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4 A INTERSECCIONALIDADE NA PRODUÇÃO CIENTÍFICA

4.1 Críticas ao uso da interseccionalidade

É abordado por Hirata (2014) que existem críticas à perspectiva da interseccionalidade. Uma das críticas foi feita por Danièle Kergoat, pela primeira vez em um Congresso da Associação Francesa de Sociologia, em 2006, ela critica a noção “geométrica” de intersecção. Segundo Kergoat (2010), pensar em termos de cartografia nos leva a naturalizar as categorias analíticas. Dito de outra forma, “a multiplicidade de categorias mascara as relações sociais. [...] As posições não são fixas; por estarem inseridas em relações dinâmicas, estão em perpétua evolução e renegociação” (KERGOAT, 2010, p. 98).

Essa crítica é aprofundada na introdução do livro de Kergoat, Se battre, disent- elles (HIRATA, 2014), pelos seguintes pontos:

1) a multiplicidade de pontos de entrada (casta, religião, região, etnia, nação etc., e não apenas raça, gênero, classe) leva a um perigo de fragmentação das práticas sociais e à dissolução da violência das relações sociais, com o risco de contribuir à sua reprodução; 2) não é certo que todos esses pontos remetem a relações sociais e talvez não seja o caso de colocá-los todos num mesmo plano; 3) os teóricos da interseccionalidade continuam a raciocinar

em termos de categorias e não de relações sociais, privilegiando uma ou outra categoria, como por exemplo a nação, a classe, a religião, o sexo, a casta etc., sem historicizá-las e por vezes não levando em conta as dimensões materiais da dominação (KERGOAT, 2010, pp. 21-22).

Nesse sentido, quando a autora faz essa crítica, um dos principais pontos é que a interseccionalidade mascara as relações sociais, ela diz o que entende por relações sociais, e propõe a noção de consubstancialidade. Não basta afirmar que compreendemos a sociedade em termos de relações sociais é preciso antes definir tais relações e suas propriedades.

Uma relação social para Kergoat (2010) é uma relação antagônica entre dois grupos sociais, instaurada em torno de uma disputa. É uma relação de produção material e ideal. As relações sociais formam um nó que não pode ser desatado no nível das práticas sociais. “As relações sociais são coextensivas: ao se desenvolverem, as relações sociais de classe, gênero e “raça” se reproduzem e se coproduzem mutuamente” (Idem, 2010, p. 94).

Outra crítica é feita por Elsa Dorlin e apresentada por Kergoat (2010, p.98)

[…] a definição [de Crenshaw] das relações sociais como setores de intervenção implica que as mulheres […] que enfrentam mais do que uma discriminação se acham em setores isolados. […] O conceito de interseccionalidade e, de maneira geral, a ideia de intersecção, dificulta pensar uma relação de dominação móvel e historicamente determinada […]. Em outros termos, a interseccionalidade é um instrumento de análise que coloca as relações em posições fixas, que divide as mobilizações em setores, exatamente da mesma maneira pela qual o discurso dominante naturaliza e enquadra os sujeitos em identidades previamente definidas.

As questões criticadas pelas autoras são importantes para serem refletidas e para estarmos atentas/os quanto ao uso da interseccionalidade. Dependendo do modo como essa perspectiva seja utilizada, diferente da crítica que afirma que essa coloca as relações em posições fixas, que podem naturalizar os sujeitos em identidades definidas, a interseccionalidade possibilita visibilizar essas questões. E permite considerarmos que os marcadores sociais a exemplo de classe, raça, gênero se constituem mutuamente, em determinados contextos um desses marcadores pode se sobressair, mas não significa que isso não possa ser mudado. Outro ponto, como Piscitelli (2008) ressalta e já abordamos neste estudo, é que diferentes perspectivas utilizam os mesmos termos para referir-se às intersecções. Mas essas mudam de acordo com as concepções de diferença, poder e agência utilizadas.

Outra crítica da Kergoat é que o uso das categorias sem historicizá-las pode contribuir a permanência das dimensões materiais da dominação. As autoras que vêm

trabalhando com a perspectiva da interseccionalidade chamam atenção para a importância de historicizar os marcadores sociais para não cair na armadilha de naturalizar a opressão e as desigualdades, ou seja, a interseccionalidade tem abertura para isto ser realizado. Como toda perspectiva, é preciso ficarmos atentos/as no uso que está sendo feito.

A noção de interseccionalidade abre um relevante espaço para análise de contextos específicos de construção de diferenciações e de desigualdades sociais, ela pode também proporcionar uma contrapartida em termos de um potencial para analisar e por em relevo as ferramentas para desconstruir e transformar possíveis desigualdades. O que pode evitar o risco de uma reificação da produção da diferença, e a frisar a potencialidade que a perspectiva pode prover em termos de práticas sociais no campo de distintas formas de agência interseccional (HENNING, 2015). Desse modo, Henning (2015, p. 117) ressalta a importância de “atentar para os modos os quais os sujeitos potencialmente se utilizam de suas próprias marcas identitárias interseccionais (assim como na relação com os traços identitários interseccionais de outras pessoas) de modo a lidar com a criação, o questionamento e a desconstrução social de desigualdades”.

A recusa da essencialização, a inter-relação entre opressão e privilégio e o contexto são aspectos fundamentais e precisam ser pensados nos estudos que buscam subsídios na teoria da interseccionalidade. É necessário estarmos atentos/as e teorizar privilégios e opressões, não como estatutos fixos, mas sim como fluídos e dinâmicos, permeáveis à mudança nas opressões, nos privilégios e nos contextos (NOGUEIRA, 2017).

Não havendo conhecimento difundido acerca das experiências de jovens quilombolas e jovens pobres da periferia, grupos que são excluídos e marginalizados, eles são imperceptíveis e ficam misturados frequentemente nas percepções que as pessoas têm através do que alguns/mas falam, do que a mídia, muitas vezes, de forma distorcida divulga. Assim, no presente estudo, buscamos conhecer quais os efeitos produzidos pelos marcadores sociais: gênero, geração, classe, raça/etnia, sexualidade e território interseccionados nas vivências juvenis rurais/quilombolas e urbanas da periferia? Quais as formas que os/as jovens quilombolas e os/as jovens da periferia têm encontrado para resistirem às situações de desigualdades e opressões que vivenciam?