• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 1 O PAPEL DAS IDEIAS NA COOPERAÇÃO

1.4. Origens: a ideia de ajuda externa ao desenvolvimento, a consolidação

1.4.3. O Espírito de Bandung

Os anos 1950 consolidam a divisão Norte-Sul com a realização da Conferência Asiática-Africana, de 18 a 24 de abril de 1955. Conhecida como Conferência de Bandung, trata-se do marco histórico de surgimento do Sul Global, por ter sido a primeira conferência internacional que reuniu os países recém-independentes sem a presença de uma grande potência ou ex-metrópole, como os Estados europeus, os Estados Unidos e a

40 Do original: “Everything, it seemed, was improvised that day in July 1952 when I first began to work for

the UN Technical Assistance Board in Manila. The office was housed in a disused surgery in the grounds of the Philippine General Hospital, a dilapidated building with a leaking roof. In the rainy season every room was festooned with tin cans and any other receptacles that could be found to catch the drips... Yet there was a tremendous feeling of enthusiasm and pioneering at that time” (ANSTEE, 1985, p. 20).

União Soviética. No âmbito da cooperação internacional para o desenvolvimento, a conferência delineou o primeiro conceito de CSS e definiu uma posição política comum de negociação na ONU em relação aos programas de assistência técnica.

Organizado por Burma (futuro Mianmar), Ceilão (futuro Sri Lanka), Índia, Indonésia e Paquistão, o encontro reuniu 29 países africanos e asiáticos, que abrigavam cerca de dois terços da população mundial: além dos organizadores, participaram Afeganistão, Arábia Saudita, Camboja, China, Costa do Ouro (futura Gana), Egito, Etiópia, Filipinas, Iraque, Irã, Japão, Jordânia, Laos, Líbano, Libéria, Líbia, Nepal, Síria, Sudão, Tailândia, Turquia, Vietnã do Norte, Vietnã do Sul e Iêmen.

O principal objetivo da Conferência era o de reunir esses novos países para que eles pudessem delinear, no campo internacional, um posicionamento comum em diferentes áreas de cooperação. Essa articulação era considerada necessária para lidar com seus problemas domésticos e globais, mas isso exigiria encontrar pontos comuns diante da grande diversidade dos países reunidos. Desde as primeiras iniciativas de cooperação entre os PEDs, o desafio sempre foi encontrar unidade diante da enorme diversidade e assimetria entre eles. Esse foi o ponto central do discurso do então presidente da Indonésia, Ahmed Sukarno, na abertura da Conferência:

Sim, há diversidade entre nós. Quem nega isso? Pequenas e grandes nações aqui representadas, com povos que professam quase todas as religiões sob o sol – Budismo, Islamismo, Cristianismo, Confucionismo, Hinduísmo, Jainaísmo, Sikhismo, Zoroastrismo, Xintoísmo e outros. Quase todas as fés políticas se encontram aqui – democracia, monarquia, teocracia, com inúmeras variantes. E praticamente todas as doutrinas econômicas têm seus representantes nessa sala – marhaenismo, socialismo, capitalismo, comunismo, em todas suas múltiplas variações e combinações. (...)

Mas que mal há na diversidade, quando há unidade no desejo? Essa conferência não é para se opor uns aos outros, é uma conferência de fraternidade. (...)

Todos nós, estou certo disso, estamos unidos por coisas mais importantes do que aquelas que superficialmente nos dividem. Estamos unidos, por exemplo, por um ódio comum ao colonialismo, em qualquer forma que ele possa aparecer. Nós estamos unidos por um ódio comum ao racismo. E estamos unidos por uma determinação comum de preservar e estabilizar a paz mundial. (...)

Relativamente falando, todos nós reunidos aqui hoje somos vizinhos. Quase todos nós temos laços de experiência comum, a experiência do colonialismo. Muitos de nós, as chamadas nações subdesenvolvidas, temos problemas econômicos mais ou menos semelhantes, de modo que cada um pode aproveitar da experiência e da ajuda uns dos outros. E eu acredito que posso dizer que todos nós possuímos os ideais de independência e liberdade

nacionais. Sim, temos muito em comum. Mas ainda sabemos muito pouco uns dos outros. (...) (SUKARNO, 1955, tradução nossa41).

A solidariedade entre os países participantes foi a principal ideia gestada pela conferência. Essa ideia era entendida não apenas como uma manifestação do passado histórico colonial e dos problemas econômicos semelhantes, mas também como a demanda por independência política, pelo direito à uma inserção internacional autônoma dos interesses estrangeiros e pela defesa da solução pacífica dos conflitos.

Nesse sentido, ficou conhecida como Espírito de Bandung a ideia de que “o mundo colonizado agora emergiu para clamar seu espaço nos assuntos mundiais (...) o espírito de Bandung foi a recusa tanto da subordinação econômica quanto da supressão cultural – as duas maiores políticas do imperialismo. A audácia de Bandung produziu sua própria imagem” (PRASHAD, 2007, pp. 45-46).

