• Nenhum resultado encontrado

A heterogeneidade em arte

No documento Arte e Filosofia (páginas 178-183)

O OPERADOR ESTÉTICO HETEROGÉNEO E A OBRA DE ARTE COMO SUJEITO:

1. A heterogeneidade em arte

Começo por vos falar daquilo a que, com frequência, Ernesto de Sousa cha- mava o «operador estético». José Ernesto de Sousa não foi apenas o acla- mado realizador do filme Dom Roberto, de 1962, que, juntamente com Os

verdes anos de Paulo Rocha, contribuiu decisivamente para o advento daqui-

lo que ficou conhecido como o «Novo Cinema Português», com inúmeras consequências na arte cinematográfica portuguesa e em debates de natureza estética numa época ainda marcada pelas limitações da ditadura. Ernesto de Sousa expandiu a sua intervenção estética, cultural e sociopolítica por

múltiplos sectores, desde a crítica de arte até à sua acção pessoal nas artes visuais, desde a organização de eventos artísticos até à reflexão filosófica, desde a direcção de actividades performativas até ao vídeo e ao cinema ex- perimental, desde o estudo de questões concretas do âmbito da história de arte até à colaboração activa com as mais variadas formas de arte. Era ele mesmo um heterogéneo, e, no meio dessa heterogeneidade, era também um produtor de ideias. De entre essas ideias quero destacar precisamente a de «operador estético».

A designação de operador estético vem substituir aquilo que na nomen- clatura vulgar é a designação de «artista». Sucede, porém, em primeiro lugar, que a designação de artista é de ordem sociológica – ou mesmo de ordem económica – e não de ordem estética ou de ordem filosófica; a designação de artista refere-se a uma dada ocupação no âmbito da divisão do trabalho. E, para além disso, ela nada contém que especifique em que ordem de ac- tividade o artista possa situar-se. Limita-se a ligá-lo às artes, mas nada diz sobre o como dessa ligação. Pelo contrário, a designação de operador estético subtrai-se à vagueza da palavra artista e indica dois vectores da actividade em causa: o operar e o carácter estético desse operar.

Quanto ao operar do operador, importa talvez sublinhar que operar sig- nifica etimologicamente uma actividade com a obra, pela obra e para a obra. A obra, nesta perspectiva, não é opus conclusum, não é ergon, mas sim opus in

acto, obra em progresso, obra sempre inacabada, ou seja, como procurarei

mostrar mais pormenorizadamente na segunda parte desta conferência, obra que age, obra que sendo opus agens é necessariamente também energeia. Deste modo, afirmemo-lo desde já, o operador não é apenas um fazedor de objectos, um criador ex nihilo, ele é alguém que está simultaneamente ao serviço da obra e ao serviço do tempo das obras, passado, presente e futuro, ou – dizendo antecipadamente estes três tempos segundo a ordenação que para eles encontraremos na terceira parte desta conferência – futuro, antes de mais, presente, depois, e passado, por último.

Para além desse (afinal modesto) operar, o operador é precisamente «operador estético». Estético significa aqui fundamentalmente duas coisas: por um lado, naquele sentido do termo «estético» que porventura prevalece nos discursos filosóficos e de alguma história de arte, o operador acompanha activamente e passivamente o dinamismo próprio de obras que comportam

uma materialidade radical que se dirige em primeiríssima instância aos nos- sos sentidos, à nossa aïsthesis; mas, por outro lado, as obras inscrevem-se também num amplo – senão mesmo infindável – território a que podemos chamar estético precisamente no outro sentido que a tradição filosófica reservou para este adjectivo, o de determinar verbalmente o território do conjunto das obras na sua (por vezes esquecida) interacção crucial e na sua deambulação conjunta e incontida. Estes dois sentidos do termo «estético» exigem um exame mais atento.

