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Jogando o jogo na vida

No documento Pele da cor da noite (páginas 65-69)

Hoje, são muitos os significados atribuídos ao jogo. Busca-se um significado para o jogo quando se estuda o papel atribuído pelas teorias contemporâneas. Estuda-se o jogo no curso do movimento através da análise das mudanças do comportamento, mudança de fase e alterações no padrão de informação. A ciência descobre no jogo a singularidade do singular e seu caráter de irre- versibilidade; entende-se que o singular nunca se repete exatamente igual ao anterior, apenas parcialmente.

Portanto, há sempre uma porta aberta para a novidade, para o que está em imanência, para o diferente. O jogo de búzio praticado como divinatório pode ser considerado de modo similar. Essa é como uma parte de um fenô- meno que cobre todo campo do pensamento africano com a função de olhar a vida. Olhar a vida significa ter acesso ao processo fecundo do conhecimento de si, que envolve o ser e a sua vida vivente.

Entendemos que cada cultura trata de aplicar ao jogo noções percebidas pelas inúmeras formas de significados e interpretação da palavra ou pela inclusão da função do jogo jogado e do jogo jogante. A percepção científica do jogo e do acaso tem constatado que o conhecimento das ciências físicas existe desde os primórdios da humanidade. Desse modo, o que está na interpretação da criação, inventando as cosmologias contemporâneas, é que nos permite fazer releituras do acaso, do tempo, do espaço-tempo e do jogo.

Esta é uma consideração a partir das contribuições de Heisenberg (1981). Pare- ce que, nesse sentido, é possível afirmar que o pensamento africano, desta- cadamente a mitologia africana, serve como reflexão para aproximação ou reconciliação da Ciência com a Filosofia, com a Psicologia moderna e a Educação. Neste caso, o jogo pode ser compreendido como fenômeno da condição hu- mana e da cultura e comunga, em geral, com padrões de organização simi- lares, relações, tensões, inversões, irreversibilidades e regras particulares. Como acontecimento singular, o jogo jogante transforma, permitindo fazer releituras do acaso e do espaço na sua atemporalidade. O jogo no pensamento africano é indissociável da mitologia na vida. A mitologia africana é pródiga na explicação do mundo como universo em construção, como um jogo inaca- bado, repetível infinitamente.

Os elementos presentes no jogo divinatório preservam a ideia do jogo como um universo de todas as probabilidades. Tanto o aspecto que está sendo desvelado, como o que se encontra em imanência fazem parte de um fluxo imponderável do destino e das escolhas de cada um ao longo da vida. Aqui também se incluiu o universo constituído de uma multiplicidade de jogos que organizam e desorganizam o que está para se tornar um acontecimento no cotidiano.

Esta é uma das funções do jogo divinatório enquanto comunicação com o transcendente. Então o acontecimento é real a partir de possibilidades que estão em cada movimento do jogo. Movimento e acontecimento que se apre- sentam de forma imanente pela leitura das caídas e posição dos búzios ou de outros jogos divinatórios congêneres. Isso significa que cada movimento tem em comum a potencialidade de acontecimentos que são singulares.

No jogo divinatório, haverá sempre algo de extraordinário onde estão contidas todas as possibilidades e orientações. Naturalmente que estas serão transmi- tidas em forma de uma história a ser pensada, refletida e aplicada à vida tanto pessoal como no sentido comunitário. Histórias como poesias que fazem a mediação entre intuição, sabedoria, racionalidade e a compreensão da vida na sua transitoriedade. Histórias, espécie de diálogo com a ancestralidade. Cada palavra da história mítica corresponde a um apelo, a uma necessidade. É uma resposta que só serve para o momento. Na verdade, o que conta, via de regra, o que transforma é o não dito, o não-respondido; é o que está na relação do sujeito com a sua ancestralidade e com a vida. É o que só pode ser respondido pelas entrelinhas. É a parte da história onde se configuram o repertório de valores, crenças, sentimentos, ideias e onde se descortinam as condições es- senciais do indivíduo. A este respeito nos falou Carlos Petrovich (2003):

Compreendo o pensamento africano como fundante de princípios, valores, crença e atitudes que se revelam para mim como sementes plantadas na carne da nossa memória e que florescem concomitan- temente a todos os acontecimentos e tendem a orientar o sentido dos nossos atos como uma programação de destino.

Falamos de um jogo implicado na mitologia que abre portas significativas para ponderações que orientam, incitando ou inibindo acontecimentos. A cada

odu ou caminho, corresponde um itan.26 Insistimos que o itan é uma história

mítica sempre relacionada com a posição das caídas dos búzios. Impossível separar-se o jogo das histórias míticas que orientam o sujeito e a comunidade. As histórias míticas foram criadas desde o princípio, exatamente para fixar ensinamentos que estão no sentido da indivisibilidade do tempo e do espaço, incluindo viventes e ancestralidade.

