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CAPÍTULO 1: COTIDIANO MIDIATIZADO E AS FRONTEIRAS DA MOBILIZAÇÃO

1.4 Cotidiano, vínculo e mobilização social

Analisar as estratégias e ações de publicidade social é analisar o fazer contra- hegêmonico. Entretanto, é submersa na cotidianidade que toda ação contra-hegemônica se estrutura, se planeja e se realiza. É necessário, portanto, analisar as ações que atacam a estabilidade da hegemonia, mas sem deixar de refletir sobre o cenário onde elas ocorrem. É imerso no cotidiano que todo ato contra-hegemônico (inclusive as iniciativas de publicidade social) acontecem.

Para Heller (2016), todo homem nasce e vive inserido na vida cotidiana e ninguém consegue desligar-se dela nem a viver completamente. O homem participa da cotidianidade em todos os seus aspectos individuais, sentidos, capacidades, habilidades, paixões, sentimentos e ideias, tudo isso sem conseguir se desvencilhar dela. Os indivíduos, por nascerem inseridos na vida cotidiana, assumem suas funções como dadas, sem questionamentos ou tentativas de resistência.

Uma vez que se considere as ações dos indivíduos como base para o fazer contra- hegemônico, enxergar sua imersão no cotidiano dá a dimensão da complexidade de se fazer com que as iniciativas se tornem reais. Entende-se a vida cotidiana como:

(...) a vida de todo homem. Todos a vivem, sem nenhuma exceção, qualquer que seja seu posto na divisão do trabalho intelectual ou físico. Ninguém consegue identificar-se com sua atividade humano-genérica a ponto de poder desligar-se inteiramente da cotidianidade. E, ao contrário, não há nenhum homem, por mais “insubstancial” que seja, que viva tão somente na cotidianidade, embora essa o absorva preponderantemente. (Idem, Ibidem, 2016. p. 35)

Para Heller (2016), as atividades cotidianas não são a práxis e, portanto, são realizadas sem objetivar um fim específico sendo, as ações cotidianas, aquelas que acontecem na organização do trabalho e da vida privada, no lazer, no descanso e na atividade social sistematizada. Imersos na cotidianidade os indivíduos não tomam suas decisões no sentido de algum valor, da mesma forma que não agem orientados ao bem ou à felicidade como um fim. Os indivíduos “escolhem sempre ideias concretas, finalidades concretas e alternativas concretas” (Idem, Ibidem, 2016. p. 30). As decisões que se elevam acima da cotidianidade (porém sem nunca se descolar dela) são aquelas que sofrem influência da moralidade.

Entendendo a moral, segundo a ótica de Heller (2016), como a capacidade do ser humano de resistir ou ponderar suas necessidades imediatas (particulares) em razão das exigências, aspirações e ações sociais do coletivo, é coerente dizer que as decisões e ações que se aproximam da moralidade se afastam da cotidianidade. Segundo a mesma autora, da mesma forma que nenhum individuo vive única e exclusivamente apenas a cotidianidade, nenhum deles consegue se desprender por completo dela. A influência da moral nas decisões não descola o indivíduo da cotidianidade, mas o afasta.

Quando se cruza o fazer contra-hegemônico com as características do cotidiano descritas por Heller (2016) percebe-se que, mesmo que o grupo dominante atue com mais força e exerça pressão para inibir ou impedir as ações dos dissidentes entre os dominados, toda transformação conseguida, mesmo que pequena ou reversível, já é válida. Para Heller (2016), uma vez que um determinado ponto é alcançado ele nunca será aniquilado, pois, por mais que se percam as evoluções elas continuarão figurando como forma de possibilidade. Ou seja, nenhum valor (tudo o que contribui para o enriquecimento dos componentes essenciais, em qualquer esfera e em relação com a situação de cada momento), uma vez conquistado, se perde por absoluto. O fazer contra-hegemônico das organizações não governamentais, das minorias e dos movimentos sociais, mesmo que tenham suas conquistas retroagidas jamais retornarão ao ponto de onde partiram.

Uma das problematizações iniciais do trabalho é: como as organizações não governamentais (considerando as que realizam ações contra-hegemônicas) podem mobilizar e engajar a sociedade civil em prol de uma causa se considerarmos o cenário com indivíduos imersos na cotidianidade e tomando, na maior parte do tempo, decisões irrefletidas e descoladas da moral? Um dos caminhos para a resposta talvez seja o vínculo (SODRÉ, 2012).