Primeiro, quanto à materialidade das obras é preciso sublinhar que ela não é exclusiva. A nossa relação com as obras – sejam elas de que natureza forem (ou seja, mesmo no caso das obras ditas «virtuais» e também no caso das obras de natureza «conceptual») – envolve sempre a nossa sensibilidade (Sinnlichkeit), o nosso sentir exterior e/ou interior. Mas essa relação não se fica por aí. A nossa relação com as obras – ou, o que não é propriamente o mesmo, a relação das obras connosco – é também algo que se processa no plano da inteligência, da razão e, em particular, da imaginação, numa palavra, no plano a que Hegel chamaria o espírito. Sendo assim o operador estético não é exclusivamente estético. É crucialmente estético, mas o que nele existe de estético cruza-se, entrelaça-se, mistura-se ou funde-se com o que nele existe de inteligente, de racional e de imaginativo. O que isto significa é que, logo a este nível, encontramos uma significativa instância de dispersão, de disseminação, para usar um termo caro a Derrida.

Esta instância de disseminação não será ainda da ordem daquilo a que mais adiante chamarei heterogeneidade, mas é um dos elementos que, filosoficamente falando, preparam o terreno para essa heterogeneidade. O estético, sendo embora a âncora à qual se fixa tanto o operador como a obra, não subsiste por si ou, dizendo talvez melhor, não pode abdicar das funções conceptuais e imaginativas que participam activamente da sua mobilidade e que implicam uma constante proliferação de elementos fragmentários marcados simultaneamente pela centralidade do estético e pelo carácter periférico dessas outras funções. O que isto significa é que o estético, o plano do sensível, sobrevive graças à interacção que com ele mantêm planos que afinal lhe não são exactamente alheios. Mas significa também que o plano do estético é, em si mesmo, instável e potencialmente proliferante. Esta problemática acompanhar-nos-á mais ou menos visivelmente naquilo que se segue.

A segunda especificação que importa fazer relativamente ao operador estético diz respeito àquilo a que vulgarmente se chama o campo das artes. Introduzindo a designação de operador estético, Ernesto de Sousa tinha também em vista acolher a proliferação das artes. Em vez do artista pintor, do artista escultor ou do artista performer, tratava-se de acolher numa designação de outro tipo o grande conjunto de acções que dizem respeito aos mais diversos relacionamentos com o estético. O lema, aqui, seria algo como: «Contra a especialização das actividades artísticas!» Ou então, dizendo de modo mais positivo: «Pelo sincretismo do estético!», «Pela interferência activa de todas as modalidades do estético!» Trata-se de proporcionar uma instância de entrecruzamento ou de interferência dessas modalidades que permita ultrapassar radicalmente a estagnação a que as artes estão sujeitas de cada vez que cada sector de actividade se fecha sobre si próprio. Por outras palavras, trata-se de proporcionar níveis – ou planos – de «caos», em que o importante é precisamente uma «confusão» das artes, e em que essa confusão/ com-fusão se revela propiciatória de novas potencialidades criativas que, para além do mais, transportam consigo o signo do infindável. Aquilo a que chamo confusão das artes não é, ao contrário do que as boas consciências poderão pensar, um beco sem saída, um confusionismo negativista e pauperizado ou infértil. É, precisamente ao invés, uma atitude revolucionária relativamente ao separativismo e enquistamento tradicional, uma atitude de abertura a novas possibilidades, uma atitude de híper-produtividade que ultrapassa tudo o que possam ser limites pré-estabelecidos.

Neste ponto, ao falarmos da infinitude de possibilidades aberta por esta acepção do operador estético e da obra, estamos já, de facto, no terreno do heterogéneo. Precisarei, pois, de fazer um breve excurso para determi- nar com rigor aquilo que, a meu ver, faz diferir três figuras da diferença: a diversidade, a multiplicidade e a heterogeneidade. Tenho defendido em várias circunstâncias que a heterogeneidade não é susceptível de ser trata- da por intermédio do mesmo tipo de dispositivos com que habitualmente caracterizamos a diversidade e a multiplicidade. Estas duas últimas figu- ras da diferença podem ser ilustradas em termos da geometria euclidiana. A diversidade estabelece-se sobre uma mesma linha: pontos vários sobre essa linha, em diferentes condições de espaço-tempo, podem divergir (ou divergem necessariamente); a diversidade é esse tipo de divergência linear.

