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O cotidiano de uma criança no assentamento um dia com o menino Chicão e a menina Mariazinha

cotidiAno dA fAmíLiA cAmponesA: recriAÇão de espAÇos de interAÇão

4.3 O cotidiano de uma criança no assentamento um dia com o menino Chicão e a menina Mariazinha

Dia oito de março no assentamento, embora seja inverno, a temperatura mais parece verão; são seis horas da manhã e o sol nos saúda com um calor típico do Piauí. As árvores na frente das casas dançam com o vento que lhes acaricia a copa.

Nesse momento, começa o dia do menino Chicão, de nove anos de idade. Ele próprio prepara seu café e faz muito barulho na cozinha. Nesse horário, seu pai ainda dorme. A sua mãe está amamentando o filho caçula com apenas três meses de idade. Assim, os cuidados maternos são destinados ao membro mais novo da família12. Já o seu pai acorda sempre mais tarde, por volta das oito

horas da manhã. Ele geralmente trabalha na roça apenas no período de colhei- ta. Os tratos culturais na roça e nos lotes da empresa são realizados por mão de obra externa à família. O camponês justifica a contratação de mão de obra externa à família daseguinte forma: primeiro porque a mulher não ajuda na roça; segundo, os filhos são pequenos; e terceiro, tem problemas de saúde que não lhe permitem fazer esforço físico, tal como a roça exige. Argumenta que não consegue acordar cedo em função da quantidade de medicamentos que toma diariamente. A irmã do menino Chicão, de seis anos de idade, ainda dor- me. Normalmente ela acorda por volta das nove horas, toma café, agora prepa- rado pela mãe, faz as tarefas escolares, varre a casa e depois assiste a programas de televisão até o horário de tomar banho e almoçar, antes de ir para a escola.

O menino Chicão toma seu café de um modo muito particular, típico de pessoas apressadas, de pé, em frente a uma mesa de madeira, de quatro ca- deiras, que se encontra na sala de estar. Ele olha rapidamente para o braço esquerdo onde usa um relógio analógico preto e percebe que já está quase na hora de o ônibus escolar passar. Sai correndo com os livros debaixo do braço, vestindo uma camisa branca de tergal com botões frontais, sandálias de dedo e bermuda na altura dos joelhos, de cor azul-marinho. Nesse dia, o menino Chicão não usou o uniforme da escola porque estava sujo.

São exatamente sete horas e o ônibus escolar da empresa já vem lotado de alunos/as de outras células. O menino Chicão entra no ônibus e fica em pé, porque todas as cadeiras já estão ocupadas. Bate-papo com os colegas que estudam com ele e moram em outras células, sobre as notas da última prova de português. O percurso de sua casa à escola no núcleo do assentamento é de aproximadamente dez minutos. Ao chegar à escola, a professora já se encon- tra em sala de aula colocando alguns cartazes na parede com o tema da aula daquele dia.

No horário do intervalo, observo de longe que o menino Chicão coloca as sandálias nos cotovelos e vem com uma bola agarrada junto à barriga, organiza um time improvisado em meio à poeira e, sob o sol quente das dez horas da manhã, começam a jogar. Corre para aqui, corre para acolá, briga com uns, 12 Como se vê aqui, na prática e a depender das contingências do grupo familiar, há inflexão no esquema

dá tapinhas na cabeça de outros, se zanga porque o amigo não fez nenhum gol e, finalmente, o toque da campainha. É hora de acabar a brincadeira e to- dos voltarem para a sala de aula. A escola, em geral, é tomada pelo silêncio pós-recreação.

Ao meio-dia, a campainha toca outra vez. Pela alegria dos/as alunos/ as percebe-se que esse é o horário mais aguardado por todos/as, que vêm correndo ao encontro do ônibus. De longe, avisto o menino Chicão, que corre em direção à guarita do núcleo, pois esse era o local em que havía- mos combinado de nos encontrar no final da sua aula. Nesse dia, o menino Chicão não retornou a pé como costumava fazer diariamente. Ele prefe- re voltar a pé ou de bicicleta no horário de meio-dia porque o ônibus inicia o percurso pelas células da Sede da Fazenda Caju Norte e leva em média quarenta minutos para ele chegar à sua casa. Ele fez questão de ir comigo, já que eu era convidada para almoçar uma galinha ao molho, à cabidela.13

O percurso de volta à sua casa, resolvi fazer no meu próprio carro. Ao me en- contrar na guarita, eufórico, perguntou: “Vamos de carro?” Respondi: “Sim”, justificando que o Sol estava muito quente, e caminhar naquele horário, para mim, que não estava acostumada, poderia atrasar o almoço da família. Ele ace- nou com a cabeça e disse: “- ainda mais branquinha assim como a senhora é”.

