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Enredo criado sem tema preestabelecido

Outra proposta desenvolvida de maneira combinada apresentou uma situ- ação inusitada que passamos a relatar. Cada pessoa deveria trazer um objeto que achasse interessante. Em sala, sugerimos que se dividissem em grupos de quatro pessoas para explorar os objetos escolhidos previamente. Em seguida, eles deveri- am escolher um objeto apenas e criar uma cena onde este objeto fosse o centro da situação, o foco da atenção em cena.

Grupo 1: Ronaldo, Dermeval, Mariana e Solange. Objeto escolhido: Corneta.

Cena 1: “Seu buzina”, um Instrutor de um internato de jovens, acordou as pessoas com uma corneta. Os jovens levantaram revoltados.

Cena 2: Os jovens executaram atividades matinais (escovaram os dentes, tomaram café). Quando estavam tomando café, um deles propôs o sumi- ço da corneta.

Cena: Esconderam a corneta de “seu Buzina”, que ficou revoltado na hora de avisar a merenda, quando não encontrou a corneta. Ele de- monstrou (fingiu) enxergar mal, acusou dois jovens (“Cuca” e “Cosmiana”) e teve dificuldade em pegá-los.

Cena 4: “Seu Buzina” achou a corneta e colocou todos ajoelhados no milho.

Cena 5: Finalmente tocou a corneta e todos foram dormir.

O grupo avaliou objetivamente que o problema cênico foi solucionado de maneira satisfatória: o objeto foi realmente o centro da situação do início ao fim. Segundo eles, o personagem representado não existia concretamente no Instituto onde residem. O imaginário, a fantasia do grupo colocou em cena um persona- gem que é tudo o que eles não querem como forma de convívio cotidiano. Na nossa maneira de entender, vivenciar corporalmente esse personagem e reagir a sua atitude, por si só, implicou em um aprendizado social.

Para concretização da improvisação ou da sequência de cenas foi necessá- rio um levantamento de sugestões no grupo, a escolha de uma determinada ideia, a sua exploração de uma maneira crescente, envolvendo o acirramento de um conflito. A cena em si pode ser tomada como um modelo para a experimentação de um personagem associal, contrário aos interesses da maioria. No momento da avaliação da cena tivemos receio de aprofundar o aspecto social que emergiu. Contudo, cada vez mais o texto do Romeu e Julieta aparecia como o mais adequa- do para uma exploração posterior dessa situação social representada, na medida em que fala do autoritarismo das nossas instituições.

Teatro não é aula de sociologia, mas o conteúdo social que aparecia não podia ser abstraído. As situações sociais podiam ser refletidas por meio da repre- sentação teatral. Afinal de contas, foi aberta uma porta de comunicação com o mundo vivido e não precisávamos sequer perguntar se a cena aconteceu de fato ou não.

Ao adotar um papel associal os alunos se envolviam em um faz de conta que se relacionava talvez com situações próximas da realidade de um internato, envol- vendo comportamento de pessoas em relação a outras pessoas. estavam, na ver- dade, ensaiando, brincando com uma situação angustiante e talvez reduzindo a sua angústia, ao representar de modo simbólico e exagerado, uma situação agres- siva. Com isso, estavam abrindo uma nova perspectiva em relação ao ambiente em que viviam uma possibilidade de exploração do seu próprio mundo.

Tratava-se de uma ficção, ou seja, a situação não aconteceu de fato e podia não ser reconhecida no contexto habitual, podia não estar relacionada com obje- tos reais e concretos, mas estava relacionada com ideias que eram construídas na sua subjetividade. Eles reagiam a uma situação de controle que é comum em internatos de jovens e na sua sensibilidade se reportavam e criticavam uma ação comum em adultos que assumem posições de poder. Estavam, enfim, lançando mão de uma situação imaginária, para a representação de uma dimensão do real, o que poderia de alguma forma contribuir para impedir que situações como esta que foi projetada se concretizasse.

