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KANT E A IDEIA DE UMA POÉTICA DA RAZÃO

No documento Arte e Filosofia (páginas 41-97)

Leonel Ribeiro dos Santos

Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa (CFUL)

Resumo

Por «Poética da Razão» entendo o estudo do peculiar modo como os filósofos lidam com os seus problemas, ou aquilo a que o jovem Nietzsche chamou «a teleologia do génio filosófico», o princípio formador interno que o gere e modela. Assim, a ideia que preside a este ensaio é que os escritos de Kant, lidos a um certo nível (e este nível é o mais possível rente ao dizer e à linguagem mesma do filósofo) revelam uma bem estruturada economia na sua confeção: leis específicas de construção, formas orgâ- nicas estruturadas e entre si solidárias de expressão, um estilo peculiar de filosofar, tudo o que indica ou indicia um modo típico de pensar. E esta economia poética interna da obra e do pensar kantianos só se revela com a dádiva do conteúdo que ela mesma envolve e tece: o próprio pensamento kantiano. Não se acede ao conteúdo se não se passa pela forma que o transmite e expõe. Mas tão pouco se apreende a forma sem o conteúdo. Não se deve, por conseguinte, separar o conteúdo da forma, nem a forma do conteúdo, nem a letra do espírito ou o espírito da letra, ou jogar qualquer deles contra o outro, como tantas vezes acontece na prática exegética ou herme- nêutica. Em certo sentido, a letra é já espírito, a forma é já conteúdo, e no próprio modo de dizer vai já o que é dito. No caso de Kant, isso é flagrante em vários casos: na linguagem jurídico-política, na linguagem orgânica, na linguagem cosmológica. A Razão e a sua obra – a Filosofia – dizem-se no modo como se fazem e se expõem. A essa Poética – que dá conta da estrutura e das estratégias de construção e confeção da obra – associa-se a Retórica, ou seja, o conjunto dos processos que garantem a comunicabilidade da obra, que efetivam o seu conatus de inteligibilidade comunicá- vel e reconhecível por outros a quem se dirige. Poética e Retórica são intimamente solidárias, e elas entretecem-se do elemento comum da linguagem.

Palavras‑chave

«O Poema do Entendimento é a Filosofia – O supremo impulso [Schwung] que o Entendimento se dá sobre si mesmo – Unidade do Entendimento e da Imaginação.»

Novalis, Schriften (Darmstadt: WBG, 1981), Bd. II: Das philosophische Werk I:531. «O filósofo é um auto-revelar-se [Sich‑offenbaren] da oficina [Werkstätte] da Natureza – filósofo e artista falam dos segredos de ofício [Handwerksgeheimnissen] da Natureza.»

Nietzsche, Nachgelassene Fragmente <1872-73> Sämtliche Werke, KSA, 07: 421.

I

Devo começar por esclarecer o tópico que vai no título deste ensaio. Poética

da Razão: que entendo eu por isso? E que pertinência pode um tal tema ter

com respeito à Filosofia e, mais precisamente, à filosofia de Kant?

Digo «poética da razão», «poética do espírito» ou «poética da mente». O que pretendo designar por meio dessas expressões é algo que é anterior ao poético e à poesia. Esse algo anterior é o que os faz ser tais. Recuando à arqueologia das palavras poietiké, poietikós, poíesis, o que se põe em evidência é o que é dito pelo verbo grego poieîn: o fazer mesmo, o processo ou conjunto de processos mediante os quais uma obra humana – (ou até uma obra da Natureza, pois que, como adiante se verá, também as obras ou produções desta, mormente os seres orgânicos, só são compreensíveis se se pressupu- ser na sua geração uma peculiar «poética», «arte» ou «técnica»!)1 – é feita,

