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Uma breve história da publicidade e os ciclos de consumo

CAPÍTULO 1: COTIDIANO MIDIATIZADO E AS FRONTEIRAS DA MOBILIZAÇÃO

1.1 Uma breve história da publicidade e os ciclos de consumo

A publicidade e o consumo andam de mãos dadas na contemporaneidade. Mesmo não tendo sido o primeiro objetivo da publicidade, ou de etimologia, deve-se considerar sua participação, para não dizer sua parcela de responsabilidade, no cenário de consumo exacerbado da atualidade. O atrelamento da felicidade dos indivíduos ao ato de consumir (LIPOVETSKY, 2007) se relaciona de forma direta com sua imersão em um plasma de marcas e as estratégias de venda utilizadas pelo mercado para cooptar novos consumidores para seus produtos. As estratégias da publicidade mercadológica foram se desenvolvendo e se aprimorando com o passar dos anos, à medida que a sociedade passava por transformações, a publicidade se adequava (ou ajudava) na configuração dos novos cenários. O que se assistiu nas últimas décadas foi uma forma de educação dos indivíduos para o consumo, aos moldes do mercado, de forma que os produtos estivessem atrelados à questões para além do objeto físico ou serviço adquirido.

Pode-se dizer que a publicidade social se localiza na contramão das ações publicitárias que visam reforçar e impulsionar determinados padrões de consumo. Antes que se adentre nos debates acerca da recente conceituação, é necessário entender a história da publicidade (partindo do viés comercial, em uma perspectiva nacional e global) e como ela, com o passar dos anos, se engendrou como forma de propagar e motivar o consumo e se tornou uma ferramenta para a perpetuação de uma hegemonia.

Pode-se considerar que, ao seguir a ótica comercial pela qual o senso comum enxerga a publicidade hoje, ela “existiu sempre: desde que o homem, artesanalmente, produziu algum bem de consumo e tentou persuadir outro homem a adquiri-lo. ” (GOMES apud SALDANHA, 2017, p.1.038). Publicidade se origina do latim (publicus) e tem seus primeiros registros em um dicionário da Academia Francesa (publicité), e se referia à publicação, leitura de leis e julgamentos (RABAÇA e BARBOSA, 2014). Posteriormente o termo passou a ter um sentido mercantil, visando a obtenção do lucro e a difusão do consumo. Por esta face podemos perceber que o sentido da palavra não parte da motivação do consumo, mas sim do ato de tornar algo público (seja uma lei, um produto, uma marca ou uma causa social).

Lipovetsky (2007) entendeu as mudanças nas formas de produção e de consumo como três grandes ciclos da economia de consumo. O 1º ciclo, marcado pelo início da produção em massa, tem como principal característica a capacidade de produção em larga escala e o início da utilização de marcas para o reconhecimento, divulgação e diferenciação dos produtos. No 2º ciclo, logo após a grande guerra, máquinas se tornaram mais eficientes, aumentando sua capacidade de fabricação, diminuindo as perdas e acelerando o processo. À publicidade coube motivar a compra e fomentar o consumo irrefletido dos bens produzidos. O 3º ciclo é marcado por uma personalização cada vez maior dos produtos em um período em que a ansiedade dos consumidores se refletia nos seus hábitos de compra. É importante que se analise de forma detalhada como a publicidade se transformou ao longo dos três períodos.

Lipovetsky (ibidem) chamou de 1º ciclo da economia de consumo o período posterior à revolução industrial, que foi marcado por diversas transformações graças às mudanças nos meios de produção e transporte, ou o início da produção em massa. As tecnologias, novas para o período, permitiram uma produção em larga escala, com fábricas capazes de multiplicar sua produção de forma exponencial. Os novos meios de

transportes faziam com que aqueles produtos chegassem de forma mais rápida em mais lugares.

Não se pode tratar a revolução industrial apenas como uma mudança no modo de fazer do mercado, mas é necessário considerar as mudanças na forma de consumir dos indivíduos. A publicidade atuou de forma essencial na realização das transformações que se sucederam, ajudando a motivar o interesse nos produtos produzidos em larga escala.

