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concretos e específicos do que constitui a globalização para que seja útil como construção teórica126.

O que exatamente viria a ser globalização? O que isso envolve? E, mais importante, quais seriam seus efeitos, especialmente seus perigos? Everett questiona e prossegue clamando por uma apropriada dose de ceticismo em relação à primeira questão, porque existiriam inúmeros termos tidos como sinônimos de globalização, como a transnacionalização, a multinacionalização, a internacionalização, a universalização, a liberalização e a ocidentalização, cada qual com uma conotação diferente. Por exemplo, multinacionalização poderia ser associada à transferência de capital pela difusão da produção, enquanto ocidentalização teria uma conotação cultural. Essas diferenças apontam uma diversidade de significados e para a possibilidade de nunca alcançar uma única definição do termo.127

Partindo da definição clássica contábil, onde a contabilidade é reconhecida como um método sofisticado de avaliação, voltado para a alocação de recursos escassos, ofereceria um fluxo de informações para gerenciar a complexidade interna de uma empresa, sendo a evolução dos sistemas contábeis determinada pelos requisitos de eficiência, buscando maior retorno dos recursos econômicos. Para Everett, essa visão de “micro-troca” dos atores sociais é tão difundida na literatura contábil que pode ser entendida como um fundamento da prática contábil. Baseado nesta fundamentação, autores procuram explicar a globalização como uma expansão em larga escala das relações de troca e dos arranjos contratuais, recaindo o foco sobre o papel informacional da contabilidade na mediação desses relacionamentos e arranjos. A lente da pesquisa seria então adaptada a novas dimensões, do plano micro para o macro (“micro-exchange-gone-global”). Em consequência, observa, a atenção se concentraria em como otimizar o papel informacional da contabilidade em nível global, referindo-se à crescente quantidade de literatura sobre a harmonização global de padrões de governança corporativa.128

Contudo, o enfoque “micro-exchange-gone-global” seria falacioso (falácia da composição) por se basear na premissa do todo como uma mera extensão das

126 Graham & Neo, “Accounting for Globalization”, 449.

127 Everett, “Globalization and Its New Spaces”, 403.

128 Ibid., 401-402.

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partes. Esta visão seria derivada da poderosa influência da economia neoclássica na pesquisa contábil contemporânea, onde o observador partiria de um olhar obliterado, impedindo-o de focalizar e examinar criticamente fenômenos não econômicos em nível macro – marca evidente na pesquisa sobre a harmonização global das normas contábeis. As principais pesquisas contábeis relacionadas ao tema globalização são

“perturbadoramente silenciosas” sobre os “perigos e consequências” da globalização, ao menos na medida em que esses perigos e consequências existem.129

Na visão de Sikka, globalização é considerada a fase mais avançada do capitalismo e, apesar das discordâncias quanto ao seu significado, extensão e direção, haveria um razoável consenso de que a fluidez das finanças, através de fronteiras territoriais porosas, com a ajuda da tecnologia da informação, é central para os processos associados às formas contemporâneas de globalização.130

Os processos de globalização tiveram um enorme impacto na vida contemporânea, abriram possibilidades de criar formas novas e inovadoras de bem estar no mundo, mas também deram impulso à homogeneização e à padronização segundo Coopers. A globalização teria desestabilizado a compreensão dos efeitos associados à aplicação da contabilidade nos diversos ambientes em que ela atua, como a esfera social e o meio ambiente. Os defensores da internacionalização da contabilidade patrocinam a promulgação de normas contábeis que apaguem o local no interesse de harmonizar o global: “Esses apóstolos da internacionalização não apenas encorajaram a introdução de padrões contábeis “comuns”, mas também apoiaram indiretamente a desregulamentação e a privatização da economia.”131

Chapple embasa parte importante de sua tese nos conceitos de globalização trazidos por Castells na trilogia A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura (1996, 1997, 1998). Em sua visão baseada nesta obra, as novas tecnologias transformaram a produção, a distribuição e os mercados, permitindo a rápida ligação em rede de centros financeiros em todo o mundo. A compressão de tempo e espaço permitiu que conexões, negociações, acordos, transferências de fundos e todos os tipos de transações pudessem ser registrados e estivessem disponíveis de imediato

