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Da heterogeneidade à obra enquanto sujeito

No documento Arte e Filosofia (páginas 183-188)

O OPERADOR ESTÉTICO HETEROGÉNEO E A OBRA DE ARTE COMO SUJEITO:

2. Da heterogeneidade à obra enquanto sujeito

Temos, então, por um lado, a heterogeneidade do operador estético e, por outro, a heterogeneidade da obra. A partir deste momento, quando falarmos de obra, teremos de ser capazes de distinguir entre cada obra, individualmente considerada, e o conjunto da obra, ou seja, a obra globalmente considerada. A verdade é que também aqui a heterogeneidade envolve dois planos distintos, mas, ao mesmo tempo, complementares. Se a obra globalmente entendida pode facilmente ser percebida como um conjunto de disparidades heterogéneas, a verdade é que se torna necessariamente mais difícil pensar cada uma das obras numa sua heterogeneidade. Exploremos, então, esta possibilidade.

Como é que uma obra, isoladamente considerada, pode surgir-nos em processo de heterogeneidade? A partir do advento da modernidade artística, ou seja, a partir daquele momento – que na pintura se situa na transição

do impressionismo para o pós-impressionismo, que na literatura se situa na passagem do simbolismo para o expressionismo e o futurismo, que no cinema é marcado pela irrupção do expressionismo, etc. – em que as obras deixam de ser uma mera janela para um mundo sempre ficcionado, mas nem por isso menos dependente da ilusão realista ou naturalista, a partir desse momento, claramente marcado pelo aparecer da obra precisamente enquanto obra, enquanto objecto, enquanto materialidade em si mesma, e já não enquanto sinal para uma outra coisa, a partir daí estão de facto criadas as condições para que cada obra possa – não sempre, como é óbvio, mas muitas vezes – evidenciar uma proliferação interna de factores estéticos díspares que se aproximam, primeiro, da multiplicidade e, depois, da heterogeneida- de. O dadaísmo, nas suas vertentes plástica, literária, instalatória, cinemato- gráfica, teatral-performativa, musical, etc., será porventura aquele conjunto de actividades em que a heterogeneidade interna das obras mais pode evi- denciar-se no seu carácter fortemente constitutivo e, simultaneamente, no seu efeito profundamente crítico e destrutivo face às estéticas mais conser- vadoras e mais fechadas sobre a sua própria auto-reprodução. Se tivermos presente o modo como o dadaísmo, ao longo do século XX e ainda hoje, tem continuadamente exercido uma influência predominante em muitos secto- res das artes, teremos assim uma ilustração, a meu ver convincente, de como a heterogeneidade pode ser efectivamente actuante ao nível de cada obra.

Perguntar-se-á, então, em que medida este tipo de heterogeneidade des- loca a questão do sujeito do primado do operador para o primado da obra. Em primeiro lugar, é preciso sublinhar que uma obra heterogénea é com- posta por relações; trata-se de relações internas que, devido à presença da heterogeneidade, são potencialmente infinitas. Estas relações, precisamente porque envolvem um conjunto aberto de diferenças efectivas e actuan- tes, significam o contrário de qualquer estatismo da obra. Numa palavra, a obra funciona. A obra funciona em consequência de diferenças, e estas diferenças são tanto mais actuantes quanto possam ser identificadas como diferenças mínimas, diferenças aparentáveis com aquilo a que Leibniz cha- mou «pequenas percepções». Ora, se a obra funciona, isso significa também que ela é dotada de autonomia. O funcionamento das diferenças mínimas internas é radicalmente independente da presença do objecto ao espectador e da participação do operador estético. Esta independência radical tem uma

justificação, embora essa justificação não seja nem sociológica, nem psicoló- gica, nem do âmbito da história de arte. Pelo contrário, uma tal justificação é construída estritamente por um argumentário filosófico.

Vejamos então. Supondo prioritariamente que acreditamos na independência de certos objectos em relação a nós, então subsiste um território em que também certas diferenças funcionais podem ser tidas por independentes daquilo a que vulgarmente chamamos os sujeitos da cognição. Para que tal possa de facto acontecer há pelo menos uma condição que tem de ser satisfeita. Essa condição é a da indiferença; a indiferença estética, como lhe chamou Duchamp. É preciso que o funcionamento das diferenças – ou seja, a diferença mínima que faz disparar a acção de uma obra – seja totalmente marginal em relação aos interesses «estéticos» do espectador ou do operador. É preciso, para usar uma linguagem aparentada com a de Jacques Rancière, que o receptor seja um espectador emancipado; não propriamente emancipado relativamente aos condicionalismos sociais que porventura o determinam, porque não é isso que está neste momento em causa, mas emancipado precisamente em relação à presença diferencial da obra face aos seus interesses. E é preciso também que o operador seja igualmente emancipado, ou seja, que também ele não interfira com a obra no plano dos seus interesses. Por interesses entenda-se aqui muito especialmente tudo aquilo que possa derivar de qualquer juízo de gosto ou que para ele possa contribuir.

Resumindo: se quer o espectador, quer o operador não intervierem no plano dos seus interesses estéticos (i.e. dos seus juízos de belo ou não-belo) no que respeita à relação de presença da obra face a eles – o que obviamente nem sempre acontecerá, mas pode muito bem ser o caso! –, então a obra pode libertar-se completamente dos seus putativos sujeitos (sujeito de recepção e sujeito de produção) e funcionar por conta própria.