A multiplicidade não suporta esta linearidade. Ela obriga a uma perspectiva espacial, obriga a que distingamos diferentes planos, e que, nesses planos, sejam observadas relações de plano a plano, as quais divergem entre si de modo muito mais substancial do que no caso da mera diversidade. Assim, a multiplicidade tem uma eficácia criativa muito superior à da diversidade, mas sempre finita e sempre orientada, embora os direccionamentos desta orientação sejam de uma variedade por vezes muito assinalável. Contudo, as coisas mudam completamente de figura quando passamos a falar da heterogeneidade. A única metáfora que parece poder dar conta do que se passa com a heterogeneidade é a da explosão. Uma explosão implica uma dispersão incontrolável, imprevisível, não-confinada e sobretudo ilimitada; a partir de um núcleo energético, a explosão projecta partículas numa incon- tável panóplia de direcções, e as partículas projectadas chocam-se entre si, de tal modo que – tendencialmente – os direccionamentos da explosividade se multiplicam infinitamente. A heterogeneidade acolhe inteiramente os traços característicos desta metáfora da explosão. Ela fala-nos de eventos – e não de meros factos – que se não deixam reduzir à suposta necessidade ética ou cognitiva, religiosa ou política, do um. E estes eventos existem, por muito que, como sabemos, a história da filosofia desde sempre tenha feito – e ainda hoje continue a fazer – todos os possíveis por construir formidáveis modelos de pensamento totalitário destinados a conter – senão mesmo a esmagar – a eficácia da pluralidade heterogénea. Porém, a heterogeneidade não cessa de irromper por toda a parte e, no plano da filosofia, ela tornou-se o instrumento verdadeiramente capaz de pôr em causa o carácter monolíti- co, totalitário e metafísico da redução à unidade, ou seja, do uno, enquanto esteio da filosofia mais retrógrada e mais conservadora.

Retomemos, então, o ponto em que nos encontrávamos: a heterogenei- dade do operador estético e a heterogeneidade da obra. Estas duas questões necessitam de abordagens mais pormenorizadas, sobretudo a partir do momento em que tivemos oportunidade de sublinhar os caracteres mais salientes da heterogeneidade.

Quanto à heterogeneidade do operador estético, para lá do que acima fi- cou dito acerca da imensa abertura de possibilidades suscitada pela tendencial abolição de fronteiras entre os vários domínios das artes (senão mesmo da vida!), importa observar agora o efeito multiplicador da simultaneidade de

direccionamentos de acção. Quando o operador – como hoje sucede com inúmeros intervenientes na cena das diferentes artes – abandona o monocor- dismo, o monolitismo ou o monoideísmo, de uma sequência de trabalhos feita de simples repetições ou variações sem diferença específica, de meras desco- bertas técnicas – autênticas trouvailles – repetidas à exaustão, de abdicação do desejo, quer seja o desejo do novo, quer seja o radical desejo nietzschiano de viver, quando abandona essa monotonia e envereda decididamente pela ex- perimentação e pela dissidência – se me é permitido usar neste contexto os precisos termos do título do projecto de investigação que dirijo presentemente no Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa –, designadamente pelos caminhos daquilo a que podemos chamar desde já a dissidência em relação a si mesmo, em relação ao eu, que passa a ser um eu pulverizado e ele mesmo aberto à outridade das coisas e dos seres, quando assim é, a obra, no seu con- junto, transforma-se radicalmente. Ela passa a ser precisamente o lugar móvel, flutuante, fundamentalmente em devir, dessa tal outridade, significando isto que o operador não mais opera com mesmos, mas sim com constantemente

outros. E, chegados aqui, podemos começar a compreender que o próprio ope-

rador é transformado em sucessivos outros por uma obra que, como veremos mais pormenorizadamente de seguida, na segunda parte desta intervenção, comanda enquanto sujeito esse processo de transformações.

No documento Arte e Filosofia (páginas 178-183)