gerada ou criada e elaborada. E isso vale a respeito de um poema ou de um

1 Como tenho tentado mostrar, em vários dos meus ensaios, e adiante o explicitarei mais

demoradamente, segundo o entendimento de Kant, são homólogas a poética do espírito ou ‘técnica do Juízo’– Technik der Urteilskraft – enquanto faculdade do sujeito que reflete sobre o seu modo de pensar ou apreciar – reflektirende Urteilskraft (isto é, o modo de produção ou de jogo simultaneamente espontâneo e finalizado ou pertinente – zweckmässig – das faculdades do espírito) e a poética ou ‘técnica da Natureza’ – Technik der Natur –, sendo que, na verdade, esta última é posta por aquela. Este tópico, especialmente e pela primeira vez desenvolvi- do pelo filósofo na Primeira Introdução à Crítica do Juízo, preside à complexa arquitetura de analogias reversivas entre Arte e Natureza (a Arte considerada como se fosse Natureza / a Natureza considerada como se fosse Arte) que estrutura e rege toda a Crítica do Juízo. Vejam-se, a esse respeito, os meus ensaios: ««Técnica da Natureza». Reflexões em torno de um tópico kantiano», in: Leonel Ribeiro dos Santos, Ideia de uma Heurística Transcendental. Ensaios de Meta‑Epistemologia Kantiana, Lisboa: A Esfera do Caos, 2012, pp. 91-129; e «Kant e a ideia de uma poética da Natureza», Philosophica 29 (abril de 2007), pp. 19-34.

romance, de uma ária ou de uma sinfonia, de uma escultura ou de uma pin- tura, de uma catedral, de um palácio ou de uma simples cabana de habitação, e também de uma filosofia, a qual se faz, é certo, de um material peculiar que são os conceitos, os quais, porém, só subsistem num suporte e num elemento linguísticos, como palavras, e como palavras entretecidas umas nas outras: como textos.2 É uma banal evidência – todavia pouco advertida

2 Esquece-se a matriz têxtil que inspira toda a literatura, também a filosófica. Descartes, po-

rém, por muito racionalista que fosse, não tinha pejo em reconhecer que aprendera as regras do seu método para a direção do espírito (ou do engenho) observando algumas muito comuns e banais atividades humanas, entre as quais o trabalho das tecedeiras e das bordadeiras de tapetes (Regulae ad directionem ingenii, X, in: Oeuvres de Descartes, ed. Adam-Tannery, reimpr. Paris: Vrin, 1996, vol. X, p. 404). O simples levantamento e o reconhecimento das homologias estabelecidas ao longo da História da Filosofia entre a poética da Filosofia e a das Artes (seja das «belas» ou simplesmente das «úteis»), em determinados momentos e contextos históri- cos, seria tema de fecundas surpresas e de vasto ensino. Assim, a homologia entre a poética formal da arquitetura gótica e a da filosofia escolástica medieval foi posta em realce por Erwin Panofsky (Gothic Architecture and Scholasticism, Latrobe, Pennsylvania: The Archabbey Press, 1951), e outros sublinharam as homologias entre o Barroco e as filosofias da época (Gilles Deleuze, Le pli. Leibniz et le Baroque, Paris: Minuit, 1988; Carlos Antônio Leite Brandão, A for‑ mação do homem moderno vista através da arquitetura, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006), não só pelos temas como também pela forma e estrutura. De resto, a metafórica arquitetónica é uma das mais frequentes entre os filósofos (Aristóteles, Melanchthon, Descartes, Leibniz, Lambert, Kant… e também Heidegger, na sua célebre conferência de Darmstadt <1951> – «Construir, Habitar, Pensar» (Bauen, Wohnen, Denken), seja para exprimirem o seu propósito fundacional e sistemático, ou o modo de entenderem a génese e o processo de edificação de um sistema filosófico, ou a conveniente maneira de o homem habitar o mundo e se dispor na relação existencial ao Ser. Pelo que respeita a Kant, veja-se, no meu livro Metáforas da Razão, todo o cap. 3º da Segunda Parte., intitulado «Da arquitectónica da razão à razão arquitectóni- ca» (na ed. da FCG, Lisboa, 1994, pp. 349-402). Mas ao longo da História da Filosofia outras surpreendentes homologias se poderiam reconhecer entre a Filosofia e outras artes, que, num determinado momento histórico, se tornaram hegemónicas e dominaram o campo estético. Assim, por exemplo, a Pintura, que pelo menos desde Horácio (Ars poetica, 361) servia de ana‑ logon da Poesia (ut pictura poesis) e, por extensão, também de outras artes ou ciências (Retórica, História), a partir do Renascimento e por toda a Modernidade regerá subterraneamente as filosofias da representação ou da «imagem do mundo» e as epistemologias, seja as da subje- tividade perspetivística ou as da objetividade mensurável e da geometrização e matematiza- ção da realidade, até à Aufklärung (v.: Erwin Panofsky, Die Perspektive als ‘symbolische Form’, <Vorträge der Bibliothek Warburg, 1924>, Leipzig: Teubner, 1927; Rensselaer W. Lee, Ut Pictura Poiesis. Humanisme et Théorie de la Peinture: XVe‑XVIIIe siècles, Paris: Macula, 1991; Leonel

