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A crítica de Hegel

No documento Arte e Filosofia (páginas 154-158)

CRÍTICA À CRÍTICA DE HEGEL À SEHNSUCHT ROMÂNTICA

3. A crítica de Hegel

Hegel critica no romantismo a pretensão a um acesso imediato ao absoluto, ou seja, um acesso direto pelo sentimento. Ele entende isso como uma recusa da finitude e da negatividade, uma espécie de atalho para o absoluto (pode- ríamos dizer), e propõe em contrapartida que a negatividade seja aceita como um momento do progresso rumo ao absoluto, e enquanto tal, portanto, tam- bém como algo positivo. O verdadeiro acesso só pode ser feito, de acordo com Hegel, pelo modelo de reflexão puramente conceitual, pois apenas o conceito é capaz de reconhecer a negatividade como negatividade. O conceito é assim o elemento privilegiado, para não dizer exclusivo, da filosofia. Ora, vimos que a Sehnsucht, mais do que um acesso direto ao absoluto, é consciência da finitude. Hegel sabe disso e sua crítica é precisamente a de que o romantismo se perde nessa finitude, na negatividade, tomando-a por absoluto quando ela é só um estágio da consciência rumo ao absoluto. Não pretendo questionar aqui o problema do acesso ao absoluto – o que implicaria também aproximar Hegel dos românticos no tocante à admissão de um absoluto que eles preten- dem acessar de distintas maneiras – mas especificamente assinalar que Hegel passa ao largo da dimensão de abertura do sentimento, da Sehnsucht, fazendo do conceito uma solução para superar o que talvez não possa nem deva ser superado, sobretudo não racionalmente. Nesse plano da discussão, trata-se de uma divergência na afirmação sobre o ser do homem, sobre a essência da filosofia, sobre a dimensão do poético e sobre o «lugar» do sentimento e da arte em relação à filosofia. Vejamos em detalhe.

Primeiro ponto a observar é que a filosofia de Hegel estabelece como essência e finalidade do ser humano a objetivação de um Espírito Absoluto racional (Geist), que se tornaria cada vez mais consciente de si mediante o progresso de seus estágios.

O primeiro estágio desse progresso é a certeza sensível: quando o homem, feito a criança, «está como que sonhadoramente preso nas percepções, (...) perdido na autoevidência das coisas» (HOGREBE, Sehnsucht und Erkenntnis, p. 4). A crescente reflexividade permite que o homem supere essa primeira forma de alienação da consciência. Mas num primeiro momento a entrada da reflexividade se dá como perda, pois ao reconhecer sua subjetividade como relativa o indivíduo experimenta a perda da unidade com o mundo. Essa experiência de perda caracteriza um estágio de consciência que Hegel denomina a consciência infeliz, pois «a ingênua presença do mundo perde o caráter de autoevidência familiar... [e o mundo] é impelido a uma dolorosa distância» (HOGREBE, Op. cit., p. 5); agora, a consciência «sente falta/ saudades (sehnt sich) desse mundo perdido» (HOGREBE, Op. cit., p. 5). O progresso para além desse estado requer uma superação dessa saudade. Se, em vez disso, «perseverarmos nessa Sehnsucht, caímos em um inativo e doloroso remoer da consciência», um «bloco de pensamento meramente sentido» (HOGREBE, Op. cit., p. 5): «[O pensar como tal dessa consciência infeliz] permanece um informe badalar de sinos, ou uma cálida satisfação nebulosa; um pensamento musical, que não chega ao conceito (...)» [ein musikalishes

Denken, das nicht zum Begriffe (...) kommt.] (HEGEL, Phänomenologie des Geistes, p. 148). A consciência infeliz

decerto se torna o objeto desse infinito sentir puro e interior; mas de tal forma que não vem a ser algo conceitual, surgindo por isso como algo estranho. Está presente, assim, o movimento interior da alma pura, que sente a si mesma, mas dolorosamente como cisão; o movimento de uma nostalgia infinita (unendlichen Sehnsucht), que tem a certeza de que sua essência é essa alma pura, puro pensar que se pensa como singularidade (HEGEL, Op. cit., pp. 148-9).

Ou seja, nesse movimento o Espírito de fato se volta para si e portanto trans- põe um primeiro degrau na tomada de consciência de si mesmo, logo a cons- ciência infeliz tem uma função positiva, enquanto resistência a ser vencida; no entanto, aqui o Espírito se mantém alienado uma vez que essa consciên- cia está apartada de si e se vê como estranha. A nostalgia é infinita porque é uma imersão, um afundamento na alienação, que só pode ser superada por um salto do Espírito, em que este deixe de se identificar completamente com esse estado singular e nele reconheça uma fase de seu tornar-se-consciente.