O Comunicado Final da Conferência Asiática-Africana ficou conhecido pelos seus Dez Princípios42, mas o documento é muito mais amplo, tendo delineado as primeiras

ideias de cooperação internacional para o desenvolvimento entre os PEDs, isto é, de CSS.

41 Do original: “Yes, there is diversity among us. Who denies it? Small and great nations are represented

here, with people professing almost every religion under the sun – Buddhism, Islam, Christianity, Confucianism, Hinduism, Jainism, Sikhism, Zoroastrianism, Shintoism, and others. Almost every political faith we encounter here - Democracy, Monarchism, Theocracy, with innumerable variants. And practically every economic doctrine has its representative in this hall - Marhaenism, Socialism, Capitalism, Communism, in all their manifold variations and combinations. (…) But what harm is in diversity, when there is unity in desire? This Conference is not to oppose each other, it is a conference of brotherhood. (…) All of us, I am certain, are united by more important things than those which superficially divide us. We are united, for instance, by a common detestation of colonialism in whatever form it appears. We are united by a common detestation of racialism. And we are united by a common determination to preserve and stabilize peace in the world. (…) Relatively speaking, all of us gathered here today are neighbours. Almost all of us have ties of common experience, the experience of colonialism. Many of us, the so-called "underdeveloped" nations, have more or less similar economic problems, so that each can profit from the others' experience and help. And I think I may say that we all hold dear the ideals of national independence and freedom. Yes, we have so much in common. And yet we know so little of each other” (SUKARNO, 1955).

42 Os Dez Princípios de Bandung são: “1. Respeito aos direitos humanos fundamentais e aos propósitos e

princípios da Carta das Nações Unidas. 2. Respeito à soberania e integridade territorial de todas as nações. 3. Reconhecimento da igualdade de todas as raças e da igualdade de todas as nações, grandes e pequenas. 4. Abstenção de intervenção ou interferência nos assuntos internos de outro país. 5. Respeitar o direito de cada nação de se defender individual ou coletivamente, de acordo com a Carta das Nações Unidas. 6. (a) Abstenção do uso de acordos de defesa coletiva para atender aos interesses particulares de qualquer uma das grandes potências. (b) Abstenção, por qualquer país, de exercer pressões em outros países. 7. Abstenção de atos ou ameaças de agressão ou do uso da força contra a integridade territorial ou independência política de qualquer país. 8. Solução de todas as disputas internacionais por meios pacíficos, tais como negociação, conciliação, arbitragem ou resolução judicial, bem como outros meios pacíficos de escolha das partes, em conformidade com a Carta das Nações Unidas. 9. Promoção de interesses e cooperação mútuos. 10. Respeito pela justiça e pelas obrigações internacionais” (ASIAN-AFRICAN CONFERENCE OF BANDUNG, 1955, tradução nossa).

Em primeiro lugar, o princípio de autodeterminação definido no comunicado colocou que todos os países tinham o direito e a liberdade de escolher seus sistemas econômicos e seu modelo de desenvolvimento, e isso deveria também orientar a concepção dos projetos e programas de assistência técnica realizada pelos doadores e pela ONU.

Em segundo lugar, o Comunicado expressou a ideia de que a cooperação entre os PEDs era necessária para garantir sua autonomia em relação à pressão imperialista das antigas metrópoles. Era evidente para os países asiáticos e africanos que a independência formal não se traduziria automaticamente em independência econômica, e essa apenas seria possível com a cooperação entre os PEDs. Tanto que os dois primeiros parágrafos do Comunicado tratam justamente da cooperação econômica e técnica entre PEDs, e seu conteúdo é considerado como a primeira definição de CSS formalmente publicada em um documento internacional:

1. A Conferência Asiática-Africana reconheceu a urgência de promover o desenvolvimento econômico na região asiática-africana. Havia um desejo geral de cooperação econômica entre os países participantes com base no interesse mútuo e no respeito pela soberania nacional. (...) 2. Os países participantes concordaram em prestar assistência técnica mútua, na medida do possível, sob a forma de: especialistas, aprendizes, projetos-piloto e equipamentos para demonstração; intercâmbio de conhecimento e estabelecimento de institutos de treinamento e pesquisa nacionais e, sempre que possível, regionais, para a divulgação de conhecimentos técnicos e habilidades, em cooperação com as agências internacionais existentes (ASIAN-AFRICAN CONFERENCE OF BANDUNG, 1955, tradução nossa43).