Ribeiro dos Santos, Retórica da evidência ou Descartes segundo a ordem das imagens, Lisboa: CFUL, 2013, sobretudo o capítulo 3: «As metamorfoses da luz, ou a retórica da evidência na filosofia cartesiana», pp. 87 ss); e ainda depois, as gnoseologias, epistemologias e «filosofias

ou muito esquecida pelos praticantes da Filosofia – aquela que o jovem Nietzsche deixou exarada num dos seus fragmentos: que «também o filóso- fo está preso nas malhas da linguagem».3 Mas, antes de Nietzsche, Kant já

havia sustentado, num ensaio de 1763, contra os que pretendiam modelar a Filosofia pela Matemática ou Geometria, que, ao contrário destas disciplinas (que dispõem de outros meios e sinais e além deles ainda a possibilidade de construírem os seus conceitos e de representá-los diretamente in concreto numa intuição), a Filosofia não tem outros meios para designar os seus pen- samentos e ideias ou conceitos abstratos a não ser mediante meras palavras e «nunca algo mais do que palavras» (niemals etwas anders als Worte).4 Nisso,

a Filosofia está na mesmíssima condição em que se encontram todas as artes da palavra (a Poesia, o Romance, a Literatura): é regida pelas possibilidades e constrangimentos da Gramática e, se quer alcançar a sua plena performance, da mente» de matriz «especular», sejam elas empiristas, realistas, positivistas, idealistas, fe- nomenológicas ou analíticas (v.: Richard Rorty, Philosophy and the Mirror of Nature, Princeton: Princeton University Press, 1979). No Classicismo e no primeiro Idealismo e Romantismo germânicos, é a Poesia, reconhecida como a arte por excelência, que vai servir de paradig- ma à própria Filosofia, como adiante veremos. Será, depois, no pleno Romantismo (em Schopenhauer e sobretudo e ainda em Nietzsche), a Música, por Kant já descrita como uma universal «linguagem dos sentimentos» ou «linguagem dos afetos», que se vê promovida se- manticamente, pois, na medida em que exprime as forças pulsionais, caóticas e dissonantes da Vontade (ou do Ser), é capaz de revelar o que há de essencial aos filósofos que sabem «encostar o ouvido ao ventrículo da vontade do mundo» ou que «estão em conexão com as coisas por meio de inconscientes relações musicais» e podem assim ouvir, por exemplo, em O anel dos Nibelungos de Wagner todo «um poderoso sistema de pensamentos sem a forma conceitual do pensamento» (Friedrich Nietzsche, Nachgelassene Fragmente, Sommer 1875, Sämtliche Werke, KSA, 08, p. 203; veja-se, sobre este ponto, o meu ensaio «Retorno ao mito: Nietzsche, a Música e a Tragédia», Philosophica, 1 (1993):89-111; retomado, sob o título «O retorno ao mito, ou a herança kantiana de Nietzsche», no meu livro A razão sensível. Estudos kantianos (Lisboa: Colibri, 1994, pp. 117-140). Por vezes, uma mesma filosofia serve-se de vários campos analógicos tomados de algumas das artes ou das ciências para se explicitar nos seus diferentes aspetos, deslizando insensivelmente de uns para os outros, traduzindo-os uns nos outros, e até combinando-os (por ex., em Descartes, o regime pictural e o arquitetónico; em Kant, o arquitetónico e o biológico, o da Química, o da Cosmologia e o jurídico-político).

3 Friedrich Nietzsche, Nachgelassene Fragmente <1782-83>, Sämtliche Werke, Kritische

Studienausgabe in 15 Bänden [doravante: KSA], München/Berlin/New York: DTV/Walter de Gruyter, 1980, vol. 7, p. 463.

