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CAPÍTULO 1: COTIDIANO MIDIATIZADO E AS FRONTEIRAS DA MOBILIZAÇÃO

1.3 Publicidade social e contra-hegemonia

Considerar a mutabilidade da hegemonia abre novas perspectivas para que se entenda, se considere e se analise as ações dos grupos e dos indivíduos que atuam com o objetivo de transformá-la. Admitir a possibilidade de mudanças motiva os subalternos a agirem em prol de uma transformação pontual ou efetiva. Toda ação que se coloque contra

a ordem vigente, que promova um processo de persuasão da sociedade civil, que difunda novas ideias e valores diferentes dos dominantes, que objetive promover uma mudança na estratificação das classes econômicas ou atue para corrigir o abismo da desigualdade social na contemporaneidade é uma ação contra-hegemônica.

É nos hiatos ideológicos e na sensibilização dos indivíduos que a ação contra- hegemônica se faz presente. O ato contra-hegemônico se torna efetivo quando encontra sentido nos grupos dominados, quando perpassa as fendas do que está posto e surge como uma alternativa (ou simplesmente como um incômodo) à ideologia dominante. Dar visibilidade a novas perspectivas é, por si só, uma ação contra a hegemonia vigente, uma vez que se entenda que ela se mantém com base na uniformidade dos pensamentos alinhados às suas diretrizes e na aceitação da sua visão pela classe dominada. Uma nova ideia ou pensamento que se levanta pode, através de sua dissonância, romper com a visão de que classes dominantes e dominadas conjugam de forma uníssona da mesma ideologia.

“A possibilidade de construir uma nova hegemonia modifica a dinâmica da atuação política, porque se admite que outros interesses que não os do Estado (em seu sentido restrito) e da classe dominante se movimentam na sociedade civil atrás de ressonância e aceitação.” (MORAES, 2010. p. 71)

Para Gramsci (2004), o maior potencial para a subversão de uma hegemonia vigente não está no embate físico, através do uso da força, mas pelos caminhos da persuasão e da argumentação. É, segundo o autor, o embate ideológico o principal campo de batalha entre dominantes e subalternos. O que não anula as ações que se fundamentem na força para se levantar contra o que está posto. Um black bloc que quebra bancos como forma de protesto realiza um ato contra-hegemônico, assim como o manifestante que grita palavras de ordem ou carrega cartazes com informações sobre a causa apoiada.

A ação contra-hegemônica pode ser realizada por grupos ou indivíduos independentes, organizados ou desordenados, local ou globalmente. O que faz de um ato contra-hegemônico não é sua proporção, dimensão, número de pessoas envolvidas, repercussão ou nível de planejamento, mas sim seu sentido contrário à ideologia comum. Contra-hegemonia são “jogos linguísticos e as ações de resistência aos discursos que tentam perpetuar a marginalização dos grupos socialmente subalternos.” (SODRÉ, 2008. p. 35). A linguagem tem em si reflexos da hegemonia vigente e é moldada por ela, ao passo que ajuda a moldá-la. É a linguagem, segundo Bakthin (1986), um dos principais

campos de batalha por hegemonia, que tem como cerne a disputa por sentido. O domínio ideológico coincide com o domínio da linguagem e das suas formas de utilização e diferentes apropriações. Uma vez que se coloque o fazer contra-hegemônico como elemento central do modo de operar da publicidade social, a linguagem uma área de manobra e de disputa, do mesmo modo que se amplia o espectro de atuação da publicidade social.

Se as ações de resistência não são, em sua totalidade, planejadas e orientadas de forma racional a um fim, os atos contra-hegemônicas, por sua vez, também não o são. O ato de um indivíduo pode ter um fim contra-hegemônico mesmo que este não seja seu objetivo. Por exemplo, a frase “comer é um ato político”, muito presente em acampamentos e falas de membros do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), pode ser uma provocação para que se reflita sobre como a forma de se alimentar e o que se come pode reforçar (ou não) uma hegemonia. Da mesma forma que um indivíduo que compra um legume produzido nos assentamentos pode fazê-lo com o objetivo de apoiar a causa da reforma agrária, um outro que opta por comprar seu alimento orgânico da agricultura familiar por uma questão de saúde também realiza um ato contra- hegemônico, mesmo que inconscientemente, uma vez que seu ato vai contra as políticas do agronegócio.

