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O fascínio ou a rejeição do estranho na arte

No documento Arte e Filosofia (páginas 192-194)

NA ARTE CONTEMPORÂNEA

1. O fascínio ou a rejeição do estranho na arte

O fascínio pelo estranho, tal como os preconceitos, o medo e a rejeição do estranho, refletem-se na arte, por exemplo, na imagem do «bom» e do «mau selvagem» de culturas desconhecidas, bem como no confronto com o es- tranho na sua própria cultura. No modernismo clássico são utilizados ele- mentos exóticos, que se tornam a base da arte, em particular relativamente aos processos da abstração,2e alteram a criação artística substancialmente. A

ligação com a estranheza3 está sujeito a uma constante evolução e revela-se

tanto no relacionamento teórico com a arte no contexto das ciências e/ou da história da arte como na prática artística. Isto torna-se evidente nas próprias obras de arte. Constatam-se, em especial, os conceitos exotismo, orientalis- mo, crioulização e hibridização ou crioulidade e hibridade como formas de penetração teórica na arte. Neste contexto analisaremos a questão dos tipos de estranheza que podemos identificar nos conceitos desde o exotismo à hibridade, nos respetivos conceitos artísticos e encenações artísticas.

1 O artigo é uma versão ligeiramente modificada do texto publicado em alemão: Rainsborough,

Marita (2016), «Fremderfahrungen in der Kunst. Vom Exotismus und Orientalismus zur Kreolisierung und Hybridisierung». Em: Fitzner, Werner (ed.), Kunst und Fremderfahrung: Verfremdungen, Affekte, Entdeckungen. Bielefeld: transcript, p. 77-96.

2 O exotismo recorre aqui ao primitivismo de Einstein, que propaga as obras de escultura

africanas como exemplo para a criação cubista na escultura europeia. Cf. Mayer, Michael (2010), «Tropen gibt es nicht.» Dekonstruktion des Exotismus. Bielefeld: Aisthesis, 2010, p. 15.

3 Em Waldenfels lê-se a este respeito: «A nossa questão prende-se com as diferentes formas

da estranheza e os diferentes modos de superação contraditórios com que respondemos ao desafio do estranho. Não podemos ignorar que o estranho e desconhecido são atualmente muito valorizados, embora de uma forma extremamente ambígua e questionável que está relacionada com a referida crise dupla da razão e do sujeito.» Em: Waldenfels, Bernhard (1991), Der Stachel des Fremden. Frankfurt am Main: Suhrkamp, p. 58. E prossegue dizendo: «O estranho, ao contrário do peculiar, tem que ver com estruturas de experiências e categorias de experiências.» (Waldenfels, Der Stachel des Fremden, p. 59) E ainda: «Se a peculiaridade emer- ge da interação com o estranho, a alteridade também recai na esfera da intrasubjetividade.» (Waldenfels, Der Stachel des Fremden, p. 67) De acordo com Waldenfels, deste processo nasce também uma interdiscursividade. (Cf. Waldenfels, Der Stachel des Fremden, p. 69) Recorrendo à ética de Levinas, Waldenfels exige para a área das experiências do estranho: «[A]ssim, é ne- cessário um discurso, que, numa renúncia constante [...], prescinde de uma primeira e última palavra.» (Waldenfels, Der Stachel des Fremden, p. 118)

Além do mais, devemos analisar os conceitos atuais da experiência do estranho4 na arte em relação às suas implicações, ao seu teor emanci-

pador e possíveis ganhos face aos conceitos do exotismo e orientalismo. Relativamente ao potencial progressivo da hibridade enquanto forma atual do relacionamento com o estranho em geral, Ha constata: «A própria hibri- dade torna-se sinónimo do inovador e revolucionário.»5 Ha constata que a

hibridade na maioria das vezes não pode cumprir essas expectativas e, na sua reflexão crítica sobre a hibridade, Ha afirma:

A esperança de questionar e desestabilizar conceitos hegemónicos e estruturas de poder através de categorias intermédias revela-se perfeitamente incorporável no seu efeito de modernização social. Sobretudo os efeitos transformativos da hibridização podem permanecer afirmativos no contexto do já existente e não têm necessariamente de exceder os limites entre dominâncias e marginalidades.6

Esta análise pode ser transposta para o conceito da crioulidade ou crioulização.7 Huggan constata, além disso, novas formas do exotismo –

von Boehme fala de «glomanticism»8 –, relacionadas com os processos da

globalização aos quais também estão sujeitos os campos culturais. «What is clear, in any case, is that there are significant continuities between

4 «Na transição a partir da experiência individual do estranho, que aqui decorre, não se trata

meramente da ampliação ou reprodução de experiências pessoais, como se interculturalidade significasse uma intersubjetividade em geral. Trata-se antes de repensar a correlação entre microexperiências e macroestruturas a partir do fenómeno do estranho, de modo a questio- nar também os estados dos sujeitos e culturas.» Em: Waldenfels, Bernhard (62013), Topographie

des Fremden: Studien zur Phänomenologie des Fremden I. Frankfurt am Main: Suhrkamp, p. 13. Waldenfels faz a distinção entre estranheza quotidiana, estrutural e radical. (Cf. ibid., p. 205) Segundo o autor, «a experiência do estranho pressupõe uma exigência do estranho que pre- valece sobre a nossa iniciativa própria.» (Ibid., p. 14)

5 Ha, Kien Nghi (2005), Hype um Hybridität: Kultureller Differenzkonsum und postmoderne

Verwertungstechniken im Spätkapitalismus. Bielefeld: transcript, p. 40.

6 Ibid., p. 16.

7 Glissant prefere o termo crioulização ao de crioulidade, uma vez que este frisa o caráter

de processo.

8 «Este fenómeno foi entretanto designado de ‘glomanticism’, uma ligação fatídica de globali-

dade e romanticismo (Marchart 2004: 99).» Em: Beyme, Klaus von (2008), Die Faszination des Exotischen: Exotismus, Rassismus und Sexismus in der Kunst. Munique: Wilhelm Fink, p. 177.

older forms of imperial exoticist representation and some of their more recent, allegedly postcolonial, counterparts. Two of these continuities, themselves interlinked, can be examined here: these are the aesthetics of

decontextualisation and commodity fetishism.»9 Aplicar-se-á esta análise crítica

dos autores de igual modo à arte contemporânea na área da experiência do estranho ou conseguirá a arte salvar o potencial emancipador dos conceitos crioulização e hibridização? Pode a arte preservar a autonomia e escapar às tendências sociais generalizadas? Além do mais, pretende-se analisar se a experiência da estranheza na arte contemporânea, em que a própria arte se torna frequentemente no estranho e representa, para o recetor da arte, gradualmente per se uma experiência do estranho, já só pode ser entendida como uma característica estética geral ou qualidade expressiva de obras de arte − numa evolução do estranho na arte para a arte como estranho no sentido de uma dissolução do estranho no estranho na arte.

No documento Arte e Filosofia (páginas 192-194)