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Usos de álcool entre a juventude quilombola e da periferia urbana

9 O USO ABUSIVO DE ÁLCOOL ENTRE OS/AS JOVENS: UMA DAS FACETAS

9.3 Usos de álcool entre a juventude quilombola e da periferia urbana

Observamos, nesse estudo, o que significa ser quilombola e fazer uso de álcool no território quilombola. Ser quilombola e fazer uso na área urbana da cidade. A mesma coisa com os/as urbanos/as, o que é ser da periferia e fazer uso de álcool na periferia, ou ir para as comunidades e lá realizar uso de bebidas alcoólicas. E vimos que os usos são marcados por situações de desigualdades e resistência.

Percebemos também que quase todos/as jovens participantes da pesquisa tinham experiências a serem narradas sobre o uso abusivo de álcool, seja através da própria vivência ou de pessoas do núcleo familiar. Para uma das jovens quilombola, o uso de álcool dá coragem ao seu pai, mas também potencializa a agressividade. Outra jovem quilombola relatou que sua mãe faz uso de álcool todos os dias, já dorme com uma garrafa ao lado da cama, e não consegue fazer os trabalhos na agricultura e cuidar dos animais que elas criam, se

não tiver bebido. Ainda no quilombo, uma jovem nos falou sobre sua tia, a qual conhecemos no período das observações, e que, mesmo em hemodiálise, bebe quase todos os dias para esquecer os problemas. Percebemos também que, nas comunidades, o uso de álcool é transgeracional, ou seja, as diferentes gerações fazem uso de bebidas alcoólicas com os mais diversos significados.

Os/as jovens da área urbana também relataram várias situações vivenciadas relacionadas ao uso de álcool. Uma jovem nos disse que, devido ao uso abusivo de seu pai, perderam a casa, hoje vivem pagando aluguel, o pai sofreu vários acidentes, em um deles teve que pagar uma indenização à pessoa que foi acidentada, entre outras narrativas. Muitas são as situações envolvendo uso abusivo de álcool nas comunidades e na periferia, e nos chama atenção a carência de serviços nesses contextos que auxiliem os/as jovens e adultos a fazerem um uso controlado. São notórias também as desigualdades e injustiças sociais que colocam as pessoas em situação de pobreza entregues à própria sorte.

Sabemos que o álcool não justifica as situações de agressão contra as mulheres, o abuso sexual de mulheres sobre o efeito de álcool, a violência familiar, pois observamos o quanto o contexto quilombola e a periferia urbana são constituídos por relações desiguais de gênero, classe, raça e geração. Mas observamos também que o uso feito de modo abusivo potencializa essas situações de conflito e requer um olhar atento das políticas de saúde para populações tradicionais e para as áreas periféricas que, muitas vezes, são os territórios desassistidos pelas políticas públicas. Alguns trabalhos têm sido realizados nas comunidades, mas o que vemos é que, muitas vezes, esses funcionam a partir de uma lógica urbana que não contempla as reais necessidades dessa população. Nas periferias, vimos que existem alguns serviços, a exemplo do Centro de Assistência Social- CRAS, Unidade de Saúde – US, mas que não atendem às necessidades de toda a população. São serviços com equipes mínimas de profissionais e de recursos que não dão conta do que as pessoas experienciam nesses territórios.

Vimos que as desigualdades de gênero estão bem presentes em ambos os territórios. Se, no quilombo, há uma limitação no que se refere ao uso de álcool por mulheres nos espaços públicos, isto também se faz presente na periferia. Percebemos que, em ambos os contextos, o uso de álcool tem significados diversos: diversão, para lidar com tristeza, decepções, para mostrar que está bem, e o tipo de bebida faz diferença. Poder estar em uma festa ou em um bar e comprar uma bebida mais cara, dá certo status ao/a jovem. Assim como algumas mulheres quilombolas bebem porque acreditam que, se os homens podem estar no bar bebendo, elas também têm direito. Na área urbana, algumas jovens falaram sobre isso e

afirmaram que a bebida, em alguns momentos, é uma forma de enfrentar o machismo. Os/as jovens também fizeram referências positivas ao uso de álcool, a exemplo do uso como companhia para uma pessoa solitária ou para mostrar que está bem, para ter um status.

Nas comunidades quilombolas, os discursos relacionados à religião foram construídos, em alguns momentos, relacionados ao uso de álcool. Vimos, no quilombo, algumas igrejas evangélicas das quais muitos/as jovens participam, e percebemos que a religião funciona como um interdito para o uso de álcool, regula os comportamentos, e as vivências sexuais. Esse aspecto controlador da religião já foi visto em outros estudos como o realizado por Pinto (2012) com jovens pobres, moradores/as de favela no contexto da religião pentecostal, foi observado que a igreja funciona como um espaço de controle, reprodutora de uma concepção de sociedade, na qual as desigualdades e as possibilidades de transformação social são compreendidas a partir da centralidade no indivíduo e em valores morais.

