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Família Moura: “a terra está prometida, vamos ganhar!”

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2.1 Trajetórias marcadas pela migração: uma estratégia de reprodução da família camponesa

2.1.5 Família Moura: “a terra está prometida, vamos ganhar!”

A camponesa T. S Moura, de 54 anos, nasceu no município de Jerume- nha10. Filha de camponeses, perdeu o pai aos sete anos de idade e a mãe aos

doze. Como a situação de moradia da família era de meeiros, ao perder os pais tiveram de entregar a casa na Fazenda para outro morador. Após a “visita de cova11” de sua mãe, segundo a camponesa, um tio materno levou-a juntamente

com as duas irmãs para morarem com sua família no município de Manoel Emídio12.

A camponesa T. S. de Moura, a filha mais velha, à época, tinha doze anos de idade, e sentia-se na responsabilidade de assumir a “criação das irmãs mais novas”. Era preciso trabalhar muito, frisa a camponesa, para “colocar comida na boca de tanta gente”. Trabalhava durante o dia na roça, e, à noite, uma amiga de sua tia conseguiu-lhe uma vaga para lecionar na alfabetização de adultos no MOBRAL. Apesar de também saber apenas soletrar palavras pequenas, as- sumiu o compromisso, porque precisava ajudar a criar os irmãos. O ofício de 10 Jerumenha é um município do Estado do Piauí, que se localiza na Zona do Alto Parnaíba.

11 Referência ao sétimo dia, quando a família retorna ao cemitério para visitar o túmulo e rezar pela alma do/a morto/a.

12 Cidade da região Sudoeste Piauiense, microrregião de Bertolínia. Obteve autonomia política em 1963, está a 227m de altitude e, em 2007, o IBGE estima a sua população em 5.300 habitantes.

professora leiga durou três anos, período em que ajudou a comprar roupas e material escolar para os irmãos menores.

O ofício de professora foi interrompido após o casamento, em 1975, porque o marido não aceitou que a mulher trabalhasse à noite, alegando que o percur- so era escuro e que não aceitava a esposa deslocar-se todas as noites. O des- locamento de sua casa até a sala de aula era de seis quilômetros (uma légua). Acrescente-se que nesse período não havia iluminação. A camponesa morava em uma comunidade chamada Coqueiro e ministrava as aulas em outra comu- nidade, chamada Queimada. Esse período é enfatizado como tumultuado, em razão de certos atos grosseiros do marido contra a mulher por sentir ciúmes dos alunos. Com receio de que as agressões se tornassem frequentes, a campo- nesa desistiu de dar aulas.

Assim que me casei eu era aquele tipo de mulher que vivia debai- xo do pé do marido. Aquele tipo de mulher besta, que tudo que ele falava eu tinha que obedecer. Desisti de dar aula com medo dele. Hoje me arrependo. Mas quer saber? Deixa eu te falar a verdade. Quando eu comecei a ver que ele não era homem de trabalho e estava acostumado a viver sem trabalhar. Antes de me casar a luta já era grande para cuidar dos meus irmãos, essa luta ficou maior e mais sofrida pra levar nas costas a criação de cinco filhos. Hoje estão, aí, todos homens e mulheres de valor. Mas sei o que sofri nessa vida com um homem que ficava em casa só tomando cachaça e eu lá na roça dos outros dando dia de serviço pra levar comida pra casa. Quando eu chegava, ainda tinha que cozinhar comida pra ele. O desgosto foi crescendo e perdi o res- peito por ele, e comecei a fazer o que eu queria do meu jeito. Me separar eu não ia porque a gente tem que carregar a cruz e eu não queria ser uma mulher separada (T. S de Moura).

O trabalho para a camponesa tinha um significado carregado de continui- dade do compromisso dos pais. Não trabalhar para sustentar os irmãos era como se estivesse rompendo com a obrigação herdada dos pais. Nesse sentido, ficou claro que o compromisso do tio com os sobrinhos era “zelar pela moral das mulheres, que logo ficariam moças”, e as despesas com roupas e materiais escolares eram de responsabilidade da irmã mais velha, no caso, T. S. Moura.

Ao casar-se, a camponesa esperava que sua vida fosse menos sacrificada, que iria construir uma família com uma casa que pudesse chamar de sua e uma roça para trabalhar para o sustento da própria família. Era esse o seu desejo. Desde criança estava acostumada a trabalhar com os pais como meeiros e a

migrar para outras fazendas, quando os proprietários precisavam da área que as famílias de camponeses cultivavam.