129 Ibid., 402.

130 Sikka, “The Role of Offshore Financial Centres in Globalization”, 365-366.

131 Cooper, Neu & Lehman, “Globalisation and its Discontents”, 359.

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em vários locais dentro do “espaço de fluxos”, na rede do ciberespaço de telecomunicações e conexões de computadores. A globalização resultante de negócios, investimentos de capital e finanças faria emergir reivindicações sobre a necessidade de demonstrações contábeis comparáveis em escala global.132

Segundo Castells o conjunto de crises e conflitos que caracterizaram a primeira década do século XXI é reflexo de uma série de grandes transformações sociais, tecnológicas, econômicas e culturais iniciadas ao final do segundo milênio, que convergiram para originar uma nova forma de sociedade: a sociedade em rede – analisada no primeiro volume da trilogia. Seriam expressões dessa crise, a crise financeira global; a convulsão nos negócios e nos mercados de trabalho resultante de uma nova divisão internacional do trabalho; a exclusão social e cultural de grandes segmentos da população do planeta das redes globais que acumulam conhecimento, riqueza e poder; o crescimento da economia criminosa global; o reacender das divisões nacionais, étnicas e territoriais, levando à negação do outro e ao recurso generalizado à violência como forma de protesto e dominação; a reação dos descontentes na forma de fundamentalismo religioso; a crise ambiental sintetizada pelas mudanças climáticas; a crescente incapacidade das instituições políticas baseadas no estado-nação para lidar com problemas globais e demandas locais.133

A sensação de desorientação seria agravada por mudanças radicais nas tecnologias de comunicação. Dos meios de comunicação de massa tradicionais para um sistema de redes de comunicação horizontais em torno da Internet e da comunicação sem fio, houve uma transformação cultural fundamental na extensão em que a virtualidade se torna uma dimensão essencial de nossa realidade: “O surgimento da nova cultura baseada na comunicação multimodal e no processamento digital da informação cria uma divisão geracional entre os nascidos antes da Era da Internet (1969) e os que cresceram sendo digitais.”134

Buscando um modelo explicativo para este fenômeno, Castells identificou uma série de tendências presentes e observáveis nas duas últimas décadas do

132 Chapple, 105 e 119.

133 Castells, “A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura (1996)”, XVII.

134 Ibid., XVIII.

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primeiro século, procurando entender seu significado por meio de procedimentos padrão das ciências sociais:135

“O resultado foi a descoberta de uma nova estrutura social em formação, que conceituei como a sociedade em rede porque é feita de redes em todas as dimensões-chave da organização social e da prática social. Além disso, enquanto as redes são uma forma antiga de organização na experiência humana, as tecnologias de rede digital, características da Era da Informação, potencializaram as redes sociais e organizacionais de forma que permitiram sua infinita expansão e reconfiguração, superando as limitações tradicionais das formas de organização em rede para gerenciar a complexidade além de um determinado tamanho da rede. Porque as redes não param na fronteira do estado-nação, a sociedade em rede se constituiu como um sistema global, inaugurando a nova forma de globalização característica de nosso tempo. No entanto, enquanto tudo e todos no planeta sentiram os efeitos dessa nova estrutura social, as redes globais incluíam algumas pessoas e territórios e excluíam outros, induzindo assim uma geografia de desigualdade social, econômica e tecnológica. Em um desenvolvimento paralelo, os movimentos sociais e as estratégias geopolíticas tornaram-se amplamente globais para atuar sobre as fontes globais de poder, enquanto as instituições do Estado-nação herdadas da Idade Moderna e da sociedade industrial gradualmente perderam sua capacidade de controlar e regular fluxos globais de riqueza e informação. A ironia histórica é que os Estados-nação estavam entre os agentes mais ativos da globalização, enquanto tentavam montar o tigre dos mercados desenfreados e dos fluxos livres de capital e tecnologia para seu próprio benefício.”136