Ficamos pensando sobre o caráter colonizador da religião que estabelece os comportamentos, as roupas, lugares que os/as jovens podem frequentar, o não uso de álcool, e pune os/as que transgridem as normas. Na periferia urbana, observamos que os/as jovens que se declararam evangélicos foram os que fizeram a relação entre religião e uso de álcool. Não chegamos a investigar de qual igreja esses jovens fazem parte, já que existem diversos tipos de igrejas evangélicas e muitas estão localizadas nas periferias: Assembléia de Deus, Adventista, Congregação Cristã no Brasil, Batista, citando só algumas. Mas consideramos que esse é um aspecto importante a ser observado nos territórios.

Ao refletirmos sobre os discursos dos/as jovens sobre os usos de álcool nos diferentes momentos da pesquisa, percebemos que as experiências relacionadas ao uso de bebidas alcoólicas é o que mais aproxima os/as jovens quilombolas e os/as jovens da periferia. Através do uso de álcool, percebemos o quanto as desigualdades sociais produzem efeitos que incidem sobre a vida dos/as jovens pobres para eliminá-los/as socialmente. Esses/as jovens são estigmatizados, discriminados, excluídos por não serem considerados corpos que importam para a sociedade, são alijados de vários de seus direitos, ao acesso à educação de qualidade, à saúde, ao lazer, ao mercado de trabalho, entre outras esferas.

Observamos o quanto esses/as jovens estão em uma situação de desamparo quando narraram várias das situações vivenciadas, a exemplo do uso de álcool ser uma forma de lidar com a falta de perspectiva de futuro, de enfrentar situações difíceis. Nesse sentido, vimos que a rede de apoio desses jovens está vazada. Há um vazio de soluções para tirá-los/as dessas situações. Assim, esses/as jovens não são considerados/as em sua singularidade pelas políticas para juventude, porque não são vidas que importam. A realidade desses/as é visível,

mas é ignorada, é silenciada. E, uma vez que esses/as têm suas histórias de vida silenciadas, isso têm efeitos em seus processos de subjetivação, a exemplo de alguns/mas que não se sentem motivados/as para o engajamento na luta pelos direitos quilombolas.

Estamos compreendendo a rede de apoio como sendo composta por diferentes domínios: família, escola, pares, serviços de saúde e comunidade. Compreende relações próximas e significativas que os sujeitos estabelecem, e representam o apoio que recebem ou que podem receber diante de adversidades na vida. A rede de apoio pode funcionar como fator de proteção, uma vez que ajuda os sujeitos a desenvolver estratégias para enfrentar as mais diversas situações, contribuindo para o desenvolvimento dos sujeitos (COSTA, 2009). O que nos alerta para a importância de construir ações nos territórios que colaborem para o fortalecimento das redes.

A Psicologia comunitária ressalta que o sujeito pode, através da atividade comunitária (coletiva, cooperativa e solidária), superar situações de opressão, resistindo à submissão e lutando contra a mesma. Esse enfrentamento se origina e se sustenta no compromisso ético-político e nos vínculos afetivo-sociais que o/a morador/a constrói com sua comunidade, seu sistema cultural e com os demais moradores (OLIVEIRA et al, 2008). Dessa forma, entendemos que a rede social dos/as jovens não está fortalecida. Eles/as mesmos/as afirmaram que, muitas vezes, não têm com quem contar nos territórios em que vivem. Os/as quilombolas relataram que, nas comunidades, não há um sentimento de coletividade, ajuda entre os/as moradores/as. Falaram das próprias famílias que não os/as ajudam, porque estas também já estão desassistidas, de modo que é extremamente importante que os/as profissionais e instituições existentes nos territórios fortaleçam essas redes.

As autoras mencionadas acima, ao falarem sobre Psicologia comunitária, fizeram relação com a Educação libertadora proposta por Paulo Freire, essa tem como foco o trânsito do indivíduo para o sujeito histórico, superando os esquemas de acomodação e adaptação passiva à realidade e fomentando a integração com a inserção na realidade vivida (FREIRE, 1980). Ambas as abordagens direcionam suas práxis para a construção, o fortalecimento e o desenvolvimento do sujeito, fomentando a identidade pessoal e a atuação comunitária, estimulando a integração entre o desenvolvimento pessoal e o sociocomunitário, no sentido de que os sujeitos construam resistências às opressões que incidem sobre os mesmos/as. Consideramos que esses são importantes caminhos para serem pensados em prol do fortalecimento das redes comunitárias, seja no quilombo ou na periferia.

10 FORMAS DE RESISTÊNCIA ÀS SITUAÇÕES DE DESIGUALDADES SOCIAIS