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Texto e aproximação com a realidade local

A aproximação com o cotidiano dos participantes aconteceu mais relacio- nada com situações reais e fictícias de proibição de namoro. A ideia inicial era de aproximação com a realidade baiana, porém os participantes não sabiam muito bem o que isso significava.28 Tampouco tinham interesse em aproximação com a

realidade de uma pessoa cega, pois não gostavam de falar sobre a cegueira, não representavam com frequência personagens cegos, nem utilizavam espontanea- mente a cegueira como tema nas improvisações.

O tema que queriam representar era o do “amor proibido”, pelas barreiras institucionais, a aproximação com a realidade local terminou acontecendo por conta do regime de internato. Como salientamos, a ideia do “amor proibido” apa-

28 No semestre seguinte, depois de andar por diversos pontos turísticos de Salvador, os próprios

alunos sugeriram a realização de uma peça sobre a Bahia e realizaram cenas retratando o Mercado Modelo, com sons e gestos de capoeira, as pedras do Pelourinho, machucando o pé de uma turista de salto alto etc.

receu no primeiro semestre em diversas cenas, como a do “Pai mandão” que proi- bia a filha de namorar.

No segundo semestre a aproximação com o texto ocorreu paulatinamente, mas se evidenciou na improvisação da cena em que Romeu conversa com um primo sobre o amor por Rosalina. Nessa improvisação, Nilton, representando Romeu, reclamava dos funcionários de um “reformatório de jovens” em que vivia, dizendo que eles davam tapa na mão dele, quando ele abraçava uma menina (esta não era a realidade que ele vivia concretamente no Instituto – já que o fato nunca aconteceu – mas foi uma forma simbólica que o aluno encontrou para expressar o que sentia diante da proibição do namoro nas instituições mistas).

Ao final da cena, Romeu culpava o Inspetor do reformatório pelo fato de Rosalina não corresponder ao seu afeto. Esta cena, da mesma forma que a do “Seu Buzina”, realizada no primeiro semestre, colocava em foco a questão da forma como é exercida a autoridade dentro de internatos e ajudou na concepção do espetáculo.

Certa vez, uma das participantes assim se manifestou, falando sobre a nossa versão do Romeu e Julieta:

“Um grupo de jovens de um reformatório estão revoltados com o inspetor que não quer permitir o namoro, mas, no final, ele libera, para a alegria de todos”. O texto não foi explorado em função dele mesmo, mas em função do resga- te do universo de vida dos participantes, sobretudo por meio da incorporação do material surgido nos jogos teatrais. O que aparecia do cotidiano deles, ou o que havia aparecido mediante improvisações resultantes do jogo teatral, era incorpo- rado às cenas. As falas que foram transportadas revelavam relações com o imagi- nário dos alunos, como no exemplo da cena realizada por Nilton e Alberto.

As associações ocorriam tanto naturalmente como provocadas. Assim, por exemplo, a luta entre as famílias dos “Capuleto” e “Montéquio”, que era proposta no texto de Shakespeare, foi substituída nos ensaios por uma briga de internos localizada dentro de um refeitório (ambiente de convívio grupal dentro do ICB), o que naturalmente provocava uma associação com situações vividas no cotidiano. Neste sentido, o texto foi objeto de imitação crítica, contribuindo para a reflexão sobre um segmento da realidade vivenciada no ICB, no que diz respeito ao amor proibido. Este tema, surgido nas improvisações, foi o próprio mote para a escolha da peça. A escolha do texto, como vimos, surgiu a partir do interesse dos participantes em trabalhar com o tema do “amor proibido”, e a sequência de ações do texto foi realizada procurando incorporar o material surgido nas improvisações teatrais.

Nessas improvisações surgiu uma rádio pirata, que serviu de pano de fundo para a peça, mandando recadinhos divertidos para os jovens de um internato. Os rapazes, sobretudo Rafa, adoravam imitar locutores de rádio vendendo produtos, entrevistando jogadores de futebol etc. As meninas tinham o maior prazer em recitar poesias de amor e declamar provérbios que já tinham na ponta da língua. E quem não gosta de cantar músicas românticas? Legião Urbana, Cely Campelo, Sine Calmon...