4 Immanuel Kant, Über die Deutlichkeit <doravante: UD>, AA 02:278. As obras e escritos de

Kant são citados, com abreviação do título, pela Akademie-Ausgabe dos Kant’s gesammelte Schriften, Berlin: Walter de Gruyter, 1900- [doravante: AA, seguido do volume e página].

mesmo a conceptual, não lhe basta invocar ou seguir as regras da Lógica ou de um estabelecido e assumido protocolo de procedimentos ou método, mas tem de valer-se das potencialidades da Poética e da Retórica, antigas disciplinas da palavra, que ensinam a elaborar o material linguístico em vista de um objetivo ou de uma ideia e a torná-lo assim inteligível, significativo, expressivo, comunicável. Dos regimentos da Lógica e dos procedimentos de um qualquer método que o certificam da observância dos convencionados protocolos de «cientificidade» da sua disciplina, pode um filósofo estar consciente. Mais dificilmente, porém, o estará completamente a respeito dos procedimentos muito mais complexos e subtis que regem aquilo a que chamo a sua poética e a sua retórica, ou só o chega a estar na medida em que reflete sobre a sua obra depois de esta estar construída, o que raramente e a muito poucos acontece.

Quando, em outubro de 2013, me foi dirigido convite para proferir uma conferência na Universidade onde, desde o início dos anos 70 do passado século, fiz a minha formação e depois lecionei durante três décadas e meia, sugeri como tema o que vai no título deste ensaio, porque ele me parecia compendiar a ideia que, retrospetivamente, poderia dar coerência ao con- junto dos meus principais estudos, não só sobre a filosofia kantiana, como também sobre a de alguns outros pensadores modernos. Vi nisso uma opor- tunidade para dar, na minha universidade, uma espécie de «última lição», simultaneamente de balanço e de testemunho de um pessoal percurso aca- démico e intelectual.5

5 Este ensaio é uma versão reformulada e abreviada dessa conferência, proferida a 10 de fe-

vereiro de 2014, na sessão de homenagem promovida pelos meus prezadíssimos colegas do Departamento de Filosofia e do Centro de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, por antigos alunos e por amigos. Quando recebi o convite para fazer a conferência, estando aposentado havia quase dois anos e, na época, como bolseiro da CAPES, Professor Visitante numa Universidade brasileira (UFSC), eu ignorava de todo o enquadramento em que aquela se inscrevia. Entretanto, os Organizadores da homenagem e do volume de ensaios (Poética da Razão. Homenagem a Leonel Ribeiro dos Santos, Lisboa: CFUL, 2013) que me veio a ser oferecido no próprio dia da conferência – Adriana Veríssimo Serrão, Carla Meneses Simões, Elisabete M. de Sousa, Filipa Afonso, Maria Luísa Ribeiro Ferreira, Pedro Calafate Simões, Ubirajara Rancan de Azevedo Marques – houveram por bem gravar no título do volume de ensaios precisamente o tópico que eu sugerira para título da conferência, talvez porque também eles entendessem que ele exprimia a ideia que dava unidade aos meus traba- lhos em torno da filosofia kantiana. Possam as referidas circunstâncias de origem e de destino e função deste texto desculpar um pouco o seu carácter também de testemunho pessoal que

Para a opção por esse tópico tive na altura um pretexto e um estímulo vindos da obra de George Steiner – The Poetry of Thought,6 publicada no ano

anterior, que alguns consideram ser a obra de toda uma vida ou mesmo o

magnum opus do autor. Quando deparei com o seu título, fui tomado de um

vivo interesse e também de curiosidade. Adquiri a obra e li-a sofregamente. Em parte, ela foi uma deceção. Não porque não seja rica de conteúdo e cheia de inspiradoras sugestões. Bem pelo contrário. Mas o título e o nome do autor tinham-me levado a esperar mais. De resto, o próprio Steiner reco- nhece, a abrir o último capítulo do seu ensaio, que este «apenas arranhou a superfície» (has only scratched the surface) de uma complexa realidade como é a da relação da Filosofia com a sua linguagem, na qual está implicada a questão ainda mais vasta da relação da Filosofia com a Literatura.7 Por outro

lado, porém, com a leveza quase volátil de uma escrita ensaística, sugestiva e alusiva, mais do que analítica ou argumentativa, que, na maior parte dos casos, olimpicamente se dispensa de fazer qualquer citação explícita ou re- ferência exata ao longo das 223 páginas da obra (como se pressupusesse do seu leitor o próprio, direto e íntimo conhecimento de todos os autores e res- petivas obras que ele mobiliza e faz agilmente dançar na sua escrita), Steiner expõe a sua tese de que «o pensamento tem uma poética e até uma música próprias»,8 e fá-lo de um modo tão natural como se passasse ou desdobrasse

sucessivamente, perante o seu leitor, as muitas folhas de um variadíssimo catálogo de sugestivas amostras, que constituem outras tantas inequívocas provas materiais daquela tese.