Desde o início do semestre os alunos manifestaram interesse na realização de uma peça teatral, o que vinha ao encontro do interesse do professor. Os jogos citados anteriormente contribuíram para a pesquisa de um assunto que agradasse a todos, mas o aquecimento e sensibilização do grupo foram realizados também por intermédio da sugestão verbal do tema. O sentido era verificar o interesse por um assunto que pudesse provocar a vontade pela experimentação.

As propostas de tema sugeridas verbalmente pelos alunos para serem traba- lhados em função de uma apresentação pública, foram:

• Amor proibido • Carência afetiva

• Distância familiar e amorosa • Sexo: sexualidade, assédio sexual • O sonho que se torna realidade

• A sensibilidade: sensível ao problema dos outros • A vida evolutiva ou a evolução da vida

• Sai de baixo (programa televisivo que apresentava situações de uma famí- lia trapalhona)

• Sequestro e drogas

O grupo apresentava uma tendência nas improvisações cênicas que coinci- dia com a maioria das propostas que foram verbalizadas. A questão amorosa, afetivo sexual representa um desejo de todo adolescente. O tema do amor proibido, para eles, estava relacionado com o sonho de namorar e de ficar mais próximo dos familiares, o que era impedido pela condição de internato em que viviam.

Na aula seguinte foi proposta a escolha dos temas “drogas” e “amor proibi- do para ser trabalhado. No aquecimento, após relaxamento e movimentação de partes do corpo, trabalhamos com a criação de personagens tipos, a partir do andar, e foi lançada a proposta de cada grupo trabalhar com o tema da sua prefe- rência. A divisão dos grupos a partir do tema resultou praticamente numa divisão conforme o sexo. O grupo das meninas (com a presença de apenas um menino, Alberto) apresentou a seguinte situação numa Improvisação combinada previa- mente:

Cena 1: Uma família reunida demonstrava forte preconceito social na figura do pai que dizia não querer suas filhas namorando menino pobre; uma filha concorda e a outra não.

Cena 2: Outra família reunida demonstrava preocupação com o filho que estava namorando uma menina rica.

Cena 4: A irmã de Carlos conta ao pai que viu o casal namorando e a confusão se instaura.

Cena 5: A mãe libera a menina, que namora o rapaz mesmo sem o con- sentimento do pai.

A aproximação das ideias do grupo com a obra Romeu e Julieta ficava cada vez mais evidente, uma vez que o tema da peça coincidia com o tema do amor proibido entre os jovens. Observou-se na encenação do grupo dos rapazes que, apesar de tratarem de drogas, sugeria o tema da amizade ou inimizade que a droga pode provocar (os amigos se separaram dos colegas que usaram drogas).

A situação do namoro escondido surgiu antes mesmo da proposta de mon- tagem da peça. É importante observar que os temas foram sugeridos na quarta aula, entretanto a proposta de interpretação do texto Romeu e Julieta, de W. Shakespeare só foi lançada como ideia, na nona aula. A maioria dos alunos sequer conhecia o autor (sugeriram José de Alencar, depois Carlos Drumond e finalmen- te “Shiqispire”). Apenas uma das alunas arriscou uma sinopse da peça:

• É uma história de duas pessoas que se amavam, mas não podiam continu- ar seu relacionamento por causa dos pais. Julieta então corta o pulso. Não! Aí um escorpião mordeu ele (sic). E Julieta ao encontrar ele caído, pensou que estava morto e se matou, cortando os pulsos.

A cena a seguir, criada numa das últimas sessões do semestre, mostrou que os alunos estavam mais organizados e o tema do amor proibido apareceu mais uma vez com clareza, em um dos grupos, sem que tenha sido solicitado na propos- ta de improvisação.

A proposta era de criação de uma situação em família que envolvesse a dualidade de um pai mandão e uma mãe submissa. Um acontecimento combina- do pelo grupo deveria determinar uma reação e consequente mudança de atitu- de da mãe.

A seguir será descrita apenas a cena realizada pelo primeiro grupo (Janaína, Solange, Alberto, Tuca, Luciana e Rafael):

Cena 1: A mãe pede às filhas que arrumem a casa, alertando:

Cena 2: Pai chega e todos vão almoçar. Ele reclama sempre da comida, e a mãe pede desculpa, sempre procurando servi-lo melhor.

