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o mundo como geografia sagrada

No documento Pele da cor da noite (páginas 95-97)

No terreiro, a condição de educadora e a singularidade da minha história en- quanto filha de Oxum vai acrescida pela consideração à minha essência pela filiação espiritual do orixá dona da concepção e do espaço das águas, portanto dona do espaço de todas as criações. Esta é uma das condições que aproximam a minha compreensão da perspectiva dialógica de sistemas mais complexos, concebendo a cocriação como uma forma de intervenção saudável entre o ser que sou e a natureza. Parece que corrobora com este pensamento a fala de Moraes (2003, p. 208), quando afirma que:

A acentuada perspectiva dialógica dos sistemas complexos concebe a co-criação de significados entre diferentes interlocutores que par- ticipam de um mesmo processo conversacional. Um diálogo entre diferentes formas de vida e de pensamento humano, reconhecendo o papel criativo e construtivo da diversidade da heterogeneidade,

do acaso, da aleatoriedade e do ‘erro’ no desenvolvimento de mun- dos possíveis. É um pensar que ressuscita o diálogo entre o hu- mano e a natureza, e estimula novas formas de intervenções que sejam mutuamente vantajosas para todos.

Este me parece um dos aspectos significativos a ser considerado. A media- ção que constrói um fazer pedagógico implicado numa dinâmica autorizada, ultrapassando a compreensão da realidade do ser em seu meio físico. Um fazer que compreende o ser como produto da interação entre todos os elementos da natureza, emoções, valores e símbolos. São elementos que envolvem a totali- dade do ser dando feição e base ontológica à sua humanidade.

A este respeito, o imaginário africano, mais precisamente o pensamento ioru- bano, inclui o ser na criação do mundo como o próprio mundo. Ser e mundo que se esparramam como fractais do universo. Este é o sentido que apoia a ideia do entrelaçamento genético do ser com a cultura, com o contexto pela coexistência comunitária e ambiental. Daí a atenção para este mito35 que foi

adaptado para formação dos educadores e educadoras do Ponto de Cultura Grãos de Luz e Griô na Rede Municipal de Educação em Lençóis, na Bahia:

Conta-se que no princípio, Olodumaré criou o mundo que era apenas água e ar parados no tempo. Olodumaré olhou em torno e pensou na enorme solidão que o envolvia. Nenhum som, nenhum movimento que o acolhesse. Ele ficou se olhando no espelho d’água por um longo tempo. Ele e a água eram quase a mesma coisa. En- cantado, Olodumaré, tira de si um pedacinho de cabeça e oferece a água. Em seguida um pedacinho de cada braço, outro pedacinho do seu próprio dorso, alguns pedacinhos de vísceras, pedacinhos dos pés e se põe a olhar como que mergulhando em si mesmo, sentindo o mundo que carecia de uma existência compartilhada. Um sopro misterioso, um intenso movimento de gozo e expansão nas entra- nhas das águas, as partes divinas se juntam no mistério da criação e todos os seres vivos se levantam das águas e buscam os seus domí- nios. As águas inquietadas a partir daquele momento ganham força e como parceiras de Deus na criação saem correndo pela terra adentro espalhando toda espécie de vidas.

Somos três quartos de água, somos Oxum que brota de qualquer ponto do corpo ou da terra. Somos a água encarnada que canta, dança, rodopia, ou en- frenta obstáculos com destreza e sabedoria. Oxum, a mãe ancestral que existe em cada ser humano. Nós nos consideramos todos seus filhos. Filhos da água que canta unindo numa única dança os céus, os astros, os trovões as chuvas, as matas, o arco-íris, as montanhas, as planícies e os oceanos.

Oxum, água de múltiplas formas e lugares, se mostra nas enchentes que levam consigo o que está no seu caminho, nas barulhentas cachoeiras, na piscosidade dos rios que alimentam a terra, ou na transparência dos lagos e córregos tranquilos.

Uma história mítica conta que um dia Oxum estava se sentindo sozinha e foi justamente a solidão que a inspirou fazer a sua gente de quem ela seria o an- cestral primeiro. Iniciando uma galinha d’Angola como uma iaô, deu início ao povo de santo. Os feitos de santo se fazem em barcos. Chama-se barco o gru- po de iaôs feitos de uma só vez. Nesse tempo de feitura, a pessoa e a natureza são uma coisa só. Daí que a terra, a água e as folhas instituem a relação tanto do corpo físico como espiritual que renasce para outra vida. A água é o caminho de ida e volta ao mundo ancestral. Não fora a água criadora e criatura, primeiro alimento de todos os seres. Água que se oferece na tepidez do ventre materno e no peito, primeiro desejo do ser humano, e que metaforicamente vai abri- gar os seres mais queridos. Oxum é nutridora de todas as espécies, saciando a sede do homem, da mulher e da terra. Quando a mulher se enche de água,

é porque ela está mais próxima de sua natureza originante ou porque ela está a recolher ou esbanjar a vida; água, vida que se manifesta na profundidade da natureza como mãe parideira do mundo. Oxum Opará segura a espada como brinquedo e alegoria de preservação da vida; Oxum que usa o espelho, não para ver refletida a sua própria beleza, mas para ver o entorno e o devir sem perder a perspectiva do tempo presente, porque tudo é presente.

Eu me vejo, eu me sinto, eu me escuto

No documento Pele da cor da noite (páginas 95-97)