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o cortejo: reexistência do poder real

No documento Pele da cor da noite (páginas 48-51)

A assistência se levanta. Um toque especial do atabaque acompanha a entrada do cortejo. Não era um toque de dança. Era um toque que anunciava a che- gada de alguém que se distingue, que se autoriza ser a primeira. À frente do

9 o mesmo que festa.

10 Título honorífico para homens. Pai na comunidade.

11 Nos terreiros é importante o nome civil ou o nome religioso pelo qual se é conhecido. Às vezes ninguém

reconhece o nome próprio da mesma pessoa.

cortejo caminhava Mãe Stella,13 trazendo ao seu lado a filha de Oxum home-

nageada. Eu entendi a chegada daquelas pessoas especiais no espaço sagrado como uma experiência que retroage sobre a história. O cortejo adentrava com toda singularidade de sua história. Dobraram os atabaques e toda assistência se levanta respeitosamente. Decerto que não se tratava de uma ressurreição do passado, porque não havia passado. Tudo estava no presente. A seguir, en- traram os ogans ekedes,14 filhos e filhas de santo, mais velhos. Sentadas lado a

lado, as duas líderes, duas Iyalodês, cada uma no seu posto.

O passado enquanto memória não resiste, entra no agora e se presentifica no tempo sagrado. Se indago sobre a percepção do momento presente, posso entender que não se trata de um momento matemático. O presente é o mo- mento idealmente concebido sem duração. É o tempo presente do passado que também é o presente do futuro.

Na eminência do acontecimento ritual, a África dos nossos ancestrais estava reterritorializada na sua atemporalidade. Ali se fazia exposta a cosmovisão do povo de santo, no seu repertório simbólico, político e cultural. Havia todo um aparato reconstruído que se mostrava na ornamentação do barracão, na postura daquela gente que sabia o quanto aquele momento importava para as suas vidas e para a sua condição de ser, pertencer e participar da comuni- dade. A comunidade Afonjá orgulhosamente contemplava as duas guardiãs da nossa religião e cultura. Elas estavam ali dignas e altivas, representando a ancestralidade da comunidade.

Naquela noite, vivi um tempo desafiante das leis da normalidade. A minha estranheza pela ignorância do ritual não me impedia de entender que eu esta- va participando de uma festa do meu inconsciente e do avivamento da minha ancestralidade negra. Eu estava participando de uma narrativa saída das pro- fundezas da memória do lugar e afetava o meu jeito de ser e estar naquele espaço sagrado. Todos os meus sentidos estavam empanturrados do ambien- te e de sua narrativa em forma de festa, gestos, canto, cores e dança numa recriação de fatos e histórias ritualizadas que não se perderam na travessia transcontinental.

13 Mãe Stella é Iyalorixá (Mãe de Santo) do Ilê Axé Opo Afonjá. Posto máximo numa comunidade religiosa de

origem nagô.

Aquele momento significava, portanto, a entrada num mundo onde a mani- festação do sagrado tem como consequência uma valência territorial-cosmo- lógica. O território, no caso, tem início na porteira pela sua importância física e simbólica.

O terreiro é um território gerado por uma teia cultural que se apresenta como um conjunto indissociável pela identidade grupal e solidariedade da educação na vida. Isso não afasta suas contradições e sérios conflitos que afetam e dese- quilibram as vivências comunais. A porteira é o início de tudo. É onde tudo se transforma numa natureza humanizante, onde tudo e todos se inter-relacio- nam numa dinâmica como Mãe Stella costuma repetir: “todo aquele que entra por aquela porteira se torna imediatamente um irmão”. Uma comunidade de terreiro se organiza como um egbé, uma família no seu sentido mais amplo. A comunidade, o egbé, no seu significado matricial, estava reunida para a fes- ta de Mãe Pinguinho. Um egbé de muitos filhos, pais, mães e muitos irmãos como a família ancestral trasladada na memória do povo negro na diáspora. Um zelo primoroso pela preservação do sagrado se mostrava na festa de ex- trema beleza e sensualidade. Toda sensibilidade humana, desordenadamente, seduzia meus sentidos. Importante a minha identificação com o evento eiva- do de dinamicidade que me fazia dançar pulsando meu corpo e minha alma vigorosamente desvelando outras marcas do meu sistema perceptivo. Ali estava eu, naquele lugar, encharcada de novidades como receptáculo da dinâ- mica de um movimento que me levou para aquele acontecimento presente. Os eventos, como vivenciamos ritualisticamente, falam de um mundo que não está fora de nós. Cada um de nós estava ali carregando dentro de si o mundo ao qual pertencemos desde sempre. Daí que, considerar o ser na comunida- de incluindo seus gozos e conflitos tem um significado. Afinal, o mundo e a comunidade somos nós. Para compreender o mundo é preciso compreender a nós mesmos e nossas vivências individuais e coletivas. Na comunidade de terreiro, a memória cultural revive tanto na presença do mais velho e da mais velha, como nos eventos que são repetidos em forma de festas como um jogo nos rituais sagrados. Na verdade, eles são muito mais do que acontecimentos que se repetem. São também ideias que representam uma postura política de exercício de liberdade de ser. Eventos organizados que se renovam no modo de se realizar e de entender realidades pessoais e comunitárias. A intenção deve ser, antes de tudo, compreender a nós mesmos na vivência presente.

Decerto que tanto o gozo como as turbulências do mundo também são nos- sos problemas comunitários. São fenômenos, são acontecimentos que nos motivam a repor a memória e proceder à evocação restauradora das lembran- ças da comunidade que se reconstrói a cada evento. E tudo nos afeta e nos propicia o autoconhecimento.

A compreensão de nós mesmos e do lugar onde celebramos a ancestralida- de renova a vida de velhos e novos. Em outro contexto, a fala de Bosi (1994, p. 18) indaga o que é ser velho na sociedade capitalista. A resposta vem cer- teira como uma flecha no tempo: “É sobreviver, impedido de lembrar e de ensinar sofrendo a adversidade de um corpo que se desagrega à medida que a memória vai-se tornando cada vez mais viva, a velhice que não existe para si, mas somente para o outro. E este outro é o opressor”. Imagino a desven- tura quando o indivíduo é capaz de perder-se dentro dele mesmo. Como falar das coisas sem integrar a este mundo que é um lugar, um cenário memorável onde coexistem as lembranças do lugar?

A memória nos terreiros se apoia na confiança de que os ancestrais não mor- rem, não se afastam da comunidade. E que os valores ligados ao coletivo persistem na família, na vizinhança, apoiando a memória e a cultura do lugar. Recolocando esta afirmativa no presente do presente, as memórias do povo de santo transformam acontecimentos em coisas eternas que se repetem sempre nas suas diferenças criadoras. Como não falar dessas coisas eternas que se repetem pela memória celebrativa cuja vitória é manter a nossa história e tradição? Somos esta história.

os mitos e os rituais: a chave que abre

No documento Pele da cor da noite (páginas 48-51)