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8 JOVENS DE DIFERENTES TERRITÓRIOS E AS EXPERIÊNCIAS

8.2 Jovens quilombolas e sexualidade

A questão da fofoca, presente na área urbana, referente às vivências sexuais dos/as jovens, foi algo também abordado no contexto quilombola, quando conversamos com algumas jovens, elas relataram que as pessoas da comunidade são muito fofoqueiras e que as agentes de saúde também, o que faz com que as mesmas não frequentem a Unidade de Saúde para tratar nada referente à vida sexual. Em conversa com uma agente de saúde, questionamos se as jovens frequentavam a Unidade, se iam buscar anticoncepcional, preservativo e ela nos relatou:

Às vezes, as mulheres levam para alguém, como duas meninas que pediram para outra pegar anticoncepcional aqui na USF porque estão com medo de engravidar, mas ninguém ainda sabe que elas “já vivem nessa vida”, aí a menina veio, parece que uma prima, e falou com a técnica, a enfermeira mandou a gente chamar elas, eu avisei que a enfermeira quer conversar com elas. E as outras que todo mundo sabe que são doida, nessa vida louca, elas vem. (Diário de campo, 03/12/2016).

Foi possível perceber que dos homens jovens que experienciam a vida sexual nada é falado, mas das jovens é dito de forma pejorativa, “são doida”, “vivem na vida louca”. A falta de uma melhor formação para os/as profissionais que atuam nas Unidades é um fator que precisa ser melhor pensando. Muitos/as ocupam o cargo, mas não têm uma formação necessária para atuar em relação a assuntos como sexualidade, drogas e outros. Com isso não queremos culpabilizar os/as profissionais, mas é importante refletirmos sobre a responsabilização desses e como as próprias políticas são pensadas, que não dão assistência aos profissionais no sentido de terem subsídios para saber lidar com temas complexos como a sexualidade.

Na oficina com os/as jovens quilombolas, eles/as também relataram algumas situações de preconceito e discriminação nas comunidades e o que pensavam sobre:

Jani: Eu não sei se é verdade, mas [fez referência a um jovem que disseram

que ele é homossexual] chegou a dizer que o pai dele quase matava ele quando soube que ele era gay, porque não queria que ele fosse gay, porque eu acho assim, você criar seu filho de um jeito e quando ele crescer ele virar outro, eu mesmo, eu acho que eu não aceitava não, eu dava um cacete nele.

Akil: Eu acho que se ele apanhasse, ele ia ficar pior. E assim também, às

vezes, o pai e a mãe não aceitam, e o filho de tanto sofrer acaba se matando, eu já vi isso também.

Jani: Eu tenho minha opinião, eu não aceitaria não.

Amina: O pai dele falou que não aceita ele não, aí ele saiu de casa.

Dalila: E aí ele virou a cabeça ainda mais, começou a beber muito, acho que

até fuma maconha, eu não sei não... quando é um filho por mais que você não queira, tem que aceitar, porque, sei não, e a mãe tem que amar o filho do jeito que ele é, porque ela botou ele no mundo, não sabia pra que ele ia dá não.

Jani: Eu acho assim, que se ela teve mulher, tem que ser mulher, se ela teve

um homem, tem que ser um homem.

(3ª oficina realizada na comunidade quilombola). Podemos observar acima o quão violentas são as atitudes e o que alguns e algumas jovens pensam sobre a homossexualidade. Existe uma íntima relação entre homofobia e relações de gênero, que pode comportar consequências drásticas a qualquer pessoa que ouse descumprir preceitos socialmente impostos sobre o que significa ser homem e ser mulher. Podemos observar nos discursos acima que os/as jovens relataram várias situações de discriminação e violências vivenciadas devido à homofobia existente no território quilombola. A noção de homofobia pode ser estendida como situações de preconceito, discriminação e violência contra pessoas (homossexuais ou não), cujas performances e/ou expressões de gênero (gostos, estilos, comportamentos, entre outros) não se enquadram nos modelos hegemônicos heteronormativos (JUNQUEIRA, 2009).

No discurso acima, podemos observar também que Jani informa que um jovem da comunidade foi agredido pelo pai quando esse soube que o filho é gay. Na pesquisa realizada por Perucchi (2013, p. 127) com jovens lésbicas, foi visto que quando ocorre a revelação da orientação sexual no seio familiar, a família não atua como protetora e promotora de saúde das jovens, age institucionalmente como dispositivo de reiteração da heteronorma através de formas de violência pautadas na inferiorização e desqualificação. “O espaço familiar que, no entanto, deveria ser acolhedor, inserindo as jovens mulheres na dinâmica da sociedade, ofertando-lhes segurança, torna-se um ambiente hostil que busca reenquadrar as jovens [...] a parâmetros binários, moralizadores e naturalizados da sexualidade”. Desse modo, os/as jovens no âmbito familiar passam a ser tratados/as de modo distintos e têm suas histórias de vida marcadas por episódios violentos.

Podemos observar ainda, que o jovem agredido saiu de casa e, segundo o relato das jovens, está bebendo muito e usando drogas ilícitas. Perucchi (2013), em sua pesquisa, também observou que situações de homofobia produzem quadros de tristeza, angústia, depressão, problemas relacionados ao uso abusivo de drogas, principalmente álcool. Pois, como vimos nesse estudo, o uso de álcool, muitas vezes, é o meio encontrado de lidar com o sofrimento. Mas, não são só as famílias que não veem com “bons olhos” as práticas sexuais que não seguem a heteronorma, os/as amigos/as também, como podemos ver a seguir:

Jani: Aos olhos de Deus também isso não é certo, porque isso já é outra

coisa partindo pra religião já, mas eu já tenho outro pensamento, porque Deus criou o homem e a mulher, então tem que ser homem e mulher e não tá mulher com mulher e homem com homem.

