• Nenhum resultado encontrado

Crenças e valores da enfermagem

4. CUIDAR EM ENFERMAGEM

4.2. O saber o fazer e o ser em enfermagem

4.2.1. Os modelos conceptuais dos cuidados de enfermagem

4.2.1.1. Crenças e valores da enfermagem

As crenças e os valores da enfermagem referem-se aquilo em que os enfermeiros acreditam como grupo profissional sobre o que vale a pena fazer para bem dos doentes, da profissão e deles próprios. Segundo KOZIER, “uma crença (opinião) é algo aceite como certo numa discussão das possibilidades mais do que no estabelecido. É um tipo particular de atitude cujo componente cognitivo se baseia mais nas crenças pessoais do que nos factos”242. Por seu lado, um valor pode definir-se como algo digno de estima, “uma disposição afectiva para com uma

239MITRANI, Main; DALZIEL, Murray M. e BERNARD, Annick (1994), p. 134.

240PHANEUF, Margot (1993), p. 2.

241 PEARSON, Alan e VAUGHAN, Barbara (1992), Modelos para o Exercício de Enfermagem, Lisboa: Associação Católica dos Enfermeiros e Profissionais de Saúde, p. 14.

242 KOZIER, Barbara; ERB, Glonora e OLIVIERI, Rita (1993), Enfermeria Fundamental:

Conceptos, Procesos y Prácticas, 4ª ed., Tomo I, Madrid: Interamericana-McGRAW-HILL, p.

137.

pessoa, um objecto ou uma ideia”243. Dito de um modo mais abrangente e com palavras de SIMON, “os valores são conjuntos de crenças pessoais e atitudes aplicadas à verdade e à beleza, dignos de qualquer pensamento, objecto ou comportamento. São as acções orientadas com um propósito determinado e que dão significado à vida”244. Toda a pessoa, nomeadamente o enfermeiro, o doente, o médico, possui um conjunto de valores pessoais que a influencia. Pela vivência dos valores, a pessoa fica mais enriquecida, expõe a sua interioridade no que ela tem de mais humano, sendo estes incorporados nas suas vidas através da observação e interacção com ambientes sociais, culturais e religiosos. Existem várias formas de transmissão de valores, como a modelação, o deixar andar (laissez-faire), a

“moralização”, e a escolha responsável245. Para que cada pessoa reconheça os seus próprios valores, isto é, para que os clarifique, numa perspectiva pessoal e profissional é necessário que desenvolva um pensamento ético, efectivamente reflexivo.

É ao longo da socialização na profissão (enquanto estudantes e quando profissionais) que esta reflexão se deve realizar. A clarificação de valores é um processo pelo qual os indivíduos encontram as suas próprias respostas às situações, isto é, os seus valores. Segundo ANDRADE246, a clarificação de valores é essencial para o crescimento individual e é um processo que guia a acção do profissional, pois fomenta a consciência e a visão interior de cada um, permitindo assim que a pessoa construa o seu referencial ético, fundamental para uma completa competência profissional. Os valores são incorporados nas suas vidas mediante a observação e a interacção com ambientes sociais, culturais e religiosos.

De acordo com a Sociedade Francesa de Acompanhamento e de Cuidados Paliativos “os valores podem ser definidos como guias de comportamento que se desenvolvem e amadurecem: eles dão sentido à vida. Os valores são elementos que indicam a forma como a pessoa decidiu fazer uso da sua vida e que a ajudam a

243KOZIER, Barbara; ERB, Glonora e OLIVIERI, Rita (1993), p. 137.

244SIMON (et al.) (1993), Enfermeria Fundamental: Conceptos, Procesos y Prácticas, 4ª ed., Tomo I, Madrid: Interamericana-McGRAW-HILL, p. 137.

245 Cf. KOZIER, B., (et al) (1995), Conceitos y Temas em la Prática de la Enfermería, Madrid:

Interamericana-Mcgraw-Hill, 2ª ed., p. 210.

