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Criação de personagem e estranhamento

A criação de personagem contribuiu tanto para a apropriação de matéria textual como para a criação de cenas adaptadas para o texto. Como exemplo do primeiro caso, podemos citar:

• A troca de personagens: ensaiar as cenas representadas por outros que não os que já foram escolhidos (Romeu e o Frei; Julieta e a ama; Romeu e Tebaldo; Inspetor e Julieta etc.);

• A inversão dos papéis entre as meninas e os meninos, para representação de cenas da peça de maneira melodramática, exagerada.

• Cenas com repetição de texto, com três pessoas representando Romeu, três representando Julieta e todos juntos fazendo o Inspetor; cada um com uma maneira de falar diferente, numa versão super sintetizada das cenas. A criação de personagens por vezes contribuía também para a criação de cenas adaptadas para a peça. No jogo das profissões que estavam relacionadas com internato de jovens, escola tipo “o que faço para viver”(SPOLIN, 1979), utili- zando fala articulada, surgiram personagens relacionados com pais de alunos, com professores e funcionários de escolas e de internatos (ou instituições mistas como eles chamam). Esses personagens foram explorados em cenas de proibição do namoro, que terminam sendo incorporadas à peça (no lugar das falas do Prín- cipe ou do pai, por exemplo):

Conversa da Diretora com Julieta sobre boatos de namoro [quatro pessoas estavam deitadas ao fundo como se estivessem dormindo].

Diretora - Julieta ouvi um boato que você tava namorando um menino do 6o andar.

D - Eu não quero saber de namoro aqui dentro, está ouvindo? J - Mas não teve nada disso...

D - Vocês têm que namorar com gente de fora, que tenha um emprego decente, pra melhorar de vida.

J: Dinheiro não compra felicidade.

A experimentação de personagens diferentes nos ensaios – Romeu, Julieta, Inspetor, Tebaldo, Locutor. etc – e a troca de papéis durante as apresentações contribuíram para certo distanciamento. Na peça, todos faziam Romeu e todos faziam Julieta a cada cena ou ao mesmo tempo. O público percebia que uma história estava sendo representada por atores que se revezavam nos diversos papéis. Outros elementos contribuíam também para o não envolvimento do espec- tador como as interrupções na ação básica por meio do programa de rádio, da narração, da entrevista. Na apresentação da peça, a pobreza de aparatos também contribuía para o distanciamento. Não se tratava de forma alguma de um espetá- culo envolvendo uma produção sofisticada.

O ICB forneceu os adereços e o figurino básico (macacão, camisetas, ócu- los, brincos etc.). Em muitas apresentações, o aparelho de som era um simples gravador operado por um dos participantes na presença do público. Não havia cenário nem recursos de iluminação.

Enfim, o grupo tinha consciência de que o que se faz no teatro é uma ficção, não é uma realidade, mas um artifício, e o público tinha curiosidade e admiração pelo fato de atuarem sem utilização da visão, incorporando o jeito de ser de cada um.

e) Apresentação pública

Tivemos a oportunidade de compartilhar as experiências com pessoas ex- ternas ao grupo. Desde os ensaios, os alunos experimentaram a linguagem teatral com a preocupação específica de atingir o público. Para eles o intuito era mostrar para o público que uma pessoa cega tem capacidade de fazer teatro como qual- quer pessoa, como disse uma das alunas, mas também discutir um tema que consi- deravam significativo.

O objetivo de elaboração de um produto final com a intenção de mostrar, ajudou no desenvolvimento do senso de responsabilidade e compromisso. Nin- guém faltava. Até mesmo Júlia, que por vezes ficava um pouco amuada, partici-

pou, ao final, dos ensaios e durante as apresentações, com muito interesse e viva- cidade.

A existência de um ponto de chegada foi importante para os jogadores, pois criava uma expectativa. A perspectiva da apresentação parecia causar certo frene- si, ansiedade, medo, e vontade, ao mesmo tempo. Representar uma história de amor, expor e questionar uma situação, dialogar com o público, tudo isso levou a um nervosismo crescente.

Ao final do semestre, quando tivemos a presença de pessoas assistindo aos ensaios33, perguntamos aos alunos o que significou para eles a presença de uma

pessoa de fora assistindo ao trabalho:

Jandi: Para mim foi um faz de conta. Eu não me liguei no público.

Ludmila: Eu acho ao contrário. Uma pessoa só tudo bem. Mas, um público enorme, eu vou trocar palavras.

Júlia: E se der vontade de rir? E se trocar o texto? Alberto: Eu me senti normal.

Professor: E quando vocês estiverem apresentando aqui no Instituto? Alberto: Aí é diferente. O público daqui gosta de criticar.

As apresentações públicas aconteceram no final de 1997, na Faculdade de Educação, na Escola de Teatro da UFBA e no ICB e tiveram continuidade durante todo o ano de 1998.34 A motivação ocorreu pelo fato de os jogadores estarem

veiculando ideias e apresentando situações de seu próprio interesse, para uma plateia geralmente formada por adolescentes, também interessada no tema abordado. Mas a existência de uma história de amor, conhecida de todos, também funcionou como elemento motivador, provocando uma resposta crítica favorável dos que apreciavam a apresentação da peça.

A peça atingia o público jovem por falar do amor, por ter cenas de carinho e por evidenciar uma necessidade de discussão sobre a liberação ou não do na- moro. Por meio da elaboração cênica coletiva, o aluno desenvolveu a capacidade de perceber, no comum, o incomum e apresentar não exatamente o que percebe- ram, mas o mundo como gostariam que fosse.

O público contribuiu para o aprendizado dos alunos, alimentando a discus- são no meio e ao final do espetáculo, dando feedback para os atores. Na oportuni- 33 Antes da apresentação tivemos a presença de público em quatro oportunidades durante os

ensaios.

dade de debater com o público, os atores mostravam com utilizavam a reglete, respondiam a curiosidades relacionadas com a cegueira, falavam do processo de trabalho, elaborando um discurso sobre o tema. Ao difundir a montagem teatral, os participantes acabaram tornando-se multiplicadores do processo educativo que experimentaram.

O contato, sobretudo com outros adolescentes, contribuiu para a integração do aluno com deficiência visual, trazendo também um sentido moral de positividade, de humanidade, além de favorecer o fortalecimento do ego. Era uma oportunida- de de sair, encontrar pessoas, conversar, pegar telefones, contatos.