Porém, quando chegamos ao ponto em que compreendemos que a obra pode funcionar por conta própria, compreendemos também que ela assume os traços da verdadeira subjectividade, ou seja, ela torna-se sujeito. Um traço fundamental dessa verdadeira subjectividade é, sem dúvida, a auto-afecção do sujeito. Ora, a obra, uma vez liberta dos juízos de gosto do receptor e do suposto produtor, faz recair sobre si mesma os factores da sua produtividade activa. Deste modo, a obra torna-se receptáculo de si própria, o que significa também que o seu funcionamento é, para além do mais, o de um diálogo, um

diálogo porventura surdo para nós, mas nem por isso menos dialógico, já que a obra desenvolve nesse tipo de troca a infinidade de sentidos que lhe as- sistem; e o sentido, como Hamann, Schleiermacher, Dilthey ou Cassirer tão bem compreenderam nas suas épocas, é o fruto soberano da dialogicidade.

Mas é importante acrescentar aqui alguma coisa. É que, em boa verda- de, a obra não é sujeito. Será mais rigoroso dizer que ela devém sujeito. Em virtude do seu próprio movimento, do seu funcionamento imparável, a obra está constantemente em trânsito. Este trânsito é um devir obra e, em simul- tâneo, um devir sujeito. E é neste ponto, quando sublinhamos o devir da obra enquanto devir sujeito, que melhor podemos compreender a relação híbrida que ela mantém com o complexo receptor/operador. Porque, se, por um lado, tanto o receptor como o operador se transformam em objecto da obra tornada sujeito, por outro lado, não é menos verdade que receptor e operador também se não deixam reduzir completamente a uma objectivi- dade estreita e total; afinal, operador e receptor conservam sempre alguma coisa da sua qualidade de sujeitos. Vejamos então como se articulam os fac- tores que se jogam neste conglomerado.

Vimos já que o movimento autónomo da obra assenta fundamentalmen- te na articulação interna das suas diferenças mínimas, na mecânica dos seus factores diferenciais internos. É aqui que a obra se revela activa. Sem um jogo de diferenças internas, a obra apresenta-se – como tantas vezes sucede – num estatismo inconsequente que é precisamente aquilo que a filosofia da arte que aqui procuro delimitar exclui. Essa actividade da obra, como também vimos, é autónoma. Ela não precisa do reconhecimento ou da par- ticipação do operador ou do receptor para subsistir. Porém, exactamente porque a obra é activa e autónoma, ela não permanece idêntica a si mesma. A obra devém. Mas devém o quê? Ora, como já tive oportunidade de defender em circunstâncias diferentes, relativamente ao devir cristão de Kierkegaard, não há um devir algo que não seja precedido daquilo a que teremos de cha- mar um puro devir. Assim, em primeiro lugar, a obra devém, a obra é puro devir, ou seja, é um devir-obra. Só depois ela devém alguma coisa. (Como suponho ser evidente, este antes e depois é estritamente conceptual, é uma função lógica independente de qualquer temporalidade real.) E o que é esse devir alguma coisa, no caso da obra? É, em rigor, o devir sujeito. Mas, perguntar-se-á como acontece este devir sujeito. O devir sujeito da obra

só acontece na exacta medida em que a obra se confronta com sujeitos, i.e. connosco; connosco enquanto receptores e connosco enquanto operadores. E acontece que, neste confrontar-se com sujeitos, a obra, porque é activa e porque está em desidentificação constante consigo mesma – em diferença permanente face a si mesma –, age sobre os ditos sujeitos, tornando-se assim inevitavelmente sujeito desse agir e transformando os sujeitos com os quais se confronta em objectos desse agir. Esta é a lógica do devir sujeito da obra.

Porém, como já deixei sugerido atrás, esta transformação dos sujeitos – o operador e o receptor da obra – em objectos não é absoluta. Por outras pala- vras, ela não deve ser entendida num sentido reducionista. A obra age sobre nós; podemos mesmo dizer que ela nos manipula, que ela nos move, que ela nos transforma, que ela nos configura de uma certa maneira, inclusivamente que ela nos determina. Mas nenhuma destas formas do agir da obra sobre nós nos retira rigorosamente nada da nossa liberdade de agir, de pensar, de sentir. Sobretudo a obra não nos retira a capacidade de agirmos com ela. Este «com» é crucial. Não agimos sobre a obra, também não agimos pela obra, secundarizando-a como mero meio. Não agimos também à revelia das obras. Agimos em aliança com a obra ou com as obras. E o facto de agirmos como sujeitos depois de sabermos que a obra, erigindo-se em sujeito, nos transformou momentaneamente em objectos faz com que o nosso relacio- namento estético com a obra seja marcado pela auto-representação de um indelével cunho de outridade e de diálogo que faz com que a relação estética se torne em simultâneo uma relação profundamente ética. A obra é um ou- tro com o qual mantemos relações de troca de sentido, de troca de inúmeros, infindáveis sentidos. Relações que são também de cooperação ou de conflito, mas que nunca deixam de ser relações de obrigação recíproca, isto é relações éticas e políticas, já que vivemos com as obras numa verdadeira polis estética e inevitavelmente ética.

Não abordarei, basicamente por falta de espaço, a questão da subjectivi- dade da obra no sentido amplo do termo, ou seja, a obra como conjunto das produções de um dado artista. Mas, a verdade é que no fundamental esta outra questão obedece aos mesmos princípios que norteiam o que vos disse sobre a subjectividade de cada obra.

No documento Arte e Filosofia (páginas 183-188)