246 Cf. ANDRADE, Júlio Vaz (1992), Os Valores na Formação Pessoal e Social, Lisboa:

Texto Editora.

escolher livremente, após reflexão amadurecida”247. Os valores pessoais reflectem também as experiências e a inteligência da pessoa na integração e defesa que deles faz. Alguns exemplos de valores pessoais mais comuns são a autoestima, a honestidade, o amor, a paz, o trabalho, a segurança, a beleza, a unidade familiar, a actividade intelectual e a segurança económica. Os de tipo profissional são, frequentemente, o reflexo e uma ampliação dos valores pessoais. Como “a enfermagem é uma profissão que se baseia nos cuidados, os valores profissionais da enfermagem relacionam-se com a competência e a compaixão”248, que são requisitos fundamentais para prestar cuidados de enfermagem com qualidade. De entre os valores profissionais mais comuns e de acordo com KOZIER e colaboradores249, destacamos o respeito pelas pessoas e pela sua autonomia, a beneficência, a confidência, a fidelidade e a justiça. Estes e muitos outros valores estão inerentes aos cuidados de enfermagem. Os enfermeiros desenvolvem as crenças e os valores profissionais durante a sua integração na profissão, mediante os Códigos Éticos de Enfermagem, e pelo cumprimento do Código Deontológico, que retomou novo impulso com a aprovação do Estatuto da Ordem dos Enfermeiros.

No Código Deontológico do Enfermeiro, o artigo 78º, n.º 1, refere que as intervenções de Enfermagem são realizadas com a preocupação da defesa, da liberdade e da dignidade da pessoa humana e do enfermeiro. O n.º 2, refere que são valores universais a observar na relação profissional: igualdade, liberdade responsável, com capacidade de escolha, tendo em atenção o bem comum, a verdade e a justiça, o altruísmo e a solidariedade, competência e aperfeiçoamento profissional. O n.º 3 refere que são princípios orientadores da actividade dos enfermeiros: a responsabilidade inerente ao papel assumido perante a sociedade; o respeito pelos direitos humanos na relação com os clientes; a excelência do exercício na profissão em geral e na relação com outros profissionais.

Vivemos numa sociedade que tem necessidade de propostas concretas, alicerçadas nos ideais de solidariedade, de amizade e de respeito pela dignidade da pessoa humana. Os enfermeiros partilham e vivem este ideal, não só porque são parte integrante dessa mesma sociedade, mas também porque fruto da sua

247 Sociedade Francesa de Acompanhamento e de Cuidados Paliativos (2000), Desafios de Enfermagem em Cuidados Paliativos, Loures: Lusociência-Edições Técnicas e Científicas Lda., p. 10.

248SIMON (et al.) (1993), p. 141.

249Cf. SIMON (et al.) (1993), p. 140.

formação profissional, são chamados a agir, tendo por base valores que vão de encontro a este mesmo pressuposto. Constituem reflexo disto os valores universais acima referidos. A verdade e a justiça são valores que só fazem sentido em sociedade porque pressupõem relação, interacção, mas também respeito pela autonomia e dignidade, não se sobrepõem ou subjugam a outros valores, mas encontram-se num plano de igualdade. A sua importância e necessidade são apenas definidas tendo como fim o bem, em harmonia com os princípios éticos. A verdade constitui uma aspiração profunda do Ser Humano, dela brota a exigência da veracidade como ética global. Na dimensão interpessoal da verdade, a comunicação entre os homens é o prolongamento do próprio ser verdadeiro do Homem. Torna-se assim o primeiro gesto da verdade pessoal e do agir verdadeiro250. O nosso compromisso com a verdade diz respeito apenas aos cuidados de enfermagem e a todos os actos praticados ou delegados pelos enfermeiros, pelo que devemos ser cautelosos para não nos imiscuirmos naquilo que diz respeito a outros profissionais.

Ainda que muitos dos cuidados sejam planeados e executados autonomamente, são decorrentes de diagnósticos ou prescrições médicas, o que torna difícil, muitas vezes, definir o que dizer sem incluir informações que saem do âmbito dos actos de enfermagem. A justiça vive paralelamente com a verdade.