Quando eu era pequena assim com sete a oito anos. Me lembro do meu pai estar com uma roça toda bonita, cheia de milho em- bonecando e o feijão canivetando. Daí, chegou o filho do dono, pediu a roça prá botar uns bicho e meu pai teve que entregar, porque a gente morava na casa dos donos, perto assim da roça. Tinha que baixar cabeça ou era mandado embora com as trouxas na cabeça. Eu sempre pedia a Deus para um dia ter a terra que meus pais morreram sem ter. Por essa humilhação eu não queria passar. Mas a vida não é como a gente deseja. Vivi essa situação, até como diarista nas roças alheias, de meeira, de tudo enquanto a senhora imaginar para poder plantar eu fui, só sai dessa vida de humilhação em 2004, quando ganhei esse pedaço de terra. Que está no meu nome, só eu posso desfazer dela (T. S. Moura).

Ao dar ênfase à frase “está em meu nome e só eu posso me desfazer dela”, a camponesa está chamando a atenção para o fato de o marido ter vendido sem sua autorização trinta hectares de terras que ganharam do INCRA no ano de 1979. Esse título de terra estava em nome do esposo, que negociou essas terras num momento de embriaguez e sem o seu consentimento, sendo comunicada posteriormente pelo comprador que bateu à sua porta querendo saber quando a família desocuparia a roça com a casa.

Desapontada com a venda da roça, a camponesa diz que “caiu pra dentro da roça e dava diárias como homens”. Certo dia estava em casa, reclamando de trabalhar tanto por tão pouco e não ter direito a plantar para si nem um pé de feijão, quando uma amiga que passava férias na comunidade Coqueiro disse que ela poderia ganhar mais dinheiro como empregada doméstica do que dan- do diária nas roças dos outros.

Esse bate-papo entre amigas ficou, segundo a camponesa, “martelando na cabeça”; ela confessa que essa tenha sido talvez a decisão mais difícil que to- mou na vida. Na verdade, a vida da camponesa sempre foi marcada por de- cisões que considera difíceis. A primeira decisão que a assustou e trouxe-lhe insegurança foi “sair da roça pela primeira vez para Brasília, em janeiro de 1995”. Essa viagem durou dois anos, nos quais dedicou-se a dois empregos: um, durante o dia, como doméstica, para uma família de um casal com três filhos, amigos da “patroa” da amiga que a convidou para essa viagem; e o outro trabalho, conseguiu por indicação do porteiro, que tomou conhecimento de que um casal de idosos precisava de acompanhante para dormir. Parte do di-

nheiro que ganhava, enviava para uma vizinha fazer a compra da alimentação dos filhos e algum medicamento que eles precisassem. O marido ficou cui- dando dos filhos, mas devido aos problemas que enfrenta com alcoolismo, era preferível que o dinheiro ficasse aos cuidados de uma amiga de sua confiança.

Após um ano e sete meses trabalhando em Brasília, consegue juntar dinhei- ro suficiente para alugar uma casa pequena em Guariroba (área do Distrito Federal considerada por ela de grande concentração de piauienses que se aju- davam nos momentos de dificuldades), e envia as passagens para o marido e os cinco filhos irem morar em Brasília. A camponesa sentia-se sozinha, e não sabia quando voltaria para seu lugar de origem.

Em 1998, a família se encontra toda morando em Brasília e dependendo apenas do salário da matriarca: despesa com aluguel, material escolar, alimen- tação e manutenção de sete pessoas na “cidade grande”. Na opinião da cam- ponesa, a mudança da família para Brasília não tinha facilitado em nada seu convívio familiar, porque à noite não dormia em casa e nem sempre podia ir visitá-los nos finais de semana. Essa situação limite de desgaste físico e emo- cional levou-a à conclusão de que os custos, agora, eram bem maiores, para mantê-los com o salário que ganhava; além de não estar dando certo, também não estava compensando com a convivência. “A saudade continuava grande, a vontade de ver meus filhos crescer”. A partir dessa conclusão, que ainda relata com emoção, toma a decisão mais sofrida da sua vida - separar-se pela segun- da vez dos filhos.

No finalzinho de 2001, depois que meus filhos fecharam o ano na escola, fui arrumar as roupas de todos eles com uma dor no coração! Mas tive que mandar de volta para o Coqueiro [comu- nidade rural de Manoel Emídio]. Sempre fui pai e mãe deles, o meu marido nunca foi chegado no trabalho, a bebida sempre foi a desgraça da nossa família. Até ele, mandei embora com meus filhos, porque era muita despesa. Eu disse: “vai homem, cuidar dos meninos, quando eu ganhar mais um dinheirinho pra com- prar um pedaço de terra eu volto!” Aí, vamos ter nossa vida de volta! (T. S. de Moura).