A cooperação entre os PEDs estaria calcada nos princípios de respeito à soberania e de interesse mútuo, e esses países acreditavam que era especialmente importante promover o intercâmbio de conhecimento e especialistas entre esses países. A cooperação cultural complementaria esses esforços, ao aproximar as visões de mundo dos países africanos e asiáticos, por meio da cooperação entre instituições as técnicas, de ensino e de pesquisa nacionais que se formavam naquele momento. O Comunicado salientou que a cooperação entre os PEDs deveria ser direcionada para o intercâmbio de informações e

43 Do original: “1. The Asian-African Conference recognised the urgency of promoting economic

development in the Asian-African region. There was general desire for economic co-operation among the participating countries on the basis of mutual interest and respect for national sovereignty. (...) 2. The participating countries agreed to provide technical assistance to one another, to the maximum extent practicable, in the form of: experts, trainees, pilot projects and equipment for demonstration purposes; exchange of know-how and establishment of national, and where possible, regional training and research institutes for imparting technical knowledge and skills in co-operation with the existing international agencies” (ASIAN-AFRICAN CONFERENCE OF BANDUNG, 1955).

a aquisição de conhecimento de outros países semelhantes, elementos que serão fundamentais para a consolidação da CSS.

Em terceiro lugar, a Conferência Asiática-Africana definiu que a Primeira ONU seria o espaço institucional de atuação dos PEDs. Como expressou o então Primeiro- Ministro indiano e um dos líderes do movimento terceiro-mundista, Jawaharlal Nehru: “Nós acreditamos que, a partir de Bandung, nossa grande organização, a ONU, derivou sua força. Isso significa, por sua vez, que a Ásia e a África devem desempenhar um papel crescente na condução e no destino da organização mundial” (NEHRU, 1961, p. 279 apud PRASHAD, 2009, p. 41, tradução nossa44).

Os PEDs escolheram a ONU como o fórum legitimo para discutir suas demandas em relação aos assuntos de desenvolvimento por três razões. Primeiramente, porque a Carta da ONU legitimava seus pleitos, ao reconhecer a obrigação dos Estados em garantir o desenvolvimento econômico para todos. Depois, porque os PEDs tinham maior influência no processo de decisão da AGNU, devido ao princípio de um país-um voto (e não com base em cotas, como é o caso do FMI e do Banco Mundial). E porque o trabalho intelectual das agências e programas da ONU na área do desenvolvimento incluía recomendações políticas que levavam em consideração as específicas condições históricas e econômicas dos PEDs (MURPHY, 1983, p. 62).

Esses países passariam a atuar na ONU sob a alcunha de Terceiro Mundo, um termo simbólico que buscava expressar as demandas dos PEDs no contexto da Guerra Fria e de pós-descolonização. A expressão Terceiro Mundo foi cunhada pelo economista Alfred Sauvy, em um artigo à revista O Observador, em 1952, fazendo um paralelo ao Terceiro Estado francês, que consistia em um grupo heterogêneo, excluído tanto do clero quanto da nobreza, e, portanto, assim como os PEDs, apartado dos principais canais políticos e econômicos (SAUVY, 1952).

A partir da Conferência de Bandung, a expressão Terceiro Mundo ganhou um duplo significado. Expressava, primeiramente, uma lógica geopolítica diferente da Guerra Fria, que era Leste-Oeste: tratava-se da divisão Norte x Sul. O Terceiro Mundo buscava se desvencilhar da dinâmica política e econômica do Primeiro Mundo, formado pelo Ocidente (basicamente os Estados Unidos e a Europa Ocidental, enquadrados no bloco capitalista e protegidos pelo sistema de segurança coletiva da Organização do Tratado do

44 Do original: “We believe that from Bandung our great organization, the United Nations, has derived its

strength. This means in turn that Asia and Africa must play an increasing role in the conduct and destiny of the world organization” (NEHRU, 1961, p. 279 apud PRASHAD, 2009, p. 41).

Atlântico Norte – OTAN); e da dinâmica política e econômica do Segundo Mundo, formado pelas Repúblicas Soviéticas.

Em segundo lugar, o termo Terceiro Mundo era mais do que uma posição geográfica. Era o projeto político de um conjunto de países que compartilhava de uma situação histórica e econômica e social comuns e que se uniram para buscar uma inserção internacional independente da intervenção externa. Nas palavras de Prashad (2007, pp. xviii-xix), tradução nossa45): “o projeto do Terceiro Mundo (a ideologia e as instituições)

permitiu que os fracos pudessem manter um diálogo com os poderosos, e tentou responsabilizá-los por sua situação”.

Obviamente, a reação dos Estados Unidos e da Europa Ocidental ao Terceiro Mundo e à Conferência de Bandung foi hostil, negando aos países africanos e asiáticos uma posição de neutralidade na Guerra Fria e buscando medidas mais efetivas para ampliar a dependência desses países para com suas economias, fornecendo auxílio técnico e econômico46. Ao mesmo tempo, a emergência do Terceiro Mundo colocou novas

pressões sobre a ONU, trazendo para o centro de seus trabalhos de assistência técnica o embate Norte-Sul que o então Secretário-Geral Dag Hammarskjöld havia se esforçado em neutralizar.