O fato de voltar para casa de carro trouxe para o menino Chicão um con- tentamento singular. De pronto, convidou dois amigos que sempre voltam jun- tos para a célula onde moram. Quando iniciamos o percurso entre as células que antecedem à sua, ele imediatamente desceu o vidro da janela do carro e começou a acenar para todos que saíam à janela, prática comum dos mora- dores quando ouvem carros e motos se aproximarem das células. Percebi que, para o menino Chicão, quanto mais visto, melhor seria, pois esse passou a ser o seu assunto preferido, ir de carona para sua casa com uma “mulher da capital” que lá iria almoçar.

Quando chegamos à sua casa, lá se encontravam à nossa espera para almo- çar: sua mãe, pai, irmã, tio e um vizinho. Mas antes de servirem o almoço, fui convidada pelo menino Chicão a conhecer o roçado [quintal produtivo] que fica nos fundos da casa. Com muito orgulho, me apresentava as fruteiras que ficam mais próximas à casa, a parte que chamam de quintal produtivo ou ro- çadinhos; logo depois, nos dirigimos para uma área de dois hectares cultivada com mandioca, milho e feijão, que é a roça da família.

13 Galinha à cabidela é um prato em que se utiliza o sangue da galinha para engrossar o caldo. É também conhecida como galinha ao molho pardo, mas a família ao me convidar utilizou o termo “galinha cabidela”.

Ao retornamos, o menino Chicão não almoçou, ainda, porque todos os dias ele tem que levar a irmã até a escola. A viagem dessa vez é realizada com uma bicicleta vermelha, grande, apropriada para pessoas adultas. Mas o meni- no pedala sentado no varão da bicicleta; em aproximadamente trinta minutos, estava de volta. Chegou completamente suado e, sob a solicitação da mãe, foi tomar banho, antes de almoçar. Depois do banho, pegou o prato de comida que já estava feito, em cima da mesa, e sentou-se no chão - com um prato bran- co, esmaltado, com aspecto envelhecido - apoiando-o entre as pernas. Ligou o televisor e, entre uma colherada e outra, soltava risadas ao assistir às trapalha- das do personagem do desenho animado “Bob Esponja”.

Nesse momento, toda a família já havia anunciado que tiraria uma ses- ta, menos o menino Chicão, que estava aguardando o horário, quatorze ho- ras, para abrir o “açougue-bar” do pai, que só chegaria lá por volta das de- zesseis horas. Assim, fomos para o núcleo, e ele abriu o estabelecimento,14

dizendo: “- pronto! Agora está aberto o estabelecimento do papai, só que o povo [clientes] só chega mais tarde, quando o sol esfria”.

Essas horas vagas, ele aproveitou para brincar de rabiscar o chão com o pneu traseiro da bicicleta. Pedalava em velocidade e freava, fazendo subir mui- ta poeira. Só interrompendo quando um senhor o chamou para “tomar uma dose”. O menino Chicão desceu correndo da bicicleta, deixando-a jogada ao chão, e veio atender o primeiro cliente da tarde. Ao aproximar-se do cliente, deu um “tapinha” de saudação na altura do seu ombro; gesto esse que observei seu pai fazer em outras ocasiões ao receber clientes no “bar açougue”.

Após atender o cliente, eu e o menino Chicão começamos a conversar so- bre suas preferências, o que costumava fazer no dia a dia. E ele descreveu sua rotina da seguinte maneira: ir à escola, cuidar da irmã, ajudar o pai no bar e brincar nas horas que ele considera vagas, que se trata do horário até o pai chegar para tomar conta do bar. Na verdade, suas horas não eram tão vagas, pois, apesar de estar brincando, o tempo todo se preocupava com o controle de quem entrava ou saía do bar; e, à noite, ao chegar à célula, brincava até o horário de dormir.