De acordo com NUNES E REGO251 a justiça utiliza-se no plano do direito ou da legalidade, domínio jurídico e da justiça retributiva, mas também significa igualdade com os demais, ou equidade, falando-se então de justiça distributiva. É na justiça distributiva que se enquadram os cuidados de saúde, porque está intimamente ligada à alocação de recursos, humanos e materiais, sua distribuição e rentabilização, para que todos os cidadãos lhes acedam na medida em que deles necessitam.

A solidariedade e o altruísmo pressupõem uma qualidade moral inerente aos profissionais de saúde, pois quem decide trabalhar nesta área tem de possuir vocação para a solidariedade, para a “prática do bonnum facere que significa cuidar do outro, promover a recuperação da sua saúde e a cura dos seus males físicos e psíquicos, e da qual nenhum profissional de saúde poderá abrir mão, sob pena de

250 Cf. PINTO, J., R., C. (1990), Questões Actuais da Ética, Braga: Editorial A. O., p. 25.

251 Cf. NUNES, Rui e REGO, Guilhermina (2002), Prioridades na Saúde, Lisboa: Editora McGraw-Hill, pp. 3-16.

não ser reconhecido pela sociedade como tal”252. O exercício da profissão de enfermagem integra o valor da solidariedade e do altruísmo pois prestamos cuidados centrados nos outros e para o seu bem. O altruísmo e a solidariedade, ao serem praticados, ao acolhê-lo nos momentos difíceis, ao apoiá-lo de forma incondicional mesmo nos piores momentos, acautelam a sobrevivência física e emocional do doente. O amor gera altruísmo e solidariedade, e, este amor, proporciona felicidade, plenitude e bem-estar.

A competência e aperfeiçoamento profissional terão de ser, para os enfermeiros, um comportamento, a relação da sua conduta, a orientação dos seus gestos quotidianos e o funcionamento de um desempenho ético. Os enfermeiros, ao estarem sujeitos ao cumprimento dos seus deveres, são também sujeitos de direitos.

Nesta lógica, os enfermeiros têm, então, não apenas o dever de exercer a profissão, agindo face à circunstancialidade com conhecimento, destreza e intuição, em suma, com competência, mas têm reciprocamente o direito de usufruírem da ou das oportunidades para se tornarem competentes, para se desenvolverem.

Ao longo dos tempos foi-se reconhecendo que sobre a natureza dos Seres Humanos e das suas interacções com o meio ambiente não era possível estabelecer verdades absolutas e definitivas. Apenas era viável construir teorias que as tentassem explicar.

MARRINER afirma que “teorias são modelos de fenómenos empíricos do mundo real que indicam os componentes ou elementos de tais fenómenos e as relações que existem entre eles. As funções das teorias são, entre outras, fazer a síntese do conhecimento, explicar os fenómenos de interesse para a disciplina e determinar a previsão de meios para predizer e controlar os fenómenos”253.

Cada profissão tem as suas teorias, porque se dirige a aspectos específicos da humanidade. As teorias da enfermagem tentam explicar o que é a pessoa, a saúde, o ambiente, a enfermagem e as interacções entre estes componentes. E porque na realidade é de Seres Humanos que se ocupa, “a enfermagem enraíza-se nas ciências humanas, centra-se no homem como unidade viva e na sua

252 CORETH, Emerich (1988), O que é o Homem? Elementos para uma Antropologia Filosófica, Lisboa: Editorial Verbo, p. 123.

253MARRINER, Ann (1989), Modelos y Teorias de Enfermeria, Barcelona: Edições ROL S.

A., p. 13.

participação qualitativa nas experiências de saúde”254. E neste sentido, a enfermagem é por sua natureza e finalidade “uma ciência humanística dedicada à inquietude compassiva pela manutenção e a promoção da saúde, à prevenção das doenças e a reabilitação de pessoas e de grupos”255. Das ciências humanas emergem então as crenças e valores da enfermagem, as quais constituem os fundamentos sobre os quais assenta toda a estrutura dos seus modelos, os quais influenciam a prática profissional. As crenças e “os valores profissionais influenciam a prática profissional, entendendo-se por prática profissional o conjunto de decisões que os enfermeiros tomam autonomamente, como membros da equipa de saúde, reflectindo os valores e os conhecimentos sobre o porquê e o como actuam e os resultados que esperam das acções que realizam”256.