Apontar o fazer contra-hegemônico como possibilidade e seu potencial transformador trás à luz um tom de esperança de mudanças efetivas, entretanto seria um equívoco ignorar que as ações acontecem em um cenário hegemônico, onde as classes dominantes e o Estado impõem limites à atuação dos subalternos. O controle pode se dar de diversas formas, pela coerção dos mecanismos de controle, pelos entraves econômicos e os limites orçamentários que inviabilizam grandes investimentos, pelo uso articulado das ferramentas de dominação e, muitas vezes, pela difusão de informações que dissipem as ideias de transformação ou dividam internamente os grupos subalternos. Cabe aos dominados a busca pelas brechas, pelos espaços a serem preenchidos e pela persuasão, mesmo que no seu micro espaço de atuação.

Seria um erro ignorar a importância das obras e ideias que, embora claramente afetadas pelos limites e pressões hegemônicas, são pelo menos em parte, rompimentos significativos em relação a este, e que podem, em parte, ser neutralizados reduzidos ou incorporados, mas que, em seus elementos mais ativos, surgem como independentes e originais. (WILLIAMS, 2005. p. 117)

Os limites não devem impedir as ações que objetivem mudanças, entretanto, ignorá-los pode dar uma falsa dimensão dos desafios do fazer contra-hegemônico. As formas e estratégias de manutenção do poder podem atuar no campo ideológico, assim como por meio da coerção e da intimidação de ações divergentes.

A publicidade comercial que, como supracitado, age em compasso com os objetivos hegemônicos, atuando na persuasão dos indivíduos e no alinhamento com a ideologia dominante, seja direta ou indiretamente, pode, uma vez subvertida, ter suas técnicas reinterpretadas e utilizadas para um novo fim. A apropriação das técnicas pelos movimentos sociais, organizações não governamentais, minorias e todo grupo ou indivíduo que objetive ir de encontro ao que está posto é o que entendemos por publicidade social. (SALDANHA, 2012)

Uma vez que as técnicas da publicidade sejam utilizadas para questionar e ameaçar a hegemonia, se apropriando dos aparatos como “instrumentos para criar uma nova forma ético-política” (MORAES, 2010. p. 20), estamos falando de um caso de publicidade social. É importante, portanto, que os grupos subalternos enxerguem as possibilidades contidas na reapropriação da técnica para um novo fim como uma alternativa ao fazer contra-hegemônico. Seja como estratégia de persuasão, para dar visibilidade a questões específicas, aumentar pelas redes a repercussão de um ato offline, ou outras diversas formas de utilização das técnicas, a publicidade social pode (e deve) atuar como aliada nessa batalha.

Médico Sem Fronteiras, em especial a campanha #TodosContraTB, é um exemplo de campanha publicitária que se apropria das técnicas para expor um problema grave de saúde pública, mostrando a ineficiência (para não dizer o desinteresse) do Estado no tratamento da doença curável que mais mata no mundo e que atinge, em especial, as camadas economicamente desfavorecidas da sociedade. No capítulo subsequente será analisado detalhadamente se a campanha #TodosContraTB se enquadra no que se entende por publicidade social na perspectiva brasileira. Entretanto, seu viés contra-hegemônico é claro, uma vez que a campanha tem como objetivo mobilizar a sociedade civil em prol de um problema que atinge, majoritariamente, os grupos subalternos.

Ao relacionar organizações não governamentais com o fazer contra-hegemônico não se deve considerar que todas atuem para o mesmo fim. É fácil encontrar exemplos de

organizações não governamentais que repercutem e reforçam os ideais hegemônicos em sua atuação ou no discurso de seus membros. No Brasil, por exemplo, existe um grande número de ONGs religiosas, muitas delas exercendo um papel social importante, mas que carregam em seus posicionamentos ideais hegemônicos. Deve-se, portanto, manter um olhar crítico para que não se enquadre na mesma perspectiva diferentes instituições.

