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CAPÍTULO 1 O PAPEL DAS IDEIAS NA COOPERAÇÃO

1.4. Origens: a ideia de ajuda externa ao desenvolvimento, a consolidação

1.4.5. A criação do PNUD

Nos anos 1960, uma das maiores conquistas do Terceiro Mundo na ONU foi a criação de uma entidade responsável por coordenar suas atividades de desenvolvimento. Em 11 de agosto de 1964, o ECOSOC recomendou, pela resolução E/RES/1020 (XXXVII), a fusão do EPTA e do Fundo Especial das Nações Unidas para o Desenvolvimento Econômico (SUNFED, do inglês Special United Nations Fund for

Economic Development58), de modo a criar uma nova entidade, o Programa das Nações

Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).

Em 22 novembro de 1965, a Assembleia Geral, por meio de sua resolução A/RES/2029 (XX) de fato consolidou a criação do PNUD, que iniciou seus trabalhos em 1 de janeiro de 1966. Com isso, a ONU efetivamente transformou-se em uma organização internacional voltada para a promoção do desenvolvimento, criando o Sistema de Desenvolvimento das Nações Unidas (SDNU), onde o PNUD teria o mandato de ser o coordenador central de todas as atividades, programas e projetos na área de cooperação técnica tradicional, conduzidos tanto pelo Secretariado quanto pelas agências especializadas.

O PNUD tinha como função oferecer financiamento para quatro componentes de cooperação técnica: i) contratação de especialistas nas áreas necessárias para construir projetos de desenvolvimento, com contratos de longo prazo; ii) bolsas de estudo para que funcionários e outros profissionais dos PEDs pudessem receber treinamento no exterior; iii) compra de equipamentos e serviços; iv) contratação de consultores, com contratos de curto prazo, com tarefas específicas dentro de um projeto maior.

Paul Hoffman e David Owen, respectivamente o primeiro Administrador e Vice Administrador do PNUD, cultivaram uma forte cultura organizacional no PNUD, ao escolherem funcionários que compartilhavam seus valores em relação ao desenvolvimento. Os funcionários do programa eram, em sua maioria, “ ‘socialistas não- doutrinários da velha escola’, pessoas profundamente preocupadas com o bem-estar

58 A discussão do SUNFED será feita na parte 3, sobre o financiamento do desenvolvimento na década de

1950. O SUNFED foi criado em 1957, um pequeno fundo com o propósito de financiar projetos e estudos de viabilidade de cooperação técnica, ampliando o escopo de atuação do EPTA.

social e convencidas que o Estado tinha um papel central e positivo” (MURPHY, 2006, p. 75, tradução nossa59).

Esses funcionários carregavam a ideia de planejamento estatal deveria ser o fio condutor dos programas nacionais desenvolvidos pelo PNUD em seus primeiros anos. Tais programas delineavam um planejamento econômico coerente para o país recipiendário e o PNUD deveria conectar as demandas nacionais com as especialidades e as capacidades técnicas disponíveis no exterior.

Outro funcionário que se destacou nos primeiros anos por promover a ideia de planejamento econômico foi o primeiro representante residente do PNUD no Haiti, Arthur Wakefield. Ele definiu dois elementos que deveriam estruturar os programas nacionais, que ficaram conhecidos como “princípios de Wakefield”. O primeiro princípio – “ajudar as pessoas a ajudarem elas mesmas” – visava se opor aos programas top-down e paternalistas de desenvolvimento como aqueles que os Estados Unidos haviam desenvolvido no Haiti de 1914 a 1937. Os programas nacionais deveriam ser construídos e liderados pelos PEDs eles mesmos. O segundo princípio – “evitar publicidade” – se opunha à divulgação dos projetos com tons publicitários. Tanto os doadores, quanto a AGNU e o ECOSOC, tinham a tendência de apresentar os resultados da cooperação técnica como “histórias de sucesso”. Para Wakefield, isso deveria ser evitado, por dois motivos: primeiramente, porque os resultados dos programas nacionais nem sempre eram positivos; e, em segundo lugar, porque se o programa tivesse prosperado, o sucesso deveria ser creditado ao próprio país, e não aos doadores ou à ONU (RUHLMAN, 2015, p. 106).

O Vice Administrador D. Owen incorporou esses princípios ao trabalho regular do PNUD, como uma visão comum de atuação dos programas de assistência técnica. Entretanto, rapidamente os funcionários do PNUD perceberam que, em campo, praticamente nenhum PED apresentava a capacidade de desenvolver um programa nacional, e muito menos mapear quais eram as necessidades e carências que deveriam ser supridas pelos programas do PNUD. Os países recipiendários tinham enorme dificuldade em coordenar todas as atividades de assistência técnica, multilaterais e bilaterais, e, no âmbito do PNUD, poucos conseguiam, por si mesmos, estabelecer as Estimativas de

59 Do original: “ ‘non-doctrinaire socialist(s) of the old school’, people deeply concerned about social

Volume de Recursos (IPFs, do inglês, Indicative Planning Figures60) em relação aos projetos desenvolvidos.

