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1.1. O RUÍDO NA MÚSICA POP, UM PANORAMA

1.2.3 Música surda

Carrie Jaurès Noland identifica a perversão de simbolismos cristãos, a dissonância exagerada da musicalidade e a desconstrução da ortografia textual nas letras de Patti Smith como uma reiteração dos ideais da “musique sourde” [música surda] de Rimbaud. Este era um componente primal, apenas tematizado e não executado pelo poeta francês (que ainda dependia fortemente de uma coesão textual implícita para formular suas obras no meio literário escrito). Para Noland, o que a cantora americana, reconhecida como madrinha do punk, preconiza através desses procedimentos é a proximidade da linguagem ao ruído e do ruído ao corporal, mais especificamente à transformação corporal (NOLAND, 1995, p. 597).

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No texto fonte: “We are blue colar and below [...] People who grow up with money always say that [que a música não deveria ser sobre o dinheiro] because they have safety nets. We don’t have safety nets” (TRUE, 2006, p. 201)

Essa proximidade é apropriada através de uma força primitiva criadora (rementente aqui ao “travail nouveau” [trabalho novo] do ferreiro na simbologia rimbaudiana), experiência corporal, ruído primal do mundo.

É pertinente explorar os termos usados por Rimbaud e Noland para definir essa operação criadora. Ela explica: “Para criar – isso é, para retornar à fonte da criação no ruído físico e primal do corpo ressacralizado – deve-se surrar [beat], como alguém surra um objeto de ferro para se forjar um novo” (NOLAND, 1995, p. 597-598). O termo beat, próprio à geração literária norte-americana da década de 1950 e 1960, é chave aqui. Ademais, Noland desenvolve essa nomenclatura, de acordo com a obra de Rimbaud, que se utiliza de termos análogos tais como “être de Beauté” [ser de beleza] ou “mère de beauté” [mãe de beleza] para significar exatamente essa experiência corporal e o ruído primal incessante do mundo dos quais o indivíduo toma parte. Assim, na obra rimbaudiana, filiar-se à beauté é tomar parte de uma “cena em que uma música feral e fatalista (uma música surda!) parece fazer com que um corpo – o corpo do texto poético, da linguagem, do próprio falante – exploda [...] efetuando o que se tornará a quintessência do sonho punk de total transformação material” (NOLAND, 1995, p. 600, tradução minha). 60

Para Noland (1995, p. 603), esse é o sonho estético definidor da modernidade no século XX e de suas vanguardas, mitificado na figura cristalizada de Rimbaud e no imaginário e desígnio dos punks. O modo de apresentação mais comum dessa potência criadora em textos verbais é a glossolalia,61 e seu efeito imediato é a dissolução dos laços de unidade social e das

60 Seguem abaixo ambos os trechos destacados nesse parágrafo, em suas versões originais: “To create - that is, to

return to the source of creation in the primal, physical noise of the resacralized body - one must beat, as one might beat one iron object in order to forge another” (NOLAND, 1995, p. 597-598) e “’Etre de Beaut’ (uppercase) returned to its origin in the (lowercase) ‘mere de beaut’ – origin, corporeal experience, primal noise of the world. Thus, ‘Being Beauteous’ describes a scene in which a feral, fatalistic music (a musique rauque!) seems to cause a body – the body of the poetic text, of language, of the speaker himself – to explode […] Realizing what will become the quintessential punk dream of total material transformation (NOLAND, 1995, p. 600).

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O termo pode ter uma conotação religiosa ou científica. Em ambos, refere-se a linguagens novas e/ou desconhecidas criadas pelo falante seja em transe ou em distúrbio. O termo é utilizado por Noland para indicar a associação performática da língua (corpo, meio e sistema), da linguagem com uma violência pré-linguística em direção a uma arte de salvação espiritual. Eis o trecho em que ela realiza essa associação, primeiramente com a poesia de Rimbaud, depois com as canções de Smith: “The effort to go beyond, to pass through, is staged in both

Une Saison en enfer and the Illuminations as a kind of babbling: a "musique sourde" in "Being Beauteous" and a

pagan tongue in "Mauvais sang." This babbling or production of incoherent speech corresponds to an aggressive battling, as in "Guerre" where the poet dreams of a war "aussi simple qu'une phrase musicale" […] and in Une

