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reconhecendo as múltiplas verdades

No documento Pele da cor da noite (páginas 54-58)

Conta-se que no princípio havia uma única verdade no mundo. Entre o Orun15 e o Aiyê havia um espelho. Daí é que tudo que se mos- trava no Orun materializava-se no Aiyê. Ou seja, tudo que estava no mundo espiritual refletia exatamente no mundo material. Nin- guém tinha a menor dúvida sobre os acontecimentos como verdades absolutas. Todo cuidado era pouco para não quebrar o espelho da verdade. O espelho ficava bem perto do Orun e bem perto do Aiyê. Naquele tempo, vivia no Aiyê uma jovem muito trabalhadora que se chamava Mahura. A jovem trabalhava dia e noite ajudando sua mãe a pilar inhames. Um dia, inadvertidamente, perdendo o con- trole do movimento ritmado da mão do pilão, tocou forte no espelho que se espatifou pelo mundo. Assustada, Mahura saiu desesperada para se desculpar com Olorum. Qual não foi a sua surpresa quando

O encontrou tranquilamente deitado a sombra do Iroko.16 Depois de ouvir suas desculpas com toda a atenção, declarou que dado aquele acontecimento, daquele dia em diante não existiria mais uma única verdade e concluiu: De hoje em diante, quem encontrar um peda- cinho de espelho em qualquer parte do mundo, estará encontrando apenas uma parte da verdade porque o espelho reproduz apenas a imagem do lugar onde ele se encontra.17

Neste contexto, valho-me deste exercício acadêmico para refletir o fragmento espelhado qualificante deste estudo com a perspectiva de pensar a educa- ção do povo brasileiro na sua complexidade étnico-cultural, integrada pelo pensamento africano que, considerando as sutilezas das diferenças, cons- trói e evidencia valores oriundos da ancestralidade. Pensamento como força e princípio estruturantes de convivências na comunidade que acolhe, cura e ampara. Convivência que me possibilitou a compreensão do discurso silen- cioso do lugar-terreiro. Discurso que se desvela e se projeta nas camadas mais internas e imanentes da minha existência. Discurso de um lugar onde a fala pode ter sua correspondência no olhar atento, na escuta ou nas respostas que se revelam sem o compromisso com uma única verdade.

Falo do pensamento africano, uma das verdades deste meu lugar que é uno e múltiplo. Verdade que, por sua própria condição de reexistência, é resultan- te da complexidade de etnias que se imbricaram na formação de uma outra cultura, de um outro povo africano na diáspora. Assim nasceu o povo afro- descendente que se esparramou pelo mundo, onde o presente o passado e o devir não se separam em categorias estanques.

Falo de um lugar que conheço e faz parte do mundo ao qual pertenço. Não por escolha, mas por uma lógica de pertença ancestral que me envolve numa con- dição de ser-sendo. Compreendo esta relação como expressão ontológica da minha condição humana essencial. O sentimento da pertença ancestral não autoriza a me separar de outros fenômenos que vivencio enquanto indivíduo e ser social.

16 Árvore considerada sagrada para os iorubanos. No Brasil foi substituída por gameleira branca.

17 História mítica adaptada por Vanda Machado e carlos Petrovich para a Cartilha das religiões publicada pela

Sou feita18 de Oxum. Esta é uma condição que me autoriza a olhar o mundo

como parte de mim mesma. Considerando um jeito de pensar que vai além do domínio do cognitivo, acreditamos que estamos no mundo e o carregamos dentro de nós na multiplicidade de elementos da natureza que nos compõem. As vivências do povo de santo se plasmam nos confins de um mundo arcaico instaurado pela ancestralidade magnificada no seu caráter essencial e numi- noso. Compreendemos, então, que o mundo em que vivemos é uma realidade oriunda também de nossas próprias percepções, que estão na razão dos sen- timentos humanos numa implicação do além do vivido. Com efeito, a nossa consciência apenas reflete à maneira de um espelho a luz originária do que percebemos. Pertencemos ao mundo de intensas possibilidades criadoras. Mundo que nos contém e que nos enche das suas mais diversas formas de energias vitais e interdependentes como uma trama que produz a si mesmo. Bâ (1982, p. 186) nos diz que

Deve-se ter em mente que, de maneira geral, todas as tradições africanas, postulam uma visão religiosa do mundo. O universo visível é concebido e sentido como o sinal, a concretização ou o envoltório de um universo invisível e vivo constituído em forças em perpetuo movimento. No interior dessa vasta unidade cósmi- ca, tudo se liga, tudo é solidário e o comportamento do homem em relação a si mesmo e em relação ao mundo que o cerca (mundo mineral, vegetal, animal e a sociedade humana) pode se constituir como objeto de regulamentação ritual.

Estamos falando de eventos que acontecem num espaço-tempo multirrefe- rencial em que o estado e os movimentos dos corpos materiais e a distribuição desses corpos determinam configurações míticas envolvendo a invariância da matéria em suas transformações que afetam vivências e o imaginário. Neste sentido, os rituais, presentes na comunidade, sintetizam momentos impor- tantes de todos os tempos que constroem as pessoas e a comunidade. Como observa Heidegger (2002), o passado jamais segue o ser, mas o precede. É o passado que, caminhando na frente, vai adaptando-se à realidade do presen- te como tradição. Pensando deste modo, estamos diante da complexidade de

18 Linguagem usual para pessoa que passou pela experiência de fazer o santo, fazer a cabeça, se tornar omo

uma perspectiva dialógica. A matéria e o espírito se reconhecem e formam uma unidade não linear num processo dinâmico repleto de subjetividades. Por outro lado, entendemos que a Ciência convencional sempre buscou eliminar a subjetividade das suas explanações, o que dificultaria compreender a nossa própria subjetividade como objeto científico. Aí é que estabeleço um mergu- lho em mim mesma e na minha comunidade no seu aspecto mais arcaico e paradoxalmente atualizador. Mergulho e, ao emergir, trago um outro tempo repleto de novidades que só podem ser consideradas como transitórias. E por não se tratar de recair em crenças puramente mágicas, a educação ins- pirada nas subjetividades deste imaginário é mitopoética e polissêmica. Esta é uma condição que sugere a fluidez, a descristalização e a transgressão do modelo cultural instituído, fechado no assujeitamento de pensamentos line- ares. Por analogia, o que prefiro chamar de feitura ao invés de iniciação é por entender que esse é o momento de se fazer a cabeça, preparando aquele que está sendo feito para aprender a aprender. Neste caso, cada um estaria vol- tado para a sua melhor forma de aprender na vida e no caminho da emoção de cada dia. Aprender na vida também como poesia. Aprender descobrindo novas estruturas internas. Aprender percebendo o extraordinário no cotidia- no. Aprender, nessa condição, seria preparar-se para viver o cotidiano na sua complexidade criadora gestando novas sensibilidades e sentidos.

Viver no terreiro, sendo feita ou não, é estar pronto para construir seus saberes a partir de um novo espaço interno. Um espaço vivo e estimulado para apren- der com todos os acontecimentos. A aprendizagem inclui atos celebrativos que estimulam e agregam tudo que dá vida à vida comunitária. As educadoras da Eugênia Anna passaram por esta experiência vivenciando as possibilida- des de compreender o mundo como algo que se move dentro e fora de nós mesmos. É um lançar-se além de si para o encontro de outras vivências, outras leituras e da compreensão de outros códigos experienciais. No Afonjá, vive- -se um mundo africano tradicional onde tudo existe em potência. Tudo está para acontecer ou dissipar-se. Vive-se o mundo das possibilidades.

No documento Pele da cor da noite (páginas 54-58)