponta cabeça. Sobretudo, nessa representação, Cobain é humano e não-muçulmano, pois seu corpo se insere na mídia e cria-se em voz, ainda que resguarde em sua potência também o ruído de gestos alternos.

91 Também disponível no site http://constructionlitmag.com/culture/music/great-rock-photographers-charles-

peterson/1345215508000/. Na mesma página, pode-se ler o relato de Peterson sobre a foto, como se segue: “[...] there’s the one photograph of him where he’s got his legs up in the air. You don’t see his face really; he’s still playing the guitar. It’s kind of at a diagonal in the frame. He’s doing a somersault essentially, but it just sort of looks like he’s floating above the stage upside-down. Just like Mick Rock said, that’s one of those shots that just happened in the blink of an eye. Especially back then when you were shooting film you didn’t know whether you got it or not, or anything, until a day or two later. So, you just kinda took it and maybe filed it to the back of your mind that this is something that happened but just kept on shooting.” Acesso em 19 de março de 2017. Eis a minha tradução: “[...] tem uma foto dele em que ele está com as pernas no ar. Você não vê o rosto dele; ele ainda está tocando guitarra. É uma espécie de diagonal no quadro. Ele está fazendo uma cambalhot, mas parece que ele está flutuando acima do palco de cabeça para baixo. É como Mick Rock disse, essa é uma daquelas fotos que aconteceram em um piscar de olhos. Especialmente naquela época, quando você estava fotografando, não sabia se tinha conseguido ou não, até um ou dois dias depois. Então, você tira a foto e talvez arquiva na parte de trás de sua mente que isso é algo que aconteceu, mas seguiu fotografando”.