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Educar em-sinando na extraordinariedade do cotidiano

No documento Pele da cor da noite (páginas 42-44)

Naquela festa de Oxum, no Afonjá, Mãe Pinguinho se mostrava com toda alegria festejando as suas bodas. Eutropia Maria de Castro, que atendia pelo nome religioso de Iya Oxum Funmixê, continua sendo lembrada por suas ações enérgicas com seus filhos. Mãe e mestra, ela não precisava ensinar, bas- tava ficarmos atentos ao que ela fazia, falava ou cantava. Era assim que ela nos colocava no lugar apropriado. Mãe Pinguinho foi Iya Kekerê no Afonjá por quase 40 anos. A Iya Kekerê é uma espécie de segunda pessoa da Iyalorixá, ou Mãe de Santo. Mãe Pinguinho, não deixava passar nada. Esta é uma afir- mação que ainda se pode ouvir na comunidade. Mãe Georgete, a nossa atual Iya Kekerê, aos 91 anos, tem uma lucidez invejável. Ela mantém o mesmo cui- dado, a mesma organização de valores cujo significado e uso compartilhado conservam as marcas de códigos específicos para a manutenção da tradição religiosa e de nossa essência negra. Neste caso, parece que identidades são construídas e atendem à demanda de um chamado espiritual, dentro de uma perspectiva do saber fazer o que está fazendo e por que está fazendo.

O espaço do terreiro compreende um lugar atemporal e possui métodos pró- prios de aprender e de ensinar. Os nossos mais velhos aprenderam a fazer observando, imitando e admirando os seus mais velhos nos seus saberes e fa- zeres. Como que obedecendo a uma cadeia para a manutenção, continuidade e expansão da cultura dopovo de santo cabe-lhes ensinar como aprenderam para que os mais novos possam dar continuidade à tradição. De fato, o ato de en-sinar na comunidade de terreiro significa colocar o outro dentro do seu odu, dentro da sua própria sina, do seu caminho, do seu jeito de ser no mundo do jei- to como ele é. Entendemos que esta é uma singularidade que merece ser situada dentro do pensamento de matriz africana. Estamos falando mais precisamente do pensamento tradicional africano recriado nas comunidades de terreiro. Entendemos este jeito de ensinar como um modelo de educação oportuna e desveladora, porque cada ensinamento corresponde a um desejo ou algo a ser desvelado pela necessidade de aprender para ser o que se é sendo. Educar na

vida. Esta é a essência de uma forma de transmissão da sabedoria como patri- mônio cultural e religioso. É o que dá significado à vida cotidiana. No terreiro, pela feitura nascemos inseridos na sua cotidianidade.

A maioridade acontece quando adquirimos sabedoria e competência sufi- cientes na vida e na comunidade. Também são condições de maioridade, autonomia e domínio das relações de convivência com os mais novos e com os mais velhos. Esta forma abrangente de en-sinar foi ainda o que me ins- pirou o Projeto Irê Ayó8 implantado na Escola Eugênia Anna dos Santos na

comunidade Afonjá. Forma de educar que atende sonhos, desejos e utopias. Consideratambém a necessidade de interligar todos os acontecimentos vi- vidos, todas as vivências cotidianas com a Arte, as ciências, a Filosofia e a cultura.

Decerto que as vivências da comunidade estão lastreadas em princípios e valores humanos que consideram a vida, o corpo e a ancestralidade na inter- dependência entre o ser e tudo que pode ser respeitado como vida no planeta. Tudo que se move como uma teia dinâmica em todas as direções. Inspirada nos princípios básicos que regem a convivência na comunidade, encontra- mos outros paradigmas para se compreender a educação como outra forma de en-sinar. Educação como possibilidade quando se oportuniza aprender pela necessidade de ser, valendo-se dos acontecimentos cotidianos conside- rados na sua extraordinariedade. Este é o sentido para que estejamos sempre atentos a tudo que possa contribuir para a busca de ser antes de aprender para ter. Ser, numa comunidade de terreiro, está associado também ao po- der, aos postos, aos cargos honoríficos. Aprender a ser, aprender a vida são valores básicos do povo de santo. A cada tempo, o saber de cada tempo para ser, para cuidar de si, do outro e da vida. Cada saber tem um efeito precípuo. No terreiro, pelas vivências, aprende-se a ser-sendo participando dos fazeres comunitários. Busca-se, então, compreender mais profundamente o ser. Esta é a condição para complementaridade entre os acontecimentos e a qualidade do que se é essencialmente. No terreiro, aprende-se pela rememoração viven- ciada seguindo múltiplos códigos de comportamentos específicos para a vida comunitária comprometida, inclusiva e solidária. Para Sodré (1988, p. 54):

A perspectiva africana do terreiro, ao contrário, não surgiu para ex- cluir os parceiros do jogo (brancos, mestiços, etc.) nem para rejeitar a paisagem local, mas para permitir a prática de uma cosmovisão exilada. A cultura não se fazia aí como efeito de demonstração, mas uma reconstrução vitalista para ensejar uma continuidade geradora de identidade

Para a continuidade geradora de uma identidade brasileira, temos a considerar que a compreensão do mundo é bem maior do que a compreensão ocidental do mundo. Nas comunidades de terreiro, o mundo é singular e plural pelas vi- vências mitológicas. Cada um vive um cotidiano só compreensível por aqueles que passaram pela experiência da feitura. São pessoas que foram inseridas num sistema de vivências onde prevalece uma única regra, uma exigência: a conti- nuidade e a expansão do grupo pela preparação para a iniciação de outros filhos, outros membros para a comunidade. Sodré (1988, p. 95) afirma ainda que

As forças provêm dessa continuidade. Se na sociedade ocidental moderna o indivíduo é socialmente escolhido porque tem força, na comunidade de arché. O indivíduo tem força porque é escolhido (por um Destino). A tradição entendida como conjunto de sabe- res transmitido de uma geração para outra é uma das vertentes do Arkhé. A herança cultural repassada, a tradição é uma forma de co- municação no tempo e faz dela um pressuposto da consciência do grupo e a fonte de obrigações originárias, que se reveste historica- mente de formas semelhantes a regras de solidariedade

A herança cultural, o conjunto de saberes, o mito, o canto, a dança, os pro- vérbios, as diversas narrativas vivenciadas ampliam a percepção que ajuda a compreender a vida em sua interdependência como um enredo que permite dar significados a todos os acontecimentos do mundo em todos os tempos. Este é o sentido que traspassa da história para a solidariedade.

No documento Pele da cor da noite (páginas 42-44)