Saison en enfer, where a "bataille d'hommes" is identified with spiritual combat […] The barely sublimated rage

of Smith's music – her exaggerated, sardonic twisting of vowels, the dissonance of her orchestrations – also implicitly associates violence and prelinguistic glossolalia with an art of spiritual salvation.” (NOLAND, 1995, p. 603). Segue a tradução: “O esforço para ir além, para atravessar, é encenado tanto em Une Saison en enfer como em Illuminations como uma espécie de balbucio: uma musica surda em “Ser de Beleza” e uma língua pagã em “Sangue ruim”. Esse balbucio ou produção de discurso incoerente corresponde a um combate agressivo, como em “Guerra” onde o poeta sonha com uma guerra “tão simples como uma frase musical” [...] e em Une

comunidades baseadas em distinções tradicionais. A prática punk de apropriar e reorganizar fragmentos desses sistemas, em deslocamentos, justaposições e ambiguidades típicas da prática poética (colocadas agora em contextos iminentemente políticos de performance) criam possibilidades de uma participação mais ativa na produção de significados sociais. Em última instânca, essas práticas devem servir para coagular os sistemas. Esse é o posicionamento de Noland. 62

Parece-me, contudo, que esses procedimentos pretensamente curativos são também extremamente volatéis.

Vejamos que, diferentemente dos versados Patti Smith e Richard Hell, os Dead Boys de Stiv Bators eram, como os Stooges de Iggy Pop, da periferia de cidades do meio oeste americano, mais especificamente, do estado de Ohio (os Stooges se formaram em Detroit e os Dead Boys em Cleveland). Eles não estavam interessados em referências literárias a Arthur Rimbaud. Suas referências eram o próprio Iggy Pop, o MC5 e uma tradição americana mais

Saison en enfer, onde um “batalha de homens” é identificada com o combate espiritual [...] A raiva mal

sublimada da música de Smith – sua exagerada e sardônica distorção das vogais, a dissonância de suas orquestrações – também associa implicitamente a violência e a glossolalia pré-lingüística à arte da salvação espiritual". (NOLAND, 1995, p. 603, tradução minha).

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O texto fonte que serve de base para o parágrafo acima segue: “The disruption of all social units, of all communities based on traditional distinctions, is indeed one of the dangers of what Barthes called Rimbaud's "terrorist" poetic practice, a danger perceived almost instinctually by countercultural musicians of the late sixties and seventies. It is likely that Rimbaud's significance for these musicians lay in the fact that he, perhaps more than any other poet, explored and exploited what is most poetic about poetry, what makes poetry distinct from other linguistic practices, namely, the extensive use of figures, displacing elements from one semantic field to another. Poetic figuration is in this sense paradigmatic of the type of cultural displacements, odd juxtapositions, and forced ambiguities promoted by punk subculture. The punk practice of appropriating and rearranging fragments of integrated sign systems suggests, as does poetic figuration in general, the possibility of a more active participation in the production of social meanings. The fragments that punk manipulates (high-cultural referents, low-life paraphernalia, crosses, swastikas, and lingerie) evoke the very systems of overdetermination from which they have been wrenched; but the practice of rearranging these fragments works ultimately to scramble the systems to which they belong (including the hierarchical system governing cultural production), thereby annulling these systems' power to determine meaning and value” (NOLAND, 1995, p. 603). Chamo atenção, através do uso do termo “coagular” acima, para outra possível ligação que vejo das práticas observadas por Noland ao termo do phármakon de Derrida (2005): cura ou envenenamento. Eis a tradução do trecho: “A ruptura de todas as unidades sociais, de todas as comunidades baseadas em distinções tradicionais, é de fato um dos perigos do que Barthes chamou de ‘a prática terrorista’ de Rimbaud, um perigo percebido quase instintivamente por músicos contraculturais do final dos anos sessenta e setenta. É provável que o significado de Rimbaud para esses músicos esteja no fato de que ele, talvez mais do que qualquer outro poeta, investigou e explorou o que é mais poético sobre a poesia, o que torna a poesia distinta de outras práticas lingüísticas, ou seja, o uso extensivo de figuras, deslocando elementos de um campo semântico para outro. A figuração poética é, nesse sentido, paradigmática do tipo de deslocamentos culturais, justaposições estranhas e ambiguidades forçadas promovidas pela subcultura punk. A prática punk de apropriação e rearranjo de fragmentos de sistemas de signos integrados sugere, assim como a figuração poética em geral, a possibilidade de uma participação mais ativa na produção de significados sociais. Os fragmentos que o punk manipula (referências culturais elevadas, parafernália da vida baixa, cruzes, suásticas e lingerie) evocam os próprios sistemas de sobredeterminação a partir dos quais foram arrancados; mas a prática de reorganizar esses fragmentos funciona, em última instância, para embaralhar os sistemas aos quais eles pertencem (incluindo o sistema hierárquico que rege a produção cultural), anulando assim o poder desses sistemas para determinar significado e valor.” (NOLAND, 1995, p. 603, tradução minha).

focada nas raízes negras, obscurecidas na mídia de massa, do blues,63 fincadas nas performances de uma classe de artistas que sempre viveram às margens da sociedade, uma vez que não eram amplamente comerciáveis, seja por questões ideológicas, como no caso do MC5, ou raciais, como nos casos dos bluesmen originais do Delta do Mississipi, ou ainda de outros mais contemporâneos como John Lee Hooker e Muddy Waters.

