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A incompreensão de Hegel

No documento Arte e Filosofia (páginas 158-163)

CRÍTICA À CRÍTICA DE HEGEL À SEHNSUCHT ROMÂNTICA

4. A incompreensão de Hegel

Há uma divergência fundamental no que Hegel e os românticos entendem ser a essência espiritual do homem: para Hegel, puro Espírito ativo; para os românticos, também a alma em sua profunda capacidade de sentir. Hegel es- tabelece uma oposição extrema e hierárquica entre o puro pensamento (ati- vo) e o «mero sentimento» (passivo). Mas não se trata só de uma divergência, e sim também de uma incompreensão dos românticos por parte de Hegel: ele trata o sentimento romântico quase como se ele fosse meramente senso- rial e incapaz de conscientização – por isso também uma consciência infeliz. Ora, os românticos até certo ponto concordariam que sua consciência é uma consciência infeliz; mas esta seria uma proclamação consciente: é um olhar da alma para si mesma que encontra a consciência de uma falta, é um afeto que se sabe afeto, aí reconhecendo sua condição finita. Na medida em que essa condição de apartamento é reconhecida como uma disposição da alma e é assumida, ela passa, de condição meramente passiva – algo que a alma apenas sofre –, para a dignidade de uma disposição em que a alma mesma se

coloca e se afirma. Enquanto reconhecimento consciente de uma condição,

o afeto não é mera inatividade, um engano ou estágio inferior no desenvol- vimento do espírito, mas revela-se uma instância espiritual fundamental. Se a Sehnsucht é um pensamento musical, não é, portanto, porque «não chega ao conceito», mas porque não deve mesmo ser «suprassumida». Enquanto Hegel se apressa em negá-la e suprassumi-la/suprimi-la pela «força ativa do conceito», o romântico está aberto a ela. Desse ângulo, é a postura de Hegel que leva a uma alienação em relação a um aspecto fundamental da condição humana; nos termos de Schlegel e Novalis isso seria uma insuficiência na própria noção do absoluto, que não pode ser absoluto se deixar de fora as- pectos fundamentais da condição humana.

Por fim, gostaria de dar um exemplo que sumariza bastante bem o ponto complicado da crítica de Hegel ao romantismo.

Em certa altura, Hegel direciona sua crítica especificamente a Novalis. Ele reconhece em Novalis «um ânimo nobre», mas que

foi impulsionado ao vazio de interesses determinados, a esta timidez perante a efetividade e, se assim se pode dizer, alçado a esta tísica do espírito. Esta é uma nostalgia que não quer dignar-se à ação e produção efetivas, porque teme tornar-se impura mediante o contato com a finitude (...) (HEGEL, Cursos de estética I, p. 172).

Essa avaliação de Hegel sobre Novalis é a mesma que o vimos fazer sobre o romantismo em outras passagens. A injustiça dessa crítica pode ser exposta já simplesmente ao lermos o poema de Novalis «Armenmitleid», «Compaixão pelos pobres» (NOVALIS, «Armenmitleid», s. p., tradução nossa):

Sag an, mein Mund, warum gab dir zum Sange Gott Dichtergeist und süßen Wohlklang zu, Ja wahrlich auch, daß du im hohen Drange Den Reichen riefst aus träger, stumpfer Ruh.

Denn kann nicht Sang vom Herzen himmlisch rühren, Hat er nicht oft vom Lasterschlaf erweckt;

Kann er die Herzen nicht am Leitband führen, Wenn er sie aus der Dumpfheit aufgeschreckt. Wohlauf; hört mich ihr schwelgerischen Reichen, Hört mich doch mehr noch euren innren Ruf, Schaut um euch her, seht Arme hülflos schleichen, Und fühlt, daß euch ein Vater nur erschuf.

Diz, boca minha, por que foi que Deus te deu Para cantar espírito poético e doce melodia, Se não também para que em mais alto impulso Tu despertes os ricos de sua apática letargia? Não pode o canto comover o coração, E despertar do vício sonolento? Não pode conduzi-lo ao bom caminho Ao sacudi-lo de sua prostração?

Despertai; ouvi-me, ó ricos sibaritas, Ouvi ainda mais o vosso interno grito, Vede os pobres se arrastando em desamparo, E senti que um mesmo Pai vos deu a vida.

Com seu canto, o poeta deixa bastante claro que seu sentimento e vocação poéticos estão voltados para o mundo, para a vida, e isso no que estes têm de mais falho e finito – neste caso, uma forma de injustiça social. Vale notar, em especial, que neste poema Novalis critica justamente a autoimersão incapaz de sair de si – mas esta autoimersão nada tem a ver com o sentimental e o poético. Há, portanto, bastante «força de extrusão» neste poema, num sen- tido muito preciso: como apelo, como grito do sentimento e da poesia. Não parece justo dizer nem que o poeta «permanece na obstinada impotência», nem que ele «teme o contato com a finitude».

A crítica de Hegel se mostra equivocada precisamente em não perceber a importância da dimensão do sentimento para a consciência. Mesmo sua dis- tinção abrupta entre atividade e passividade é falha, pois o que age no poema de Novalis não é apenas o Espírito enquanto pura atividade determinadora (no sentido de Hegel), mas também a própria «bela alma» que, justamente por estar aberta e se deixar afetar (por ser «passiva»), é capaz de reagir.

Referências bibliográficas

ADELUNG, J. C. (1811), Grammatisch‑kritisches Wörterbuch der Hochdeutschen Mundart. Disponível em: http://lexika.digitale-sammlungen.de/adelung/ online/angebot.

HEGEL, G. W. F. (2001), Cursos de Estética I. São Paulo: Edusp. ————— (1993), Fenomenologia do Espírito II. Petrópolis: Vozes.

————— (1988), Phänomenologie des Geistes. Hamburg: Felix Meiner Verlag. HOGREBE, Wolfram (1993), Sehnsucht und Erkenntnis. Jena: Verlag Palm & Enke. HUCH, Ricarda (1985), Die Romantik. Hamburg: Rowohlt Verlag GmbH.

KIRCHNER & MICHAËLIS (1907), Wörterbuch der Grundbegriffe der Philosophie. Disponível em: http://www.zeno.org/Kategorien/T/ Kirchner-Michaelis-1907.

NOVALIS, «Armenmitleid». Disponível em: http://gutenberg.spiegel.de/buch/ gedichte-9082/16

————— (2001), Pólen. São Paulo: Iluminuras.

SANTOS, Manuela. Morte, amor e poesia: o romantismo em Novalis. Disponível em: http://manuela.pt/Novalis.html.

SCHLEGEL, F. (1994), Conversa sobre a poesia e outros fragmentos. São Paulo: Iluminuras.

SCHMID, W. «Von der Bedeutung der Sehnsucht». Disponível em: http://spol. ch/20jahre/wp-content/uploads/2011/04/Von-der-Bedeutung-der- Sehnsucht.pdf.

A MÚSICA NA FILOSOFIA

No documento Arte e Filosofia (páginas 158-163)