• Nenhum resultado encontrado

Família Silva: uma migrante marcada pela dolorosa condição de ser mãe solteira

redes de sociABiLidAde

2.1 Trajetórias marcadas pela migração: uma estratégia de reprodução da família camponesa

2.1.2 Família Silva: uma migrante marcada pela dolorosa condição de ser mãe solteira

E. da Silva, 49 anos, mãe de três filhos e avó de três netos/as. Nasceu na comunidade Lagoa Cercada, no município de Elizeu Martins, é a sexta filha de uma prole de onze. Os três filhos e netos moram na mesma célula; o filho mais velho, quando veio para o assentamento já era casado, os dois outros se casaram depois que chegaram ao assentamento.

E. da Silva estudou até a quarta série do Ensino Fundamental, foi “pro- fessora leiga” por um período de três anos. Após a instituição de concursos públicos, deixou de ser professora e passou a trabalhar na mesma escola como zeladora. Como era professora leiga, não pôde fazer o concurso, que exigia do candidato escolaridade mínima de ensino médio, que não possuía. A campo- nesa assentada divide sua vida em dois momentos: aqueles em que se viu pres- sionada pelas dificuldades, a passar uma temporada na cidade de São Paulo e outra em Brasília, Distrito Federal, e o difícil retorno à comunidade de origem, sem condição de viver apenas do trabalho da roça.

Para ajudar a família, essa camponesa começou a trabalhar na roça aos nove anos de idade, ajudando a mãe na cata do feijão e nos serviços mais leves,

como fechar com o pé as covas de milho (Zea mays) e feijão (Phaseolus vulga-

ris). Geralmente esse trabalho era realizado pelas crianças. Assim, procurou

criar os filhos. Os meninos ajudavam na roça no horário contrário à escola, e a menina nos afazeres domésticos antes de ir para a escola. Na família Silva, a educação das mulheres sempre foi incentivada.

Quando a camponesa “perdeu o emprego” na escola, resolveu tentar a sorte em Brasília, no ano de 1983. À época, tinha apenas um filho. A viagem para Brasília foi intermediada por uma prima que já trabalhava como emprega- da doméstica em um condomínio residencial e, ao saber que uma vizinha da sua patroa estava precisando de empregada doméstica, enviou dinheiro para a compra da passagem; essa foi a primeira vez que a camponesa E. da Silva saiu da roça deixando o filho aos cuidados da avó materna.

A chegada em Brasília não foi fácil, sabe, aquele mundaréu de casas, carros, barulhos, me deixavam variada! Estranhei tudo! Nunca tinha saído da roça. A cidade que eu conhecia era o Can- to [do Buriti]. Essa labuta em casa dos outros durou dezoito meses e sempre enviando uma parte do meu salário para minha mãe para comprar as coisinhas que meu filho estava precisando. Mas acordei um dia de muita chuva e pensei olhando aquele céu cinzento, vi uns passarinhos voando em bando e nessa hora o coração velho não aguentou mais não! Lembrei da minha vida na roça, uma saudade danada do meu filho. Cheguei pra minha prima e disse: “minha irmã, vou embora”. Disse isso como numa sexta-feira; quando foi no domingo eu já estava na rodoviária pegando o ônibus de volta para casa (E. da Silva).

Ao retornar, seu pai separou um lote de meio hectare para ela fazer o pró- prio roçado. Essa retomada das atividades cotidianas ocorreu de forma lenta. A camponesa recorda que “passou uns dias para me acostumar com tudo de novo”. Os seus dias eram divididos entre o trabalho na roça e outras ativida- des não agrícolas, como lavar e passar roupas para famílias da cidade, comer- cializar roupas e produtos de beleza em domicilio — atividade que continua realizando.

No final de 1993, E. Silva viaja para São Paulo para trabalhar como em- pregada doméstica, dessa vez levada pela irmã, que já morava em São Paulo há mais de dez anos. Nesse período, já tinha os três filhos e, ao viajar, levou a caçula, que estava com quatro anos de idade. Nesse contexto de idas e vin- das da camponesa, a migração, conforme Fonseca (2000), tinha como objetivo principal a ajuda financeira à família de origem, seguida da necessidade de

autossustentação e melhoria de vida, esperada através de novas formas de tra- balho. Ao narrar detalhes dessa segunda viagem, ela disse que essa mudança durou menos tempo que a viagem feita para Brasília há dez anos. Ela atribuiu o pouco tempo de permanência em São Paulo às mudanças econômicas pelas quais o país passava; a conversão do Cruzeiro-Real para URV.5

Vixe, nessa viagem pensei, agora o negócio tá bom! [pausa para risos]. Eu ganhei muito dinheiro nesses sete meses. Sabe era o tempo do URV, a senhora se lembra? Mas as coisas eram muito caras e terminava não dando para juntar dinheiro. Eu fui para ganhar dinheiro para ajeitar minha casa que ficava dentro do lote do meu roçado, mas vi que não ia dar para sobrar nada, resolvi pegar minha menina, botar a mala na cabeça e voltar para roça de novo (E. da Silva).