Cena 3: Filha conversa com seu irmão revelando que quer namorar, mas tem medo do pai; enquanto isso o pai telefona (com mímica apenas) e depois sai.

Cena 4: O pai chega de carro (faz o som do carro); a filha pede para sair, ele não deixa e ainda bate no filho que pede dinheiro.

Cena 5: A mãe se revolta e toma um tapa no rosto. Ela conta aos filhos. Ele bate na filha também.

Cena 6: Cada vez mais revoltada, a mãe vai conversar com o marido (as filhas fazem muito barulho) e “explode” dizendo que quer acabar o relaci- onamento, ameaçando procurar outro; avisa também que a filha quer namorar e que ela concorda com o namoro; e diz finalmente que não vai fazer mais tarefa alguma dentro de casa.

Cena 7: Filho (com a voz bem grave em tom meio patético) dirigindo-se ao pai:

Você sabe o que é o amor? Minha irmã está amando...

Cena 8: Após muita insistência, a mãe, finalmente, convence o pai a apoi- ar o namoro.

Cena 9: Chega o namorado da garota que é apresentado ao pai (o mes- mo ator faz os dois personagens).

Cena 10: Terminam dizendo em coro:

E assim viveram felizes para sempre.

Essa forma de dizer em coro foi depois aproveitada, como solução para o

Na avaliação do trabalho observamos a relação existente entre a improvisa- ção do grupo e a peça Romeu e Julieta, no que se refere à proibição do namoro. O tema do namoro apareceu de forma mais organizada enfocando a questão da proibição do pai. As cenas aconteceram de maneira progressiva, todos os fatos estavam relacionados com a atitude do pai autoritário, violento, que não dava liberdade aos filhos.

A vontade da filha de namorar, o apoio da mãe, que ameaçava romper o próprio casamento, e o reforço dado pelo filho, terminou convencendo o pai, que permitiu a entrada do namorado. Uma sucessão de fatos foi encadeada numa trama crescente. Na construção dessa estrutura narrativa, criada com a participa- ção de todos, a sequência organizada para mostrar a situação de namoro não se perdeu com outras cenas, existiu, enfim, uma unidade de ação.

O gestual estava presente na utilização do telefone, por exemplo, mas o motor da cena foi a ação e o diálogo. O tema se configurou como um fio condutor que unia todas as cenas. A linearidade da situação – a sequência e aprofundamento do episódio – mostrou que os alunos eram capazes de passar, por meio de uma sequência de cenas, o contexto familiar autoritário que foi questionado. O enten- dimento da linguagem dramática que articulou “episódios, os quais são construídos e definidos a partir de convenções teatrais” (SPOLIN, 1979, p. 12), ficou evidente a partir do momento em que eles narraram uma história e a colocaram em cena na forma de uma sucessão de acontecimentos.

É importante enfatizar a consciência que teve o aluno da existência de uma estrutura dramática, com a divisão da situação em cenas, com uma continuidade ou descontinuidade de ação. Os acontecimentos se passaram no presente diante do espectador, e, de maneira organizada, numa sucessão constante em que um problema é apresentado, uma ação se desenvolveu por um encadeamento da intriga ou sucessão de acontecimentos, que se precipitaram para uma evolução, crise e desenlace.

Desde o primeiro dia de aula, eles já tinham um pouco essa noção da estru- tura dramática, que foi aperfeiçoada ao longo do processo de construção e apre- sentação de cenas e de apreciação e julgamento das mesmas.

Diversos elementos contribuíram para o aprendizado da linguagem teatral: aprender a lidar com a cena (construir e apresentar para uma plateia interna ao próprio grupo), apresentar imagens da sua própria realidade, enfrentar os questionamentos da plateia; e, por outro lado, criticar e argumentar de maneira organizada; questionar elementos da realidade em que vive; enfim, alimentar reci- procamente, corroborando com o aprimoramento do processo.