Outro entrave era a discrepância entre as exigências burocráticas e logísticas dos funcionários do PNUD em relação àquilo que esperavam encontrar nos países onde atuavam e aquilo que de fato encontravam na realidade nacional e o que os PEDs eram efetivamente capazes de cumprir. Por exemplo, os projetos exigiam que os governos recipiendários garantissem os salários, a acomodação e o transporte dos funcionários do PNUD, o que requereria uma infraestrutura e instituições que eram inexistentes em campo. Richard Symonds61, funcionário do Quadro de Assistência Técnica da ONU entre

1950-1965, ao relatar sua experiência em Ruanda, afirmou: “as regulações que faziam sentido em Nova York não faziam nenhum sentido em um país tão pobre. O governo deveria prover transporte para nossos especialistas, mas o transporte total à disposição era o Volkswagen presidencial” (SYMONDS, s.d. apud MURPHY, 2006, p. 105, tradução nossa62).

Em virtude do descompasso entre o planejamento realizado pelo PNUD e a viabilidade do projeto em campo, vários erros de execução ocorreram. Nessa década, a assistência ao desenvolvimento seguia o sentido tradicional, das agências especializadas da ONU para os PEDs. A execução era de responsabilidade exclusiva de cada uma das agências, e já se evidenciava uma competição entre elas acerca de quais seriam as maiores provedoras de assistência técnica em um determinado país. A prioridade do PNUD era crescer as atividades, em detrimento da identificação das necessidades dos PEDs ou da flexibilização e adequação dos programas à realidade em campo.

Outra questão era que corpo de especialistas do PNUD era formado por planejadores econômicos, estatísticos e engenheiros, cujas especialidades eram fundamentais para elaborar os projetos de desenvolvimento nos PEDs. Mas esses países demandavam também um outro conjunto de profissionais – especialistas em promoção comercial, empreendedores, especialistas em marketing, gerentes de empresas privadas – que o PNUD não era capaz de prover. A ausência de tais especialistas foi uma decisão

60 O papel das IPFs será discutido na parte 3, sobre o financiamento das atividades de desenvolvimento. 61 Richard Symonds foi um dos primeiros funcionários da ONU. Trabalhou, na Índia, na Administração das

Nações Unidas para Auxílio e Reabilitação (UNRRA – do inglês, United Nations Relief and Rehabilitation Administration), criada em novembro de 1943 para prover auxílio aos refugiados da Segunda Guerra Mundial.

62 Do original: “Regulations which made sense in New York made none in a country as poor as this. The

Government was required to provide transport for our experts, but the total transport at its disposal was the Presidential Volkswagen” (SYMONDS apud MURPHY, 2006, p. 105).

deliberada de Hoffmann e Owen em concentrar o corpo de funcionários internacionais nas carreiras e formações alinhadas à sua própria formação, consolidando uma cultura burocrática específica entre profissionais que compartilhavam uma visão do papel de planejamento e coordenação por parte do PNUD, ao invés de práticas voltadas ao comércio e ao setor privado.

A cultura burocrática do PNUD cultivada por Hoffmann e Owen também resultou em uma postura acrítica em relação à construção de capacidades e especialidades nos PEDs: “nos dias de Hoffmann e Owen, a noção de que a imposição de uma ‘especialidade’ poderia ser parte do problema do subdesenvolvimento, ao invés da parte de sua solução, nunca foi considerada” (MURPHY, 2006, p. 108, tradução nossa63). Isso

levou a uma postura de superioridade dos funcionários em Nova York, que concediam um tratamento condescendente, e até mesmo, em algumas situações, colonial e racista, aos funcionários dos escritórios nacionais na América Latina, na África e na Ásia.

Ao final da década de 1960, Hoffman solicitou um balanço das atividades de assistência ao desenvolvimento conduzidas pelo EPTA, pelo SUNFED e pelo PNUD até então. O estudo, conduzido pelo australiano Robert Jackson64, na época contratado por

Hoffman como consultor do PNUD, foi lançado em 1969, com o título “Um estudo da capacidade do Sistema de Desenvolvimento da ONU”. Conhecido como Relatório Jackson, ou Estudo da Capacidade, o documento trazia severas críticas às limitações da ONU em promover o desenvolvimento dos PEDs.

Além dos problemas de governança oriundos da descentralização do SDNU65,

Jackson apontou que, em uma década, a ONU havia sido incapaz de criar técnicas eficientes para transferir tecnologias, conhecimento e experiência para os PEDs, bem como atrair funcionários capazes de elaborar programas adequados às demandas operacionais dos recipiendários. Sua conclusão foi a seguinte:

Pode-se sentir admiração e simpatia pelos administradores dos sucessivos programas do EPTA, do Fundo Especial e do PNUD, em seus esforços de

63 Do original: “in Owen and Hoffman’s day the notion that the imposition of ‘expertise’ could be part of

the problem of underdevelopment, rather than part of its solution, was never considered” (MURPHY, 2006, p. 108).