Esta foi à última migração de E. da Silva até sua decisão de ficar “entre os seus”, como ela costumava frisar nas suas falas; só sairia dali para algum lugar em que ela se sentisse segura para criar seus filhos; Mais de dez anos vivendo do trabalho da roça, como lavadeira de roupas e da comercialização em domi- cilio. No entanto, no final de 2003, justamente quando fazia dez anos da sua última migração, a camponesa toma a decisão de viver no Assentamento da Fazenda Santa Clara:

Chegou ao meu conhecimento a notícia da construção da Santa Clara e sabe que pensei: “vou aventurar mais essa saída da minha terra!” Corri atrás para me cadastrar, fiz tudo que eles pediam [reuniões das quais participou, exames médicos], assim ganhei a vaga, e hoje estou aqui, minha vida na santa Clara é outra coisa, muito melhor (E. Silva).

A camponesa atribui parte das dificuldades enfrentadas durante sua vida à condição de mãe solteira de três filhos, todos eles de pais diferentes. Este fato marca trechos importantes da sua fala, intercalando as dificuldades financeiras para manter os filhos; a necessidade de migrações temporárias para Brasília- -DF e São Paulo-SP, como estratégia de acumulação de reservas (dinheiro), para sustentar os filhos nos períodos em que não estava na roça. Refletir sobre o passado não foi uma das tarefas mais fáceis para essa mulher. As recorda- ções reavivaram sentimentos de dor que, por alguns momentos, fizeram-na chorar. Situação essa contornada pelo fato de eu estar hospedada em sua casa, 5 URV uma unidade real de valor – transição entre duas moedas de curso legal, o velho cruzeiro e o real,

o que me permitiu interromper nosso diálogo, trazendo assuntos costumei- ros do presente, para em outra oportunidade continuarmos a reconstrução de sua trajetória. Esses diálogos ocorriam sempre na cozinha, enquanto eram preparadas as principais refeições do dia. Medidas como esta deixavam os en- trevistados livres para acionar memórias que fossem significativas para eles. Essa estratégia demandou mais tempo do que o previsto inicialmente pela pesquisadora.

No que se refere a reconstruir a trajetória da camponesa E. da Silva, quan- do se discutem as práticas do grupo doméstico, em relação à valorização do casamento, é importante lembrar que esse sistema pode sofrer atualizações, de acordo com a posição e a trajetória do agente nos diferentes campos. Esse ha-

bitus é compreendido como um sistema de esquemas de pensamentos interio-

rizados e socialmente constituídos, capazes de originar todos os pensamentos, percepções e as ações características de uma cultura (BOURDIEU, 1996). No primeiro momento, interpretei aquele choro como expressão de sentimento relativo aos períodos de migração para sustentar os filhos, mas nos dias sub- sequentes, com a convivência diária em sua casa, compreendi que ele traduzia a situação de ser mãe solteira e o peso da responsabilidade de ser pai e mãe ao mesmo tempo, a única responsável pela manutenção das despesas familiares.

A camponesa nunca se casou com nenhum dos pais de seus filhos. Apenas o pai do segundo filho chegou a visitá-lo por algumas vezes quando criança, mas sem prestar nenhum apoio financeiro. Para criar os três filhos, precisou administrar melhor o tempo para cuidar da casa, dos filhos, da roça, e ainda trabalhar em outras atividades como vendedora ambulante, doméstica, pro- fessora e zeladora.