Quando seu pai chegou, por volta das dezesseis horas, o menino foi fazer as tarefas escolares no interior do “bar”, enquanto aguardava o horário de ir buscar a irmã na escola, que seria por volta das dezessete horas e trinta minu- tos. Ao ouvir o som da campainha, ele corre ao encontro da irmã, que traz na garupa da bicicleta. Os dois chegam ao bar, brincam de corre-corre enquanto 14 Estabelecimento, categoria utilizada para designar bares e mercearias no assentamento.

esperam o horário de o pai fechar o “açougue bar”, o que ocorre mais ou menos às dezoito horas e trinta minutos. Aos poucos, o menino começa a recolher as cadeiras que ficam na porta do bar, organizando o ambiente para fechar. Dessa vez, saem os três montados em uma única bicicleta. O pai pedalando, a menina no varão e Chicão na garupa.

Ao chegar em casa, o menino Chicão e sua irmã colocam o material escolar em cima de uma meia parede que divide a sala da cozinha, e ambos saem cor- rendo para o centrinho,15 que se tornou o espaço de lazer para as crianças das

células. Eles permanecem horas à noite brincando de queimada.16 Geralmente,

são convocados pelas mães a entrarem para dormir, após a novela das vinte e uma horas da Rede Globo de Televisão. A partir desse horário, passam a gritar pelos/as filhos/as da porta de casa, olhando para o centrinho, tentando reco- nhecê-los/as dentre todas aquelas crianças que correm de lá para cá, chaman- do-os/as para dormir. Após o recolhimento das crianças, essa célula é tomada por um silêncio absoluto.

As crianças do assentamento têm o condão de transformar responsabili- dades em brincadeiras, coisas sérias em diversão. As meninas, em geral, assu- mem cedo os cuidados com os irmãos menores e, em alguns casos, o preparo de alimentos que a mãe deixa no fogo enquanto vai para a roça. Com a menina Mariazinha, de nove anos de idade, observei que essa rotina não é diferente. Ela acorda todos os dias às seis horas e trinta minutos para acender o fogo do fogão à lenha, enquanto sua mãe embala o filho de seis meses que chora. Ela disse que geralmente é a primeira a acordar, pois quer terminar os afazeres domésticos antes das dez horas da manhã para ir brincar no centrinho, com as demais crianças, até o horário de tomar banho para ir à escola. Mas diz tam- bém que nem sempre consegue, principalmente nos dias que precisa “cuidar das panelas no fogo”, quando a mãe sai para fazer faxina na cidade de Elizeu Martins. Nesses dias em que a mãe precisa sair, a menina fica em casa e não sai para brincar. Não há tempo para estudos, além do tempo da escola.

Todos os dias, ao levantar-se, ajuda a acender o fogo. Enquanto o café é preparado, ela começa a “aguar” o piso de cimento bruto, para não fazer poei- 15 Centrinho, nome dado a um salão construído pela empresa para as famílias se reunirem ou realizaram

atividades festivas ou associativas. Espaço esse nunca utilizado para esse fim.

16 Queimada, brincadeira infantil comum no assentamento, seu objetivo é fazer o maior número pos- sível de prisioneiros em cada grupo. Será vencedor o grupo que, no final de um tempo previamente determinado, fizer o maior número de prisioneiros, ou então, aquele que aprisionar todos os jogadores adversários. Para essa partida, as crianças estavam utilizando a cabeça de uma boneca, segundo eles, por falta de uma bola pequena ou meias para fazer a própria bola. Nesse jogo, precisa-se apenas de uma bola.

ra quando começar a varrer. Ela se coloca encostada na vassoura e, com um pano de remover poeira no ombro direito, começa a conversar comigo. Nesse momento, ela me fez um verdadeiro interrogatório sobre casamento, filhos/as etc. Percebi que ela tinha um interesse particular nos temas casamento, casa e filhos. Enquanto ela conversava e gesticulava as mãos, eu observava aquela menina franzina, de pele clara, cabelos cor de mel encaracolados, com as pon- tas queimados do sol, falar de casamento, com aparente empolgação, e narrar as histórias ocorridas na célula, principalmente sobre gravidez na adolescên- cia, brigas entre casais, filhos criados sem pai. E, para finalizar, ela sorri timi- damente e diz: “- vou casar cedo para ter a minha casa”.