A construção da concepção do espetáculo aos poucos foi tomando corpo: um grupo de teatro (que não era formado por pessoas cegas), de um “reformatório de menores”, possuía uma rádio pirata que veiculava notícias dos internos, envia- va “recadinhos do amor”, “horóscopos do dia”, propagandas de produtos diver- sos, cantava músicas românticas e encenava o Romeu e Julieta como uma história de “amor proibido”, pelas barreiras da instituição onde residiam.

É importante observar que apesar de estarmos convidando o público a re- fletir sobre o problema do “amor proibido”, o fazíamos por meio de um texto dra- mático clássico, e não por intermédio de um discurso didático, por exemplo. Dessa maneira, entendemos que, como diz Pavis (1999), o sentido e a mensagem nunca são dados diretamente, eles residem na estrutura e na forma, não no dito ideológico. Não se tratava de reproduzir cenas, segundo o molde do teatro tradicional ilusionista, com o objetivo de enfeitiçar os espectadores por meio da verossimi- lhança com a realidade; nem de viver o personagem, representar sutis interioridades psicológicas, suscitando emoções puras no público. A cópia fiel dos acontecimen- tos, ou a simulação da realidade nua e crua, não provocaria o posicionamento crítico que queríamos suscitar no público.

O grupo assumia que estava representando uma peça de teatro e continua- va a representação da peça de maneira condensada, começando pelo suposto fim, mas com direito a recursos explicativos, como o flashback, para chegar ao verdadeiro fim almejado pelo grupo de teatro. A peça terminava como uma utopia – a liberação do namoro numa instituição mista – para que “fique em todos a memória de Romeu e Julieta como uma feliz história”. “Pois é, meus caros ouvintes da rádio pirata...”, diziam os atores no epílogo e finalizavam cantando: “e quem um dia irá dizer que não existe razão, nas coisas feitas com o coração? E quem irá dizer que não existe razão?”29

Essa narrativa condensada sobre a montagem realizada no Instituto de Cegos mostra o entrelaçamento entre brincadeira e seriedade, teatro e recreação,

realidade e utopia, senso e sensibilidade. Uma tragédia virou comédia, mas o obje- tivo foi alcançado: a repercussão teve um retorno, ao menos em termos da discus- são informal dentro do ICB.

Diante do exposto, percebemos uma identidade com as propostas da peça didática de Bertolt Brecht, na apropriação de Steinweg (1992) e Koudela (1991, 1992, 1996), conforme a fundamentação teórica (primeiro capítulo). Independente da identidade, essa teoria possibilitou a análise da própria experiência. A aproxima- ção com o trabalho de Brecht favoreceu o entendimento da nossa própria prática como professor de teatro.30 Percebemos que a teoria explica a prática, foi daí que

ela surgiu, do mesmo lugar para onde vai retornar. Foi importante perceber a influência que o autor exerceu, na prática, pois intuitivamente tomamos como base alguns princípios que foram defendidos tanto por Brecht, como também por um modelo de ensino de teatro que se coloca a partir dos anos 70, preocupada com o prazer e a consciência crítica.

O texto de Shakespeare possibilitou o afloramento de valores complexos. Por meio de uma abordagem estética se promovia a discussão de uma questão política relacionada com a proibição do afeto em internatos mistos. Lidamos com conteúdos artísticos que fizeram brotar outros conteúdos. A arte fez aflorar um desejo de discussão de um assunto “tabu” que envolvia uma responsabilidade do sistema educacional em geral. Neste sentido, o estético orientava uma ação políti- ca no sentido da necessidade de discussão interna sobre a orientação sexual e a proibição do namoro.

O Romeu e Julieta como objeto de investigação sobre o amor proibido per- mitiu a penetração em um assunto melindroso, porque envolvia a sexualidade do adolescente, geralmente pouco trabalhada nas escolas e nos lares em geral. Entre- tanto, o envolvimento com uma questão tão delicada, porém realizada por meio da encenação de um texto universalmente conhecido e aceito socialmente, ter- minou por amenizar o tema, facilitando a sua discussão no âmbito da Instituição e no âmbito social mais amplo. E, ao mexer com valores, atitudes e ações arraigadas no cotidiano, terminou suscitando uma ação por parte dos educadores.

A atitude crítica e o comportamento político surgiram no processo. A proi- bição do namoro é colocada em julgamento por sugestão dos alunos, pois, no entendimento deles, isso impedia a integração e sociabilidade.