Fundamentar a publicidade social no fazer contra hegemônico é fundamental para evitar que campanhas publicitárias que se apropriam de uma causa social, mas que repercutem uma mensagem hegemônica não devem ser entendidas como exemplos de publicidade social de acordo com a perspectiva brasileira do conceito. Todavia, a definição, assim como a origem e as modificações ao longo dos anos, será abordada de forma mais aprofundada no próximo capítulo.

Não é necessário, entretanto, que as ações realizadas pelas organizações não governamentais ou demais grupos subalternos tenham um resultado estruturante ou obtenham êxito para serem consideradas contra-hegemônicas. Se enquadram na perspectiva todas as ações que provoquem questionamentos ou reflexões na sociedade civil, de modo que ela perceba que a ideologia difundida não se aplica a todos os indivíduos de forma homogenia e que existem dissonâncias dentro dos próprios grupos. Ou seja, o êxito de uma ação ou sua dimensão não é o que a caracteriza como contra- hegemônica, mas sim sua capacidade de levar algo novo, aquilo que, até o momento, parecia um mar de pensamentos uniformes.

A contra-hegemonia instituiu o contraditório e a tensão no que, até então, parecia uníssono e estável. Gramsci nos faz ver que a hegemonia não é uma construção monolítica, e sim o resultado das medições de forças entre blocos de classes em dado contexto histórico. (Idem, Ibidem, p. 71)

O trabalho de determinadas ONGs é, por si só, uma ação contra hegemônica. A publicidade social pode ser uma ferramenta para extrapolar sua capacidade de atuação e o impacto na sociedade. Na contemporaneidade, o digital, em especial as redes sociais, possibilitou que muitas pessoas apoiassem causas locais, da mesma forma que protestos e movimentos se alastram com uma velocidade mais rápida e com um impacto maior. O mercado já se apropriou das ferramentas digitais para fomentar o consumo, difundir estilos de vida e propagar a ideologia dominante, é importante que a publicidade social

trilhe cada vez mais o mesmo caminho, tomando para si os instrumentos de dominação e utilizando-os para outros fins. No terceiro capítulo serão abordadas as potencialidades e as fragilidades do digital para a publicidade social, entretanto é necessário que se reforce, neste momento, o digital como alternativa.

As limitações e imposições das forças dominantes, assim como sua tentativa constante de diminuir ou tentar impedir pensamentos dissonantes pode, até certo ponto, inibir a ação daqueles que almejam por transformações nas camadas sociais. Apontar a apropriação das técnicas da publicidade pela publicidade social, para um fim contra- hegemônico, é contribuir para que novas alternativas de combate ideológico na sociedade civil surjam na medida em que os aparatos hegemônicos se aperfeiçoam. Utilizar a publicidade social com o objetivo de promover transformações é se apropriar das mesmas armas que os dominantes para a batalha por persuasão e sentido. Como uma forma de demonstrar aos indivíduos que a ideologia dominante não é uníssona e que há divergências quanto a ela (e pessoas e grupos ávidos por mudanças).

Esse cabo de guerra é diferente. De imediato, não é possível reconhecer os oponentes, tampouco as regras do jogo, visto que tanto as composições de forças entre os jogadores quanto os fatores determinantes para vitória ou derrota são circunstanciais, já que dialética e historicamente constituídos. O material externo da corda, sua parte visível, é composto por linguagem, que se modifica conforme o contexto do jogo e o cenário correspondente. A camada interna, o cerne da corda, sua força motriz, é composta pelas ideologias, que tanto equilibram o jogo em benefício dos dominantes, como podem mudar o rumo da partida em favor das classes populares. Os elementos centrais que permitem aos jogadores se locomoverem, se reconhecerem e mudarem os rumos da partida são a história e a estrutura social, correspondentes à força da gravidade e ao atrito do chão, o que em última instância determina o continuum histórico. O olhar para a história e a consciência do seu papel e espaço ocupados no chão são estratégicos para operar mudanças na partida. (BASTOS, 2012)

Uma vez que se considere a disputa por hegemonia como um cabo de guerra, seria a publicidade social um novo elemento capaz de virar o jogo ou pressionar por grandes transformações?