A crise financeira de 2008 seria consequência direta da dinâmica específica dessa economia global explicada por Castells, resultado da combinação de seis fatores. Como primeiro fator, a transformação tecnológica das finanças forneceu as bases para a constituição de um mercado financeiro interligado globalmente pelas redes de computadores, ao mesmo tempo em que os agentes deste processo incorporaram capacidade computacional para operar modelos matemáticos avançados: “Tais modelos foram considerados capazes de gerenciar a crescente complexidade das operações em mercados financeiros globalmente interdependentes por meio de transações eletrônicas efetuadas na velocidade da luz.” O segundo fator seria a desregulamentação dos mercados e instituições

135 Ibid.

136 Ibid.

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financeiras, permitindo o fluxo quase livre de capital mundialmente, sobrecarregando a capacidade regulatória dos reguladores nacionais. Como terceiro fator, novas tecnologias financeiras tornaram possível a invenção de inúmeros produtos financeiros exóticos, como derivativos, futuros, opções e ativos securitizados (como swaps de inadimplência de crédito), cada vez mais complexos, entrelaçados e sem transparência. O quarto fator seria o desequilíbrio monetário provocado pela a acumulação de capital em países produtores de petróleo e recém-industrializados, como a China, e o endividamento de economias mais ricas, como os Estados Unidos. O quinto fator liga-se à crise hipotecária que começou em 2007, nos Estados Unidos, e repercutiu em todo o sistema financeiro global, porque os mercados financeiros são influenciados por “turbulências de informação” e funcionam apenas parcialmente de acordo com a lógica de oferta e procura. Como sexto fator, a deficiência de supervisão das atividades financeiras permitiu que os agentes tivessem incentivos para agir em benefício próprio e de forma cada vez mais arriscada.137

Assim, argumenta Castells, uma crise financeira sem precedentes se desenrolava em todo o mundo no momento mesmo em que escrevia, encerrando de modo dramático o mito de um mercado autorregulado, questionando a relevância de algumas teorias econômicas tradicionais, urgindo a governos e empresas medidas para “domar o autômato selvagem que dava marcha à ré e devorava dezenas de milhares de empregos (ou seja, vidas familiares) diariamente.”138

Fazendo um jogo com as palavras fidelidade e infidelidade, Coopers critica a pesquisa tradicional em contabilidade porque entraria em campo com a viseira da

“representação fidedigna”, ao assumir como verdadeira a premissa contida nas normas de que a simples aplicação das próprias normas resultaria em representação fidedigna das demonstrações contábeis139. De um lado, se a

137 Ibid., XX.

138 Ibid., XXI.

139 A norma IAS 1 contém a seguinte premissa em seu parágrafo 15: “As demonstrações contábeis devem representar apropriadamente a posição financeira e patrimonial, o desempenho e os fluxos de caixa da entidade. Para apresentação adequada, é necessária a representação fidedigna dos efeitos das transações, outros eventos e condições de acordo com as definições e critérios de reconhecimento para ativos, passivos, receitas e despesas como estabelecidos na NBC TG ESTRUTURA CONCEITUAL – Estrutura Conceitual para Relatório Financeiro. Presume-se que a aplicação das normas, interpretações e comunicados, com divulgação adicional quando necessária,

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fidelidade refere-se à capacidade das demonstrações contábeis representarem a realidade econômica da empresa objeto, a resposta (em um mundo cada vez mais complexo e globalizado) tem sido no sentido de acelerar o processo de harmonização, na tentativa de alcançar a compatibilidade entre os sistemas contábeis pela internacionalização. Isso permitiria aos usuários traduzir diferentes resultados financeiros de forma fácil e eficaz. Por outro lado, em contraponto, a infidelidade corresponderia às representações apagadas quando os padrões americanos são impostos a localidades distantes: “Essa linha de questionamento enfatiza as relações sociais que são ao mesmo tempo racionalizadas e ocultas por tão banais normas contábeis”. Ao contrário da investigação que parte da premissa de que a harmonização/ internacionalização é a solução, Coopers defende compreender qual é o problema a ser ‘resolvido’ e quais as consequências associadas às soluções, apresentando adicionalmente as seguintes questões: O que é exatamente globalização? Como a definição alcançada relaciona-se ao processo de harmonização contábil? Em que medida a regulamentação contábil facilita a globalização, favorecendo os meios pelos quais as multinacionais possam se utilizar de paraísos fiscais140 para evitar regulamentações locais? Qual o papel das firmas internacionais de contabilidade e de outras organizações internacionais nesses processos?141