Para Sodré (2012), vínculo é um sentimento capaz de tirar o sujeito da sua zona de conforto, do seu ambiente e expô-lo a novos sentimentos, ações e riscos. Se considerarmos a relação como uma conexão entre os indivíduos que se inicia e se acaba, com tempo contado, o vínculo seria algo para além disso. Segundo Sodré (2012), vínculo é o que atravessa os indivíduos, criando assim uma conexão, uma vinculação. O vínculo aproxima os seres humanos, abre o canal de comunicação e coloca-os necessariamente em contato por um nexo atrativo comum. É o vínculo a ligação que faz com que o

indivíduo se sinta parte de uma determinada comunidade e é o vínculo que faz com que ele se arrisque para a manutenção do bem-estar social do seu grupo.

[...] faz-se claro o núcleo teórico da comunicação: a vinculação entre o eu e o outro, logo, a apreensão do ser-em-comum (individual ou coletivo) seja sob a forma da luta social por hegemonia política e econômica, seja sob a forma do empenho ético de reequilibração das tensões comunitárias. Não se trata, portanto, de vinculação como mero compartilhamento de um fundo comum, resultante de uma metáfora que concebe a comunicação como um receptáculo de coisas a serem “divididas” entre os membros do grupo social. Vinculação é a racionalidade da diferenciação e aproximação entre os seres humanos. (Idem, Ibidem, p. 223)

O vínculo é o que faz com que um indivíduo se conecte com o outro, não de forma rasa e superficial, mas de maneira profunda e efetiva. O vínculo é capaz de fazer com que um indivíduo rompa a inércia (e enfrente até riscos) em prol do que a comunidade ou um outro indivíduo necessita. É ele que provoca ações para além da superficialidade do consumo, com atos que podem ir de encontro à hegemonia vigente se o fim da ação for o bem do outro.

[…] o vínculo, o traço que atravessa o “eu e o outro”, a vinculação social. O vínculo perpassa os seres humanos e os faz comunicarem. Ele perfura e esvazia os seres, fá-los entrarem efetivamente em contato, obrigam-nos à relação e, portanto, se coloca como força motriz da sociabilidade. Tal relação, tendo o Outro como prioridade e condição de sua própria existência (como numa vida em comunidade), confere ao vínculo a capacidade agenciadora da coexistência […]. (YAMAMOTO, 2012, p.49)

A imersão dos sujeitos na cotidianidade, de modo que não seja possível um rompimento total com ela, faz com que as ações sejam realizadas, na maioria das vezes, de forma irrefletida e sem perseguir algum fim. Se o vínculo é o nexo atrativo que conecta os indivíduos e faz com que eles realizem ações em prol do coletivo (ou de outros indivíduos), é o vínculo que, uma vez potencializado, pode fomentar e impulsionar as ações com base na moral, que se distanciam da cotidianidade na direção de um bem comum.

Considerando as forças e pressões sofridas pelos indivíduos e grupos dissidentes que promovem atos que colocam em xeque ou ameaçam a hegemonia, é necessário que exista algo que motive e fomente a realização de ações contra-hegemônicas, e que motive

tais indivíduos a se arriscarem – seja fisicamente, quando o grupo hegemônico responde com o uso da força, ou socialmente, quando a sociedade ou seu próprio grupo concorda (e apoia) o discurso do dominador. O elemento capaz de fazer com que os indivíduos se afastem da cotidianidade – usando a moral como norte para suas ações – e se levantem contra a hegemonia em defesa do grupo ou do outro é o vínculo.

A publicidade social, que se propõe a trazer a sociedade civil para dentro da solução dos problemas, deve ter como base de atuação e como objetivo o fortalecimento e criação de vínculos, seja com uma causa, um grupo, ou mesmo um indivíduo. A publicidade social deve objetivar com sua atuação a criação e o fortalecimento dos vínculos (e não no uso tecnicista das ferramentas), para que sua capacidade de transformação social seja potencializada.

Em síntese, a publicidade social (SALDANHA, 2012), fundamentada no fazer contra-hegemônico (GRAMSCI, 2004), atua para a criação e o fortalecimento de vínculos (SODRÉ, 2012) entre indivíduos e causas, grupos ou comunidades, que, uma vez vinculados, passam a tomar decisões baseadas na moral (HELLER, 2016), se afastando da cotidianidade – mas sem desvincular-se dela.

Para Yamamoto, ao analisar os textos de Sodré, “o vínculo pode ser facilitado pelo uso técnico” (2012, p.51), por isso é importante que se analise o papel e o impacto das novas tecnologias – em especial no digital – no processo de construção de vínculos. A campanha #TodosContraTB, por exemplo, se concentrou nas plataformas digitais, uma vez que o abaixo-assinado estava disponível em um site e a organização convidava para que os usuários apoiassem a campanha pelas redes. Será analisado no terceiro capítulo do trabalho as potencialidades e fragilidades do digital para o fazer contra-hegemônico e para a publicidade social. Entretanto, no próximo capítulo, será abordado o posicionamento de publicidade social que fundamenta este trabalho.