É preciso que a consciência literalmente «suprassuma» (aufheben) esse es- tado, «supere-o subordinando». É isso que faz o conceito: subordina con- teúdos de modo que estes se tornem reconhecíveis no todo. O que Hegel chama de «chegar ao conceito» (zum Begriffe kommen), portanto, significa muito mais do que atingir uma definição exata sobre algo: é a forma pura da clara compreensão, da clareza de consciência, do correto «estar em si».

Begriff (de greifen, apanhar, agarrar, alcançar) é o elemento no qual o Espírito

alcança a si próprio.

É nesse caráter ativo próprio do conceito que reside para Hegel a es- sência do Espírito. A Sehnsucht é então uma espécie de «lapso sonhador» que se interpõe entre o Espírito e Ele-mesmo. Preso nessa interposição, o estado de espírito romântico se confundiria com o singular, imergiria nele e não se reconheceria no universal, tornando-se por isso incapaz de atuar

objetivamente; falta-lhe

a força da extrusão/exteriorização [Entäußerung], a força para se fazer coisa e para suportar o ser. [A existência nostálgica] vive na angústia de manchar a magnificência de seu interior por meio da ação e do ser-aí (Dasein); para preservar a pureza de seu coração, evita o contato da efetividade, e perma- nece na obstinada impotência: – de renunciar a seu Si, aguçado até a última abstração; – e de se conferir substancialidade, ou transmudar seu pensar em Ser (HEGEL, Fenomenologia do Espírito II, p. 134).

Hegel entende a Sehnsucht portanto como um entrave à objetivação, à efeti- vidade do Espírito. Isso acontece, em seu entender, porque ela ilude o ho- mem em relação a seu si-mesmo, o seduz musicalmente, sensorialmente a identificar-se com um momento de sua evolução, impedindo-o de atingir o universal. Não é por acaso que Hegel se vale da imagem do «informe badalar de sinos» para caracterizar a Sehnsucht; a crítica à atitude romântica, de en- trega à interioridade, refere-se precisamente ao fato de o espírito cair numa autoimersão de natureza estética:

O objeto vazio, que para si produz, enche-o assim com a consciência de sua vacuidade; seu agir é o anelo [Sehnen] que somente se perde no converter de si mesmo em objeto carente-de-essência/desprovido de ser [wesenlosen]. Ultrapassando essa perda e tornando a cair em si, encontra-se somente como perdido. Nessa transparente pureza de seus momentos arde, infeliz,

uma assim-chamada bela alma [Schöne Seele] consumindo-se a si mesma, e se evapora como uma nuvem informe que no ar se dissolve (HEGEL, Fenomenologia do espírito II, p. 134).

O que seduz a que se caia e permaneça nesse estado de inconsistência on- tológica é justamente seu caráter estético, em amplo sentido. Nas imagens usadas por Hegel pode-se perceber nitidamente que se trata do estético nos dois sentidos: como o que se refere ao aspecto sensorial do sentimento («cálida satisfação nebulosa», «arde», «se evapora», «nuvem», «se dissol- ve»), e no sentido do que é próprio à arte de paradigma musical, a melodia que envolve e enleva. Talvez possamos dizer que se trata aqui do lírico enquanto tal, ou ao menos dessa essência musical do lírico, essência de que a palavra está etimologicamente embebida. Poderíamos dizer que essa crítica à bela alma é a crítica a um estado ou atitude lírica, supostamente incapaz de sair de si e superar-se:

... não resta então nada mais a não ser o retraimento no mundo interior dos sentimentos, de onde o indivíduo não sai e se considera a si, nesta não-efetividade, como aquele que sabe muito, que apenas olha o céu de modo nostálgico e, por isso, crê poder menosprezar tudo o que é terreno (HEGEL, Cursos de estética I, p. 250).

A crítica de Hegel ao romantismo se volta sobretudo contra Schlegel e Novalis porque eles não só valorizaram a Sehnsucht em sua dimensão poé- tica, como também lhe deram o peso e a dignidade de toda uma filosofia, ou seja, trouxeram o poético e o afetivo para o cerne da filosofia, dando à

Sehnsucht um lugar privilegiado, e não subordinado, no que diz respeito ao

conhecimento. Trata-se de uma profunda divergência no tocante ao que es- ses autores entendem ser a relação entre o sentimento e a autoconsciência e entre o poético e o filosófico. Hegel, na esteira de uma cisão extrema (e bas- tante frequente na história da filosofia) entre pathos e logos, vê o sentimento como algo ontologicamente inferior ao conceito, e o poético como algo que deve estar essencialmente subordinado ao filosófico. Daí que a Estética na filosofia de Hegel tenha também um lugar subordinado, num sentido muito preciso: ela só pode descrever a arte como exposição do Espírito Absoluto racional; a dimensão da arte permanece em função do conceito e é no saber

filosófico-científico que reside em última instância a verdade da arte. Ou seja, o poético ele mesmo jamais terá direito a uma «palavra final». Isso por- que a dimensão poética subjetiva e interior deve ser, justamente, superada. É um absolutismo da razão do conceito.

No documento Arte e Filosofia (páginas 154-158)