Quando T. S. Moura diz: “vamos ter nossa vida de volta”, ela está se referin- do ao trabalho na roça, na comunidade de origem, com todos os filhos e ami- gos por perto. A vida em Brasília, como empregada doméstica, representava para a camponesa uma atividade transitória, para realizar o sonho de comprar um pedaço de terra; por isso não era essa vida sentida como sua; a vida que a camponesa reconhece como sua é aquela vivida na roça.

A gente sai do lugar da gente pra trabalhar com coisa que a gente nunca trabalhou, mas até tive sorte achei uma patroa muito boa, me ensinou tudo, eu não sabia cozinhar comida pra gente da ci- dade, eu sabia fazer o feijão de gente da roça, mas fui aprenden- do, mas com o sentido, o tempo todo lá na minha vida da roça. Eu pensava: “essa vida aqui não é minha, é emprestada, a minha vida é na roça. Tenho que ter força e resistir. Vou ganhar dinhei- ro e comprar minha terrinha!” (T. S de Moura).

Como muitas experiências de migrações, camponeses/as nem sempre con- seguem acumular bens trabalhando nos centros urbanos. Por mais que a cam- ponesa estivesse trabalhando, segundo suas palavras, a ponto de sofrer “esgo- tamento físico”, o dinheiro só dava para garantir as despesas da família que continuava no seu lugar de origem. Ao retornar em 2002, fez uma pequena reforma na casa e continuou a dar “dias de serviço” nas roças de pessoas com quem ela já trabalhava antes de ir para Brasília.

No início de 2004, a camponesa toma conhecimento, através do, então, Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Sebastião Leal13, que uma “empresa de

fora” estaria na sede da cidade convidando gente que tinha família grande, e que não tinha terra, para trabalhar com a produção de mamona. A decisão de querer participar do Projeto de Assentamento foi imediata.

Quando começou a falação sobre o projeto de mamona, que as famílias iam ganhar salário para trabalhar na roça da empresa, que ia ganhar cesta básica e no final de tudo a terra era da fa- mília, pensei: “É agora que minha vida vai tomar outro rumo!” Disse para meus filhos e marido: “Eu me vou embora pra essa Fazenda do governo e de uma empresa aí que nem sei o nome ainda, quem quiser me acompanhar que me acompanhe, se não quiser, fica por aqui mesmo, vão trabalhar e cuidar da vida de vocês. Eu estou cansada dessa vida sem promessa de nada no futuro. Vou pro lugar que posso trabalhar muito, mas a terra está prometida e vamos ganhar! (T. S. de Moura).

A camponesa relata com satisfação a vinda para o Assentamento da Fa- zenda Santa Clara, e o quanto tem sido importante para a família plantar sua roça com os três filhos solteiros. A plantação de milho no “roçado da família Moura” é apresentada pela camponesa com orgulho (Figura 6). Ao olhar a área, ressalta: “sempre desejei ter casa e terra para chamar de minha, viver na roça e da roça”. Esse sentimento do ter e ser camponesa emergiram em todos 13 Sebastião Leal é um município do estado de Piauí, Brasil. Localiza-se na microrregião de Bertolínia,

os momentos que dialogamos, tanto na sua casa quanto na roça. Após falar que “para chamar de minha”, a camponesa imediatamente corrige a frase, “ chamo de minha porque sei que vai ser minha, estou aqui trabalhando para isso. Essa foi a promessa [...] terra [...] casa e trabalho”.

Figura 6 - Roça da camponesa T. S. de Moura com cultivo de milho

Fonte: Silva (jan. 2011).

T. S. Moura ressalta a diferença entre a relação que sempre teve com “terras alheias”, que, em sua opinião, por mais que trabalhasse, jamais seria dela. Ao vir para o assentamento “eu sabia que a terra tava prometida para dez anos de trabalho”. Duas filhas dessa camponesa casaram-se depois que chegaram ao assentamento e estão morando na mesma célula que a mãe. A filha mais velha, que morava em Brasília, conseguiu recentemente uma casa para morar com os três filhos, e como não é parceira da empresa, terá direito “a terra” e a casa, mas não receberá adiantamento de safra, pois não produz em parceria com a empresa.

2.2 (Re) construindo rede de sociabilidade: “entre parentes,

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