O capitalismo de consumo não nasceu mecanicamente de técnicas industriais capazes de produzir em grandes séries mercadorias padronizadas. Ele é também uma construção cultural e social que requereu a "educação" dos consumidores ao mesmo tempo que o espírito visionário de empreendedores criativos. (Idem, ibidem, 2007, p.28)

A publicidade mercadológica, no sentido como a enxergamos hoje, tem sua origem neste período (GOMES, 2001) posterior à revolução industrial. Antes, os produtos eram vendidos e comprados de forma anônima, sem uma marca. A maior parte das vendas era feita a granel. As principais contribuições da publicidade para as transformações deste período foi a criação de marcas para os produtos e o crescimento exponencial dos investimentos em divulgação – que se refletiram no aumento do consumo. Despontaram marcas que se encontram nas prateleiras dos mercados até os dias de hoje, como Coca- Cola, P&G, Heinz, entre outras (LIPOVETSKY, 2007). No período, deve-se destacar também o crescimento das montadoras, que começavam a fabricar carros em massa e com um menor custo, e contaram com o apoio da publicidade na ampliação do mercado consumidor.

Pode-se considerar que a publicidade, da forma como se conhece na atualidade, surgiu no período da revolução industrial. Não bastava apenas que se aumentasse a quantidade de produtos saindo das linhas de produção das fábricas, era necessário que se fomentasse e se expandissem os mercados consumidores, fomentando a compra dos bens de consumo. Nascia assim a publicidade nos moldes atuais.

Ela nasceu da industrialização, com o advento da revolução industrial, a produção em série, a urbanização, as grandes lojas de departamentos, os meios de comunicação de massa, os transportes coletivos e, graças a tudo isso, com a elevação do nível de vida: a publicidade fez a prosperidade e a prosperidade fez a publicidade. Ambas, prosperidade e publicidade, são causa e efeito da revolução industrial. (GOMES apud SALDANHA, 2017, p.115)

As novas linguagens e os diversos signos emergiam na tentativa de aproximar indivíduos e marcas, e permitindo que elas se diferenciassem dos produtos artesanais e manuais produzidos até aquele período. Uma vez que não podem existir signos em um cenário interindividual, pois eles demandam uma interação entre as consciências (BAKTHIN, 1986), a publicidade teve um papel fundamental na criação de sentido para as novas companhias que ganhavam marcas na mesma velocidade que otimizavam e aceleravam seus processos de produção.

Décadas depois (embora ainda dentro do 1º ciclo descrito por Lipovetsky), mais especificamente nos anos 1913 ou 191426, surgiria, no Brasil, a primeira agência de publicidade do país. “A Eclética” foi fundada por João Castaldi e Jocelyn Benaton para agenciar anúncios em jornais impressos da época. Um pouco mais tarde, as grandes empresas multinacionais aterrissaram no território brasileiro e começaram a ter suas agências in house27. Somente anos depois as agências de publicidade começaram a abrir seus escritórios e a somar contas, sendo um elemento importante para a aceleração econômica do país e a ampliação da circulação financeira (SALDANHA,2016). Tais movimentações, no Brasil e no exterior, já demonstraram, ainda no 1º ciclo de consumo, a proximidade da publicidade com o consumo e como as transformações de um se refletem de forma consoante nas modificações do outro.

Para Lipovetsky (2007), o 2º ciclo do consumo vai se dar nas três décadas do pós- guerra, quando se amplia a capacidade de produção das indústrias que, com o passar dos anos, melhoraram o desempenho de suas máquinas. "A sociedade da abundância", como também se refere o mesmo autor ao período histórico, ocorre graças ao aumento do poder de compra dos salários e da ampliação da oferta de produtos que, com a otimização da produção, tiveram seus preços reduzidos. Também começam a se discutir (e executar) formas de reduzir o tempo de vida dos produtos, seja pela renovação rápida de tendências e estilos ou pela obsolescência programada, para fazer com que o indivíduo volte às prateleiras o quanto antes.

A publicidade se faz presente, em especial, no despertar do desejo pelo consumo e no desenvolvimento de uma vontade crônica de consumir. Uma "obsolescência dirigida” faz com que os indivíduos consumam cada vez mais, dimensionando cada vez

26 Não existe documentação oficial que que comprove o ano de fundação. 27 Áreas de empresas que atuam como uma agência interna.

menos os impactos – em especial os ambientais - do que se compra, seja no âmbito global pelo aumento irracional do consumo de matéria prima, ou seja pelas complicações microeconômicas dos ambientes familiares, quando o custo do que se consome ultrapassa o que se ganha.