64 Jackson atuou no sistema ONU desde sua criação. Entre 1945-1947, foi Vice-Diretor-Geral da UNRRA;

entre 1947-1950, foi assistente de Trygve Lie, o primeiro Secretário-Geral da ONU; e entre 1953-1961, trabalhou no projeto de desenvolvimento de infraestrutura do Rio Volta, em Gana. Começou a trabalhar no PNUD em 1962, quando foi contratado como consultor de Hoffman. Entre 1961 a 1971, quando saiu do PNUD, Jackson havia trabalhado com projetos de desenvolvimento em mais de 60 países.

65 As críticas e recomendações relacionadas à governança discutidas pelo Relatório Jackson serão

superar os inúmeros obstáculos administrativos e processuais apresentados pelos sistemas de desenvolvimento da ONU. Mas nada disso deve mascarar a verdade básica e séria: que, em última análise, os principais perdedores foram os países em desenvolvimento, porque a maquinaria pesada inventada ao longo dos anos só poderia ser mantida à custa da eficiência operacional dos programas de cooperação realizada em seu nome (UNITED NATIONS, 1969, p. 23, tradução nossa66).

O Estudo da Capacidade foi muito mal recebido pelos Administradores do PNUD, que consideraram excessivas e pouco práticas as críticas e recomendações apontadas por Jackson. Mas, da perspectiva dos PEDs, o relatório ofereceu uma base para demandar reformas nos programas de cooperação técnica.

No âmbito das ideias, o Terceiro Mundo questionava o sentido dessa cooperação, que ia das agências para os PEDs. As agências tinham o poder de definir os projetos, construir instituições e capacidades segundo seu próprio conhecimento e visão, que vinham principalmente de funcionários que estudaram e se formaram em PDs, ou que estavam comprometidos com a agenda dos países doadores. O depoimento de R. D. Makkar, funcionário do escritório do EPTA na Índia em 1964, demonstra, da perspectiva do Secretariado, esse problema em relação aos doadores:

Algum Johnny corajoso sempre me ditava, por trás do meu ombro, sobre como escrever a formulação do meu projeto [para que refletisse] a orientação de certos grandes doadores, que queriam que o país se movesse em uma determinada direção, e não a direção que o próprio país gostaria de tomar. Isso privava pessoas como eu ... de certo senso de satisfação, ao não poder dar opiniões e visões honestas sobre essas coisas. Eu estava um pouco sufocado (MAKKAR, 2004 apud MURPHY, 2006, p. 109, tradução nossa67).

As orientações definidas pelos doadores atrelavam a concessão de assistência a certos tipos de vinculação e condicionalidades. Um dos tipos mais comuns de vinculação era a obrigatoriedade da compra ou contratação de bens, serviços ou mão de obra do país doador. Havia, ainda, condicionalidades políticas, como a adoção de regimes políticos e

66 Do original: “One can feel admiration and sympathy for the administrators of the successive programmes

of EPTA, the Special Fund, and UNDP, in their efforts to surmount the endless administrative and procedural hurdles presented by the UN development systems. But none of this should mask the basic, sobering truth: that, in the final analysis, the principal losers were the developing countries, because the cumbersome machinery devised over the years could only be maintained at the expense of the operational efficiency of the programmes of co-operation carried out on their behalf” (UNITED NATIONS, 1969, p. 23).

67 Do original: “Some brave Johnny was always dictating to me from behind my shoulder as to how to write

my project formulation [to reflect] the orientation of certain major donors who wanted the country to move in a particular direction, not the direction the country itself would have liked to go. This deprived people like me... of a certain sense of satisfaction in not being able to give honest opinions, views about these things. I was getting a bit suffocated” (MAKKAR, 2004 apud MURPHY, 2006, p. 109).

econômicos específicos ou o estabelecimento de relações preferenciais no bojo da Guerra Fria.

Rapidamente, a ideia de dádiva predominante nos anos 1950-1960 foi substituída por uma relação de tensão entre doadores e recipiendários. Ao contrário do otimismo da década anterior, de que a ONU conseguiria promover o desenvolvimento dos PEDs por meio da assistência técnica financiada pelos PDs, os anos 1970 foram marcados pelos antagonismos entre os países ricos e industrializados – o Norte – e os países pobres e em desenvolvimento do Terceiro Mundo – o Sul. Nesse contexto, emergem as primeiras iniciativas de institucionalização da cooperação entre os PEDs, como será visto no capítulo seguinte.

CAPÍTULO 2 – A EMERGÊNCIA E CONSOLIDAÇÃO DA IDEIA