Da leitura da obra, vi-me gratamente confirmado em algumas evidências que eu próprio tentara expor nos meus trabalhos, durante mais de três dé- cadas, documentando-as eu, porém, laboriosamente, com pertinente apoio textual, explicitando-as com minuciosas análises e contrastando-as herme- nêuticamente, seja a respeito de Kant ou mesmo de outros filósofos moder- nos (como Descartes ou Hobbes). E eu fico-lhe imensamente grato por isso, teve essa conferência e que não consegui eliminar de todo nesta versão que dele agora se propõe para publicação. Aproveito para agradecer ao Professor Ubirajara Rancan de Azevedo Marques e ao Doutor Fernando M. F. Silva o gentil convite e a amável e paciente insistência para que eu participasse com este ensaio no volume Arte e Filosofia, por eles organizado.

6 George Steiner, The Poetry of Thought: From Hellenism to Celan, New York: New Directions, 2012. 7 Ibidem, p. 213.

porque sempre é melhor estar acompanhado e, neste caso, até realmente muito bem acompanhado, do que sentir-se a persistir sozinho (ou quase) numa ideia pela qual ninguém se interessa, por mais pertinente e verdadeira que se a considere ou que ela até realmente o seja.

Para além do interesse na ideia ou tese geral do autor exposta na obra, movia-me a curiosidade de ver se havia nela algum especial capítulo ou de- senvolvimento sobre Kant, que viesse, ou não, ao encontro das minhas pró- prias perspetivas hermenêuticas sobre a obra deste filósofo. De facto, há nela capítulos e desenvolvimentos ou referências e apreciações mais ou menos extensos sobre uma vastíssima galeria de filósofos e pensadores, de todas as épocas e de maior ou menor dimensão e das mais variadas escolas ou ten- dências e sobre um não menor número de poetas e romancistas – (toda uma generosa biblioteca em movimento da mais seleta cultura literária do mundo ocidental, que se reconhece por algum modo inspirada nas fontes helénicas, desde Homero e Hesíodo ao limiar da atual cibercultura global) –, e alguns nomes há que são visitas assíduas nas páginas da obra – Platão, Nietzsche, Wittgenstein, Heidegger –, como se de alguma maneira a inspirassem, a tu- telassem, a balizassem. Mas Kant não merece nela nenhum capítulo, nem especial desenvolvimento ou referência, ou sequer relevante menção das suas obras e ideias. Se o autor da Crítica da Razão Pura se faz aí notar é mais precisamente pela relativa ausência. O seu nome aparece, é certo, cerca de uma dúzia de vezes em toda a obra, mas de forma avulsa, arrolado quase sempre no meio de outros e sem própria e especial relevância. Teria Steiner tido medo de pôr à prova a sua tese de uma poética ou «poesia do pensa- mento» naquele filósofo que por muitos tem sido considerado como o mais inverosímil dos exemplos – se não mesmo o mais expressivo contraexemplo – de uma escrita filosófica que tivesse tido a preocupação da linguagem, da retórica, do estilo e do modo de exposição, dada a fama muito generalizada que corre, desde os seus dias até hoje, a respeito do seu suposto desinteresse pela linguagem, do seu mau estilo, da sua escrita sem qualidade literária?

Por algumas sumárias passagens, que ocorrem aqui e ali, parece que efe- tivamente Steiner não superou esse tradicional preconceito. Por exemplo, quando insinua que «Kant, tal como Espinosa, e ao contrário de Nietzsche, se esforça por manter rigorosamente à distância o canto das sereias da

poética e o potencial de metáfora subversiva que ele contém»;9 ou quando

alude ao «código sistemático e de escrita normativa de um Kant ou de um Hegel»;10 ou ainda quando aponta «as severidades e a insistência do prosaico

de um Kant ou de um Schopenhauer».11 No rol das suas incontáveis leituras,

mesmo de autores que cita ou refere de passagem, Steiner não suspeitou que pudessem existir uns apontamentos do romântico Friedrich Schlegel sobre o «modo de escrever» de Kant, chamando a atenção para o «estilo», a «forma», o «tom» e o «colorido» da filosofia kantiana,12 chegando mesmo a

declarar, num seu conhecido ensaio, que «Kant, mesmo só considerado lite- rariamente, deve ser contado entre os escritores clássicos da nação alemã».13

Também não lhe terá caído sob os olhos uma carta de Walter Benjamin a Gerhard Scholem, onde aquele, depois de ter declarado a sua convicção de

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