Uma análise do papel de algumas instituições supranacionais, como IMF – International Monetary Fund, WTO – World Trade Organization, OECD – Organisation for Economic Cooperation and Development, W3C – World Wide Web

resulta em demonstrações contábeis que se enquadram como representação apropriada.” Conforme a tradução para português contida na norma brasileira correspondente. NBC TG 26 (R5) Apresentação das Demonstrações Contábeis.

140 Paraísos fiscais (Offshore Financial Centres (OFCs)) são parte integrante da globalização. Eles facilitam a crescente mobilidade das finanças sem ou com baixa tributação/regulamentação, sigilo e anonimato favorecendo o livre fluxo de capital pelo mundo. Suas políticas desempenham um papel fundamental na elisão/ evasão fiscal, lavagem de dinheiro, fuga de capital, degradação da regulamentação, instabilidade e subdesenvolvimento econômico, e têm sérias consequências para as pessoas em todos os lugares. Os intermediários profissionais, como contadores e advogados, desempenham um papel fundamental no desenvolvimento e expansão dos OFCs. Apesar do verniz de democracia liberal, alguns OFCs são capturados pelo setor financeiro e promovem os interesses do capital financeiro. Muitos OFCs são nutridos e protegidos por líderes hegemônicos ocidentais com mercados financeiros e de capital desenvolvidos. Exemplos de OFCs estariam em localidades como Antilhas, Delaware (EUA), Gibraltar, Ilhas Virgens Britânicas, Ilhas Cayman, Jersey, Liechtenstein, Londres, Luxemburgo, Malta, Monaco e Suíça. Vide: Sikka, 366.

141 Cooper, Neu & Lehman, 359-360.

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Consortium, é trazida por Graham e Neo, concluindo que tais instituições desempenham um importante papel na disseminação da globalização, onde a contabilidade se destaca por estar inserida em uma série de instituições e processos institucionais que regulam e estruturam o fluxo de ‘coisas’ ao longo do tempo e do espaço. Para os autores, a contabilidade é uma tecnologia fundamental para a superação do tempo e da distância a que aludem os teóricos da globalização;

fornece incentivos eficazes, como no caso dos indicadores de performance desenvolvidos, aplicados e publicados pela OCDE; também representa realidades distantes, como mostram as disputas de custeio da questão da madeira de fibra longa entre o Canadá e os EUA. Contudo, essa superação não é distribuída uniformemente, nem suas consequências são sempre justas. Por ser a contabilidade uma especialidade, o poder de empunhá-la está com os especialistas, os contadores, os quais estariam implicados na criação desses desequilíbrios de poder e distribuições desiguais, expressando a convicção de que o fariam por meio da criação de normas contábeis. No entanto, existem ainda muitas outras maneiras pelas quais a contabilidade participa da estruturação, regulação e padronização das coisas além do mercado de capitais. A contabilidade amplificaria certas vozes no cenário global e não outras, ainda que merecessem ser ouvidas. Os autores indagam quanto à pesquisa contábil: Como as tecnologias contábeis tornam visíveis certos problemas, sugerem certas soluções, operacionalizam essas soluções e estimulam certas consequências? O que seria apagado nos modelos abstratos utilizados por organizações como o FMI e quais seriam as consequências desses apagamentos? Um exame de tais questões ajudaria a entender melhor, não apenas como as práticas são difundidas entre as jurisdições, mas também suas consequências.142