A menina Mariazinha é a quinta filha, e falou com tristeza que todos os irmãos e irmãs são filhos de pais diferentes, e que nunca conviveram com o pai, inclusive ela. A vida afetiva de sua mãe sempre foi conturbada em função do consumo excessivo de álcool, por isso ela diz que sempre teve de aprender cedo a cozinhar, porque nos dias em que a mãe não levantava cedo, porque ti- nha dormido alcoolizada, ela e a irmã mais velha cuidavam da limpeza da casa, das roupas e da comida. Sua irmã de quatorze anos já constituiu família e mora em Elizeu Martins. Talvez esteja nesse fato uma das explicações para o desejo de Mariazinha casar-se cedo. Todos os dias ela cuida da limpeza da casa, lava as roupas menores, as louças dos que deixaram para ela lavar quando chegar da escola; e, à noite, ela brinca no centrinho. Ela diz que não gosta de brincar de bonecas, porque já cuida de “criança de verdade”, que gosta de corre-corre, queimada e andar de bicicleta pelas outras células. Percebi que as crianças se movimentam por parte considerável das células do assentamento, seja a pé, de bicicleta, seja outro “transporte”, adaptado pela própria criatividade das crian- ças (Figura 18).

Essas são algumas das atividades lúdicas criadas pelas crianças para se di- vertirem no assentamento. A bicicleta e o carrinho são brinquedos adaptados pelas crianças para circularem entre as células. Para promover a brincadeira de circular pelas células, são necessárias duas crianças; no entanto, eles dizem que o ideal seriam sempre três: uma para montar, outra para empurrar e a outra para descansar. Também observei que o centrinho é um dos espaços mais dis- putados pelas crianças nas células. Eles o legitimaram como espaço de lazer e costumam se referir ao centrinho como “nossa casa de brincar”.

Figura 18 - Sequência de fotos - Entre brinquedos, espaços e brincadeiras

Fonte: Silva (jan. 2010).

Observei que as brincadeiras preferidas de meninos e meninas no assenta- mento estavam relacionadas a andar de bicicleta, jogar bola e brincar de corre- -corre. Elas dão preferência àquelas que permitam “brincar juntos”, interagin- do com crianças de fora e de suas células. Era comum encontrá-las brincando em outras células. Geralmente a bicicleta e o carrinho de mão são utilizados com objetos de circulação entre os espaços do assentamento em busca de des- cobertas e novas relações de sociabilidade.

As crianças dominam os espaços das células, elas sabem o número das casas e quem são as outras crianças que lá vivem. E ainda sobre esse conhecer, foi a partir da observação de uma criança de oito anos que compreendi que todas as células têm sua entrada entre a casa, de número um e trinta e cinco; e sua saída entre as de número quinze e dezesseis ou dezessete e dezoito, o que pode ser observado na que demonstra o croqui etnográfico de uma célula (Figura 13).

A percepção das crianças moradoras do assentamento em seu ambiente, no espaço em que vivem na pluralidade, na valorização das pequenas coisas, no vivenciar o desenvolvimento dos animais e das plantas, na criação de brinca- deiras é muito rica. O ser criança no campo está vinculado ao próprio lugar. Como relata Souza (2004), é correr livre, desfrutar da natureza, ter os animais como companhia e brinquedos; ou seja, é ter uma infância caracterizada pelo lúdico que faz uso de espaço e elementos naturais, “pluralidade de infâncias”. Barbosa (2008) pontua que a infância não é singular nem única, mas vivida de modos diferenciados nos variados tempos e espaços. É, portanto, plural.

Quando estas crianças se referem à vida de “menino e menina da roça”, se apegam à liberdade que têm de circular sozinhos/as e de não terem medo da violência da cidade grande. Essa forma de encarar suas vidas no assentamento pelo viés da tranquilidade, penso que seja influência das experiências de seus pais e mães que já moraram em grandes centros urbanos, como São Paulo e Brasília, e das suas narrativas a respeito. Sem desconsiderar os noticiários televisivos, que circulam informações sobre a violência urbana. Parte desse

contingente de crianças nasceu no assentamento da Fazenda Santa Clara; e outra veio com aproximadamente três anos de idade. Assim, compreende-se que elas não possuem experiências urbanas, além do contato com pequenas cidades dos municípios vizinhos que podem ser tidos como “rurbanos” (CAR- NEIRO, 1998); o universo rural foi o único que elas aprenderam a significar, que avaliam como um bom lugar para viver.

4.4 A festa de aniversário - “a gente dá a festa, para dividir

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