Ser mãe solteira, de três filhos de pais diferentes, sem ter convi- vido com nenhum deles? Não foi fácil, não! Trabalhei como em- pregada doméstica, lavei roupa pra fora, fui professora, zeladora de escola, vendia de porta em porta, como ainda faço hoje, mas tudo isso, sem deixar um dia sequer de ir na roça, para criar os três filhos sozinha. Quando meus pais souberam que eu estava grávida do primeiro filho, foi um escândalo! Meus irmãos qui- seram me colocar para fora de casa, mas minha mãe não deixou, e meu pai, sempre dava o silêncio como resposta para tudo que estava acontecendo. Ora, se ainda hoje nos tempos mais evoluí- dos, aqui na Santa Clara, tem pai que ainda joga as filhas na rua quando descobre que elas estão grávidas! A senhora imagina na minha época? Sofri muita discriminação. Uma vez, fui pro ca- samento da filha de uma senhora respeitada, e ao chegar aceitei um convite pra dançar. Mas, numa ligeireza, a dona da casa me

chamou no canto da casa e disse que não aceitava mãe solteira dançando na sua festa. Saí como cão sem dono que entra nas casas e são chutados para sair [pausa para choro] (E. Silva).

Essa história de vida fala de como cada sociedade organiza os seus sistemas de valores de gênero e como tais sistemas implicam ou não em estruturas de desigualdade (BONETTI, 2007). A família de E. da Silva sempre cobrou que ela fosse casada, e essa cobrança, de certa forma, a afastou do convívio com os demais membros da família. Ela era acusada de não ter valorizado a tradição de casamento no religioso conforme praticado entre as irmãs mais velhas. Os casamentos eram, como ela disse, “ajeitados” entre as famílias, mas com ela não tinha dado certo, porque engravidou de alguém de fora da comunidade sem que a família conhecesse o rapaz. Conforme Bourdieu (1992), o casamen- to nas sociedades antigas era, sobretudo, assunto de família, ao passo que hoje, a busca do parceiro é, como se sabe, reservada à iniciativa do indivíduo. Esse rompimento com as regras de casamento viabilizado pela família representou o trincamento da estrutura organizacional dos matrimônios no grupo domés- tico de E. da Silva.

Por ser a primeira filha a não casar e ter filhos como mãe solteira; sou culpada até hoje pelas outras mulheres da família que engra- vidaram; me culpam por todo desmantelo das outras não terem se casado virgens, ou das que amigaram. Eu nunca imaginei que ia ser tão difícil escolher meu caminho. Hoje voltaria atrás e ca- saria do jeito que meus pais sonhavam (E. Silva).

Esses acontecimentos na vida de E. Silva despertaram o desejo de um dia casar-se, como diz, de “papel passado”, porque sentia “vergonha de além da mancha que carregou a vida inteira por ser mãe solteira, agora levar outra, de ser amigada”. Ao encontrar o atual companheiro, após conviverem seis anos, oficializaram a relação em casamento coletivo, promovido no mês de abril do ano 2000. O casal não possui filhos biológicos. Quando se conheceram, os filhos e filha de E. da Silva já estavam entrando na adolescência, o que, na opi- nião da camponesa, dificultou a construção dos laços de pai e filhos entre eles. Os desentendimentos entre o padrasto e os enteados são frequentes. O fato de não ter dado um/a filho/a biológico/a ao companheiro é relatado com tristeza e frustração. O hábito do consumo de bebida alcoólica, adquirido pelo marido ao longo da convivência, é avaliado pela camponesa como uma fuga pela “de- cepção” de estar envelhecendo e não ter sido “pai de sangue”.

Eu sei que meu marido, V. da Silva, tem um desgosto danado por não ser pai de sangue. Se eu tivesse dado um filho para ele, acho que ele não bebia tanto. Tem dia que ele bebe muito, e eu penso que seja porque ele está envelhecendo e não tem nenhum filho para deixar quando se for. Ele cuidou da minha filha mais nova como filha, mas não é a mesma coisa, não tem o sangue dele, é como se não fosse parente, entende?! Hoje em dia eles não se dão porque falta o entendimento do sangue, a paciência que só o sangue dá, né? (E. da Silva).

De acordo com Woortmann (1995), os laços criados pela afinidade são conceitualizados entre camponeses como sendo mais fracos que os de con- sanguinidade, e fortemente carregados de ambiguidade. O sangue, porém, destaca-se como o símbolo-princípio central da ideologia de parentesco. Para a camponesa, os laços de parentescos constituídos a partir de casamentos ou apadrinhamentos não são fortes como os de parentes de sangue. Para E. da Silva, o sangue tem significado central nas relações de parentesco.

2.1.3 Família Costa: uma cidade com a cara de roça, com

Outline

Documentos relacionados