Conta-se que um ancião, percebendo a hora da sua viagem para a ancestralida- de, chamou todos os filhos para o último ensinamento. Assim, pediu que lhe trouxesse uma vassoura. Abriu-a, entregando uma fibra para cada um de seus filhos, pedindo que a quebrasse. Todos repetiram o gesto sem dificuldade. O velho rejuntou as fibras restantes e novamente solicitou que experimentas- sem quebrar o feixe. Ninguém conseguiu. Os filhos e filhas compreenderam o desejo do velho que pensou um jeito de despedir-se da família mantendo o sentido agregador.

Este é uma forma de pensamento que não contempla uma linha divisória nem para o presente, nem para o passado, nem para o devir; portanto, o jogo é sem- pre jogante. Tudo está no presente. Todo ensinamento pela história está no presente para ser entregue em forma de vivências. Este não é um jogo prescri- tivo. Cada indivíduo é um ser suficientemente autônomo para compreender seu próprio caminho, sua conexão com a ancestralidade e imbricação com sua vida na comunidade.

O jeito de estar na comunidade é o que lhe dá a condição de um ser coletivo neste espaço-tempo indivisível. Neste contexto, é imprescindível aprender a jogar o jogo na vida. É obrigação de cada um aprender e em-sinar. Esta é uma função precípua da tradição no pensamento africano. À guisa de ilustração, conta-se que Exu saiu pelo mundo em busca dos 16 coquinhos da sabedoria. Encontrando os coquinhos, continuou sua caminhada recolhendo as 16 his- tórias para cada coquinho que representa cada odu, cada caminho. Quando aprendeu todas as histórias, ensinou aos homens. Estes ganharam o poder de saber todos os dias qual a vontade dos deuses. Estava criado o jogo do Ifá. Estava criado o diálogo entre os homens e os deuses.

Assim, a cada necessidade de diálogo com as divindades sobre acontecimen- tos, há também oferendas necessárias para que as possibilidades do bem viver

sejam plasmadas ou para que sejam dissipados os acontecimentos que não trazem felicidade. Isso importa para aquele que é feito e que se mantém nos princípios básicos para o caminho de sua iniciação que atende a um tempo que é ilimitado. É imprescindível a atenção para o princípio do Afanya, ou princípio de que Ifá sempre dirá o que fazer no tempo e num espaço ponde- rável. Na relação de tempo-espaço, compreendemos também como Bergson (1999, p. 255), quando diz que:

[...] o espaço é de fato o símbolo da fixidez e da divisibilidade ao in- finito. A extensão das qualidades sensíveis, não está nele; é ele que colocamos nela. O espaço não é o suporte sobre o qual o movimento real se põe: é o movimento real, ao contrário que o põe abaixo de si.

Daí que compreender o moderno através de sua antítese, o tradicional na re- lação tempo e espaço tem provocado instigantes discussões. A bipolaridade tradicional-moderna não se aplica ao pensamento africano como forma de existência nos terreiros nem em outras comunidades tradicionais africanas remanescentes.

Ainda há de se considerar que o tempo sagrado, o tempo mítico também estabelece um tempo existencial na história. Como apartar a história da ci- vilização africana, a escravização e a reexistência da tradição na diáspora? Trata-se de um jogo de eterno retorno, num passado que é mítico sem, con- tudo, abandonar o tempo histórico. A eterna repetição dos gestos exemplares revelados pelos ancestrais aborigine não se opõe a nenhum tipo de progresso e não paralisa a espontaneidade criadora.

O pensamento de matriz africana considera que o tempo sagrado é o que gera a história dos homens. A dimensão do sagrado está na vida e na complexidade do conhecimento. Para nós, é impossível não desconectar o diálogo entre a ancestralidade, o cérebro e a ação do ser-no-mundo. Em meio a uma densa discussão sobre o conhecimento, Bâ (1982, p. 199) conclui que,

Pode-se dizer que o oficio ou a atividade tradicional, esculpe o ser do homem. Toda a diferença entre a educação moderna e a tradição oral encontra-se aí. Aquilo que se aprende na escola ocidental, por mais útil que seja nem sempre é vivido, enquanto o conhecimento herdado da tradição oral encarna-se na totalidade do ser.

Esta fala nos remete a uma fala mítica de um tempo mítico que pode ser atu- alizado a exemplo do calendário das festas. São gestos que se repetem na sua extraordinariedade e que presentificam toda a existência humana contada, cantada e dançada, compatibilizando cultura, cérebro, alma, ancestralidade, corporeidade e conhecimento. Este me parece o sentido do “caminhar para abertura do que está aberto” (GALEFFI, 2001, p. 303) ou ainda a afirmação de que “Trata-se de reaprender o sentido do nosso ser-no-mundo-com pelo ato de reinventá-lo indefinidamente”.

O convite é para tornar-se aquilo que se é essencialmente. Com isso, quero dizer que um dos pontos de partida do Irê Ayó é a compreensão de formas e contornos que nos fazem existir integralmente, e a compreensão do que nos faz caminhar seguindo a pulsão para o ato de en-sinar como seres renascentes da nossa própria condição existencial, histórica e comunitária.

No documento Pele da cor da noite (páginas 65-69)