O corpo de Cobain pode ser visto exatamente como a possibilidade mais amplamente comerciável desse espectro mais largo de ruído, a possibilidade ampla de expressão que essa tendência encontrou na sociedade americana da época ou um último bastião branco ao qual o conservadorismo cultural pode ter tentado se agarrar, num momento antes da aclamação pública mais ampla da cultura negra, na forma do hip-hop, como linguagem pop franca. Voltaremos a isso.

Todavia, meu argumento principal neste trecho é de que a desconstrução da linguagem ou o ruído que essas bandas suburbanas produziam não tinha necessariamente bases literárias, se entendemos a Literatura como o cânone disseminado necessariamente na mídia hegemônica da escrita. Não é minha intenção aqui justificá-las através desse contato.

Em diversas entrevistas, Iggy Pop atribui às suas referências musicais uma qualidade comum: intensidade tal que lhe permitia encontrar uma expressão de natureza primitiva e “tomar o sexo quando eu quiser, tomar o dinheiro quando eu quiser.” (informação verbal).64

O mesmo traço se encontra na percepção de Jorge Cardoso acerca do disco Nevermind do Nirvana:

[...] percebia-se em Nevermind, singularidades que combinavam com as expectativas da época e permitiam um acolhimento sem estranhamento. Singularidades menos codificadas, que não diziam respeito a grupos particulares, mas a uma força expressiva primitiva da qual os códigos derivavam. [...] expressividade não datada [...] Era o som do presente (“soava simplesmente impressionante”) e a ênfase nesse aqui e agora, no processo de produção de presença, marca a relação dos ouvintes com Nevermind. [...] Ao expressar essa força primitiva, Nevermind fez prevalecer a experiência intensa de uma ação, ação expressada pelo corpo do ouvinte no ato de dançar [no caso dos registros fonográficos]. (CARDOSO, 2013, p. 100, comentário meu).

63 Iggy explica que: “Depois de ouvir Paul Butterfield Blues Band, John Lee Hooker e Muddy Waters, e até

Chuck Berry tocando a música dele mesmo, não consegui voltar e ouvir a British Invasion, sabe como é, uma banda como os Kinks. Vai me desculpar, os Kinks são legais, mas quando você é jovem e está tentando descobrir onde estão seus culhões, você entra numas: ‘Estes caras tocam como uns maricas!’” (MCCAIN, 2004, p. 54).

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Em entrevista de 2010, a Sam Dunn, para a série televisiva Metal Evolution, acerca da cena musical norte- americana dos anos 1970. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=wONoxYjfNQo>. Acesso em 16 de outubro de 2017.

Em outro momento Cardoso descreve essa força expressiva primitiva como “Aquela zona ‘primitiva’ ou ‘abaixo’ da interpretação” (CARDOSO, 2013, p. 179). Assim vemos que na produção de ambos os contextos delineados reside essa força expressiva que tende à destruição dos códigos e sistemas linguísticos mais tradicionais, bem como tende à obliteração de um passado (e até de um futuro) histórico, na abertura da fenda de um presente vertiginoso arriscado. Vemos também que as emergências desses processos de desconstrução estão em muitas instâncias atadas à violência do corpo em performance. Nesses eventos culturais, há, pois, uma implicação necessária dos corpos em movimento, da música em si como movimento e da expressão poética como fato inicial da performance, seja em registro ou em co-presença.

Paul Zumthor, ao falar da poesia medieval, afirma que “[...] a voz humana, a transmissão da poesia, entre os séculos X e XIV, exigiu o gesto humano; e, além disso, enquanto essa voz poética tendia ao canto, o gesto poético tendia à dança, sua última realização. Insisto nesse ponto, a meu ver, crucial” (ZUMTHOR, 2001, p. 249). Mais uma vez, reforço as imagens da dança e do dançarino-poeta como veículos e sujeitos literários, imagens já sugeridas pelas falas de Patti Smith e Liliana Coutinho e que serão importantes a seguir, no fechamento deste primeiro capítulo.