Há algo mais na sociedade de consumo além da rápida elevação do nível de vida médio: a ambiência de estimulação dos desejos, a euforia publicitária, a imagem luxuriante das férias, a sexualização dos signos e dos corpos. Eis um tipo de sociedade que substitui a coerção pela sedução, o dever pelo hedonismo, a poupança pelo dispêndio, a solenidade pelo humor, o recalque pela liberação, as promessas de futuro pelo presente. A segunda fase se mostra como a "sociedade do desejo". (Idem, ibidem, p.35)

Entre os anos 60 e 70 o Estado brasileiro fiscalizava todas as propagandas políticas que eram veiculadas e normatizou uma regulação, através de aprovação prévia, de toda produção publicitária realizada. Como forma de driblar o modelo proposto de regulação, o mercado publicitário nacional, no fim do 2º ciclo do consumo,2 foi criado o Código de Autorregulação Publicitária (1977/1978) e é fundada (1979) a Comissão Nacional de Autorregulação Publicitária, que se transformou, posteriormente, no Conselho de Autorregulação Publicitária, que regula as atividades publicitárias até os dias de hoje. (SALDANHA, 2017)

O 3º ciclo do consumo é dado sobre um fundo de desorientação e de ansiedade crescente do consumidor, que se reflete no sucesso das marcas. (LIPOVETSKY, 2007) Com o avanço da personalização da produção, os indivíduos passaram a buscar no consumo formas de pertencimento e valorização nos seus grupos sociais. Não mais – ou não apenas – o consumo para “parecer ser”, mas sim um consumo que o encaixe nas características de seu grupo. O indivíduo passa a buscar nos produtos ou serviços consumidos a complementaridade do seu ser e ver, refletido no consumo, sua forma de adequação ao grupo. A publicidade, neste novo ciclo, coloca o produto como coadjuvante dos anúncios e dá lugar à venda de um estilo de vida, criando relações afetivas com as marcas.

Em primeiro lugar, muitas campanhas se afastam da valorização repetitiva do produto, privilegiando o espetacular, o lúdico, o humor, a surpresa e a sedução dos consumidores. A publicidade denominada "criativa" é a expressão dessa mudança. Já não se trata tanto de vender um produto quanto de um modo de vida, um imaginário, valores que

desencadeiam uma emoção: o que a comunicação se esforça para criar é cada vez mais uma relação afetiva com a marca. (Idem, ibidem, p.96)

A atuação da publicidade está para além da simples divulgação de um determinado produto. O 3º ciclo é marcado pelo avanço das marcas nas estratégias que visam a manipulação dos afetos, que ocorrem de forma não consciente entre os indivíduos (SODRÉ, 2006) e cria, entre eles e as marcas, uma relação que extrapola o ato de consumir. O que é possível pela aproximação da linguagem e da compreensão dos signos contidos nos anúncios.

A publicidade contemporânea motiva em suas mensagens o consumidor a enxergar em um produto ou empresa o que lhe falta para pertencer a um determinado grupo, minimizando suas diferenças e colocando o consumo como um elemento central para que se conectem. O que acaba acontecendo, entretanto, é uma ausência constante e um vazio geralmente preenchido pelo consumo. A felicidade passa a ser atrelada ao ato de comprar, ao passo que consumir se torna um prazer. A sociedade capitalista se estruturou de forma a priorizar a manutenção dos privilégios e a constante busca por consumir. Não se pode colocar a publicidade como único elemento na criação deste contexto, da mesma forma que não se pode ignorar sua contribuição.

Ao assumir que a publicidade vem sendo utilizada há anos para fomentar o consumo e fazer girar a mecânica do sistema capitalista, pode-se buscar formas de ressignificar suas ferramentas. A publicidade social parte das ressignificações que, assim como a publicidade social afirmativa, comunitária, de causa, de interesse público28 ou transversal, se apropriam das técnicas para um novo modo de fazer. Quando se fala de publicidade social refere-se à possibilidade da utilização das ferramentas hegemônicas, que andam de mãos dadas com as formas de controle do sistema capitalista e a motivação do consumo exacerbado, para um fim contra-hegemônico. A utilização da publicidade social pelas Organizações Não Governamentais, grupos minoritários, movimentos sociais, entre outros, é a subversão das ferramentas do sistema, a reapropriação das técnicas e a reutilização das estratégias, para um fim diferente - com potencial de mobilização de trazer a sociedade civil para o contexto e torná-la parte da mudança.

28 Que atualmente passou por um processo de ressignificação conceitual e sua nomenclatura passou a ser

“interesse público”, que está sendo desenvolvido de forma mais aprofundada pelos pesquisadores do LACCOPS.

Se a base da publicidade social se pauta no fazer contra-hegemônico (que não se opõe à publicidade mercadológica, mas atua em uma outra lógica), é necessário pontuar o que se entende por hegemonia e sua relação com a publicidade e os ciclos do consumo. Não se pretende reduzir o processo hegemônico ao fazer publicitário, uma vez que a publicidade mercadológica pode ser apontada como ferramenta hegemônica ao longo de toda a sua história, mas as formas de dominação não se restringem à ela, uma vez que sempre se utilizaram de outras frentes e forças.