Jamila: Como ela falou, envolve muita religião, mas assim, existe o livre

arbítrio pra você escolher o que você quiser ser, e tem gente que é hétero que é infeliz e tem gente que é homo e é feliz, e, tipo, as pessoas ficam colocando esse padrão que é só homem e mulher. Mas, pra mim é tudo igual. Se for um filho meu, aceito na boa.

Amina: Tá falando agora.

Jamila: Eu aceito, porque, tipo, o pecado não é meu, é dele.

Dalila: Falar, a gente fala, mas na prática, é olhe... [fez sinal de não com a

mão].

(3ª oficina realizada na comunidade quilombola). Podemos ver que as jovens fazem uso do discurso religioso que sempre questionou as práticas homossexuais como sendo pecado. Inclusive, umas das jovens diz que se fosse um filho seu aceitaria porque o pecado seria dele, por mais que apresente o discurso da aceitação, do livre arbítrio, mas remete à homossexualidade a algo errado. Na pesquisa realizada por Toneli (2006, p. 34) também foi visto que mais de um informante citou a influência religiosa na não aceitação da homossexualidade, como na seguinte afirmação: "Não, não têm direito. Se Deus fez o homem e a mulher é porque o homem é pra mulher e a mulher pro homem. Não tem essa de você e ela. Só porque inventaram o veado, veado é um animal."

Sobre essa questão do uso do discurso religioso para reproduzir e reforçar o preconceito, Prado e Machado (2008, p.70) ressaltam que:

No âmbito da sexualidade, o preconceito social produziu a invisibilidade de certas identidades sexuadas, garantindo a subalternidade de alguns direitos sociais e, por sua vez, legitimando práticas de inferiorizações sociais, como a homofobia. O preconceito, neste caso, possui um funcionamento que se utiliza, muitas vezes, de atribuições sociais negativas advindas da moral, da religião ou mesmo das ciências, para produzir o que aqui denominamos de hierarquia sexual, a qual é embasada em um conjunto de valores e práticas sociais que constituem a heteronormatividade como um campo normativo e regulador das relações humanas.

Para fazer essa discussão sobre preconceito como produtor de práticas de subalternidade e inferiorizações sociais, os autores mencionados acima fazem uso das ideias de Mouffe (1992) para diferenciar as referidas práticas. As consideradas de subordinação seriam uma relação de opressão ainda não politizada, ligadas à hierarquia, não reconhecida pelos atores em reciprocidade, como uma relação de injustiça e inferiorização social. As práticas de inferiorização estariam ligadas à opressão, no sentido de impedir que as relações subordinadas se transformem em política. E é neste jogo, entre hierarquizações e inferiorizações, que mecanismos importantes como o preconceito social atuam.

Observamos também que as situações de preconceito e discriminação devido à orientação sexual são maiores quando as relações homoafetivas ocorrem entre mulheres. Os

xingamentos e a forma pejorativa como alguns e algumas jovens fizeram referência a casais de lésbicas revelaram que há menor tolerância para essas relações. Isso nos lembra quando as mulheres negras chamaram atenção e fizeram críticas ao feminismo por não contemplar as necessidades de todas as mulheres, mostrando as hierarquias existentes na relação entre mulheres devido à raça e classe social distintas, e aqui vê-se também a orientação sexual. Sobre isso Mayorga et al (2013, p.475) fazem referência ao pensamento de Monique Wittig, feminista que enfatizou em seus estudos que “as lésbicas não podem ser consideradas mulheres, pois se recusam a fazer parte da relação de escravidão que constitui a relação heterossexual e as categorias sexuais”. Isso faz pensarmos mais uma vez o quanto à categoria gênero de modo isolado não desconstrói as desigualdades seja de raça, classe e orientação

sexual.

Algumas jovens quilombolas que estudam em uma escola na área urbana de Garanhuns, relataram que lá tem muitas meninas que são lésbicas. Questionamos se elas se relacionavam com essas meninas, se eram amigas das mesmas. E afirmaram:

Dalila: Não gosto não de me relacionar com essas pessoas, a pessoa vai

conversar com elas e a mulher delas pode vim dar na pessoa.

Jani: É pode surgir uma briga, porque pode ser que a lésbica tenha uma

namorada ciumenta e você não sabe, quando você menos espera é a pancada que você leva... risos gerais... é um ciúme muito grande. E podem pensar também que você é lésbica, se ficar andando todo mundo junto.

(3ª oficina realizada na comunidade quilombola). Toneli (2006) em sua pesquisa com jovens, sobre homossexualidade também investigou a amizade entre grupos heterossexuais e homossexuais e viu que os jovens mais novos buscam se afirmar em grupo, vendo a amizade com gays como uma ameaça à sua masculinidade. Já alguns jovens mais velhos (com mais de 19 anos), afirmam que têm amigos gays. No entanto, o medo do assédio mantém-se presente exigindo uma delimitação de posições para que a relação de amizade possa ser estabelecida, como demonstra o trecho seguinte: “Eu tenho amigos que são assim. Mas antes eu tive uma conversa, disse assim: ‘Quer ser meu amigo, tudo bem, vou tratar igual, mas não vem para cima de mim’” (TONELI, 2006, p. 35). Percebemos que tanto as jovens dos discursos acima quanto os jovens da pesquisa mencionada têm receio do que as outras pessoas possam pensar, e mesmos os jovens que afirmaram ter amigos gays não têm uma relação com eles como têm com outros amigos/as. O que nos diz da visão sobre homossexualidade que esses possuem.