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laboratório experimental para o desenvolvimento do modelo que viria a ser adotado pela própria UE e pelo restante do mundo.

As normas internacionais de contabilidade derivadas do projeto IOSCO-IASC estavam aderentes a esses requisitos e com o conceito de comitologia (este conceito é detalhado no tópico seguinte), além de se afinarem à experiência da UE na solução das diversas disputas regulatórias no âmbito do mercado único.

Em julho de 2002, o Regulamento (CE) Nº 1606/2002 foi promulgado pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho da União Europeia, determinando a adoção das normas internacionais de contabilidade pela UE. O Regulamento IAS, como o documento ficou conhecido, contém 4 páginas e foi publicado em Bruxelas, no Jornal Oficial das Comunidades Europeias, em 11 de setembro de 2002, p. L243/1 a L243/4, nas 27 línguas oficiais da UE. Utilizamos a versão em português.102

O Regulamento IAS determinou e especificou a adoção das Normas Internacionais de Contabilidade elaboradas pela IASC que, após a reestruturação, em 2001, passou a denominar-se IASB, descrevendo os objetivos, definições, a aplicação às contas consolidadas das sociedades cujos títulos são negociados publicamente, opções relativas às contas anuais e às sociedades cujos títulos não são negociados publicamente, comitê de regulação, disposições transitórias, entrada em vigor, e outros detalhes.103

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por delegação do Parlamento. Uma vez que tal delegação não existia, a aplicação das IFRS/IAS no ambiente jurídico da UE só seria possível após um processo de aprovação formal. Portanto, para ser aplicado dentro da UE, as IFRS/IAS precisariam ser endossadas. Ao mesmo tempo, era impensável que uma norma emitida pelo IASB precisasse ser renegociada no nível da UE; uma vez emitida pelo IASB, deveria ser aceitável para a UE.104

Lidar com uma agenda legislativa massiva e em tão pouco tempo, significava um enorme desafio para os processos de tomada de decisão da EU na visão de Zeff

& Camfferman. As questões relacionadas ao mercado interno da UE deviam ser aprovadas conjuntamente pelo Conselho e pelo Parlamento Europeu. Contudo, já na década de 1960, este procedimento complicado demonstrou ser inapropriado para detalhes e aspectos técnicos relativamente menores. Em consequência, foram desenvolvidos procedimentos para delegar a autoridade de execução à Comissão Europeia. Como esses procedimentos normalmente envolviam que a autoridade da Comissão fosse associada ao aconselhamento por comitês de representantes dos estados-membros, eles ficaram conhecidos como “comitologia” (comitology)105. As normas relativas à “comitologia” foram estabelecidas em 1987 e revisadas em 1999106. O Parlamento Europeu teria acompanhado com desconforto o uso generalizado destes procedimentos nos anos 1990 (“The European Parliament, Whose Powers and Status Continued to Increase During the 1990s, Followed the Spreading use of Comitology with some Misgivings”). Em 2000, o Conselho Europeu encarregou uma comissão de especialistas (The Committee of Wise Men, mencionado anteriormente) para desenvolver uma estratégia regulatória a fim de implementar o Plano de Ação, cujo modelo foi baseado nos procedimentos de comitologia e apresentado em fevereiro de 2001. A proposta seria implementada

104 Hulle, 366.

105 O processo de comitologia foi desenvolvido para superar as dificuldades de harmonização da regulamentação e de procedimentos relativos ao mercado único, devido às inúmeras diferenças entre os Estados-Membros e da necessidade de extensas, demoradas e não raras vezes inconciliáveis pautas legislativas. Por esse processo, a regulamentação ocupa-se de aspectos genéricos, de princípios gerais, delegando o detalhamento de aspectos técnicos e procedurais a comitês e experts compostos por representantes dos Estados-Membro. The Committee of Wise Men, “Final Report”, 112-114.

106 A Decisão do Conselho Europeu 1999/468/EC, posteriormente emendada pela 2006/512/EC fixa as regras de exercício das competências de execução atribuídas à Comissão dentro dos denominados “comitology procedures”.

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após um ano de negociações, para dissipar a preocupação do Parlamento em manter certo controle sobre a legislação de serviços financeiros.107

Foi extremamente importante incluir no processo, no relato de Hulle, uma série de garantias que contribuiriam para o sucesso dessa política e uma grande parte das negociações em torno do regulamento devotou-se a um acordo sobre essas garantias, qual sejam: (1) uma maior aproximação dentro da estrutura do agora IASB (recordando que o IASC foi reestruturado dando origem ao IASB em 2001), de modo a representar os interesses da UE; (2) abrir espaço para a contribuição técnica das partes interessadas da UE, no processo de emissão das normas internacionais, o que viria a dar origem ao European Financial Reporting Advisory Group – EFRAG; (3) era necessário implantar um sistema de endosso que funcionasse rapidamente, mas sem perder a devida consulta e transparência, especialmente necessárias porque as normas partiam de uma organização privada, sobre a qual a UE não tinha controle direto. Portanto, foi decidido autorizar a Comissão Europeia a endossar as normas, baseado no procedimento de comitologia, onde a Comissão seria assistida por um Comitê de Regulamentação Contábil (ARC) composto de representantes dos estados-membro, com assessoria de um conselho do setor privado, que viria a ser ocupada pelo EFRAG.108

Como pioneira na adoção em larga escala das IFRS, a UE teve também de descobrir quais seriam as medidas regulatórias necessárias para o bom funcionamento do Regulamento IAS. O foco principal no desenho do mecanismo de endosso europeu não estava na possibilidade de negativa, mas sim em promover envolvimento proativo no processo de elaboração das normas do IASB, assegurando a adequação das IFRS. Isso ficou claro quando o 'nível técnico' do mecanismo de endosso foi estabelecido na forma do EFRAG.109

Na reta final para a adoção obrigatória a partir de 1º de janeiro de 2005, permaneciam em aberto questões envolvendo a normatização da indústria bancária, que se opunha à forma inovadora para tratamento dos instrumentos financeiros, especialmente quanto ao uso do valor justo (fair value), refletidas nas normas IAS 32

107 Zeff & Camfferman, “Aiming for Global”, 56-58.

108 Hulle, 366-367.

109 Zeff & Camfferman, 62-63.

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e 39. Em seu livro, Zeff dedicou o capítulo “Instrumentos Financeiros: A Confrontação com a Europa” para tratar do tema:110

“Entre os projetos técnicos iniciais do IASB, o tema da contabilidade para instrumentos financeiros adquiriu um significado especial.

Durante a década de 1990, já estava bem estabelecido que a contabilidade de instrumentos financeiros era complexa e poderia ser controversa. Mesmo assim, tomou de surpresa muitos dos novos constituintes do IASB, assim como o próprio IASB, a oposição do setor bancário europeu ao trabalho do IASB sobre este tema, escalando para um conflito político de alto nível e que colocou em risco a adoção das IFRSs pela UE antes mesmo de elas entrarem em vigor.”111

Após extenso processo de negociação envolvendo, especialmente, as normas de instrumentos financeiros, as normas foram revisadas e/ou alteradas. Mas o conflito entre o IASB e a Comissão Europeia não foi resolvido. Em 2005, a Comissão votou a favor da aprovação de todas as normas IAS (herdadas do IASC), as IFRS 1 a 5 e todas as interpretações relacionadas, mas com duas exclusões (carve-out) da IAS 39 (que versa sobre instrumentos financeiros).112