Cada modelo de enfermagem aparece num tempo e num espaço marcado pela origem e pelo percurso percorrido ao longo do tempo integrando, progressivamente, a evolução dos conhecimentos. Existem actualmente vários modelos de cuidados de enfermagem. Estes podem ser classificados de acordo com o seu principal centro de interesse, isto é, mais dirigidos aos cuidados de saúde física, psíquica ou social. Esta diversidade constitui uma riqueza, porque cada um explica uma perspectiva da disciplina da enfermagem, e no seu conjunto, confirmam a ideia de que a enfermagem é complexa em todos os seus aspectos. HALL defende que “o doente é certamente complexo. Não só é um Ser Humano que traz consigo as influências da sua cultura e ambiente, senão que também padece de uma doença que a medicina luta por compreender e tratar”257. Mas mais que isso, o doente é um ser de absoluta dignidade e de extrema fragilidade. De modo que a complexidade da enfermagem radica fundamentalmente em preservar e proteger essa dignidade e em colmatar essa fragilidade. Para o conseguir, o que fazem os enfermeiros? O que podem fazer? Envolvidos constantemente no conflito vida/morte, fazem aos outros pleno dom de si na fidelidade total e na dedicação incondicional que os transcende, permanentemente, para além do desgosto e do cansaço.

254 PARSE, Rosemarie Rizzo (1989), “Hombre-Vida-Salud”, in Modelos y Teorias de Enfermeria (coord.: Marriner), Barcelona: Ediciones ROL, p. 150.

255 ROGERS, Marta E. (1994), “Seres Humanos Unitários”, in Modelos y Teorias en Enfermeria (coord.: Marriner), Madrid: Mosby/Doyma Libros, 3ª ed., p. 304.

256 BASTO, Marta Lima (1993), “Valores Profissionais: Opções a Fazer”, Enfermagem em Foco, Lisboa, n.º 10, p. 42.

257 HALL, Lydia (1994), “El Modelo Introspección, Cuidado y Curación”, in Modelos y Teorias en Enfermeria (coord.: Marriner), Madrid: Mosby/Doyma Libros, 3ªed, p. 96.

Na tentativa de formular determinados conceitos e pressupostos, cada modelo elege certas crenças e valores. Por exemplo, o modelo de “actividades de vida” desenvolvido por NANCY ROPER258 no Reino Unido, centra-se na crença de que o indivíduo vive ocupado em viver toda a sua vida, transitando da dependência para a independência, de acordo com a idade, as circunstâncias e o ambiente. As ideias subjacentes a este modelo são portanto, a progressão ao longo da vida, o continuum de dependência/independência e as actividades de vida. E quando o indivíduo não é capaz de ser independente nalguma das actividades de vida, e a família ou o grupo social não conseguem assegurar-lhe a realização dessas actividades, então necessita da enfermagem para o ajudar a satisfazer as suas necessidades de saúde.

IMOGENE KING259 nos Estados Unidos da América, desenvolveu o modelo de

“interacção humana”. Nele acredita-se que as pessoas funcionam dentro de sistemas sociais, através de relações interpessoais, e que estas relações ocorrem consoante as percepções dos indivíduos, o que por sua vez influencia as suas vidas e a sua saúde. Entendidos deste modo, os sistemas sociais são a estrutura de vida, as relações interpessoais os processos, e estes são determinados pelas percepções dos indivíduos e pela sua saúde. O conceito básico de enfermagem de KING é de que ela engloba a acção, a reacção, a interacção e a transacção. Por meio deste processo, a enfermagem ajuda os indivíduos de qualquer idade ou meio social, a satisfazer as necessidades básicas e a controlar a saúde e a doença. Por tudo isto, as crenças e os valores constituem os fundamentos sobre os quais assenta toda a estrutura dos modelos da enfermagem.