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CAPÍTULO 1 O PAPEL DAS IDEIAS NA COOPERAÇÃO

1.3. A ONU como um ator intelectual

A separação entre a Primeira e a Segunda ONUs facilita a compreensão da complexidade de relações e de mandatos da ONU, mas é importante considerar que, na prática, elas se relacionam e se sobrepõem. Juntas, elas formam a ONU como uma única organização, entendida como um verdadeiro ator intelectual.

Para Weiss e Carayannis (2001, p. 25, tradução nossa19), as ideias são “o mais

importante legado da ONU para a política e o desenvolvimento econômico e social”. Por isso, a organização destaca-se como um verdadeiro ator intelectual, ao criar e difundir ideias e valores capazes de alterar os interesses e os propósitos dos diferentes atores:

A ONU não tem grande poder material com o qual ela pode coagir ou induzir os Estados, mas, à medida que tem sido um lugar para a criação e disseminação de novas ideias e valores, ela pode ter efeitos significativos no mundo, ao alterar os propósitos pelos quais o poder material é exercido por outros atores. (...) Essa abordagem utilmente chama a atenção para as formas nas quais a ONU pode ser um agente criador da mudança do mundo. Aqui, os mecanismos de mudança são: ideias, normas e valores; e a miríade de atores, incluindo organizações mundiais, que usam esses mecanismos para criar novos atores, interesses e tarefas. O uso criativo, estratégico e, às vezes, acidental, de enquadramento, acusações e debate, por parte das organizações internacionais, demonstra que é possível transformar crenças e percepções de interesse, criar novos atores e propagar novas formas de comportamento (BARNETT; FINNEMORE, 2008, pp. 49-50, tradução nossa20).

As duas ONUs trabalham conjuntamente para produzir três tipos de ideias: positivas, normativas e causais (JOLLY et al., 2009, p. 38). As ideias positivas são provenientes de evidências empíricas e que podem ser verificadas e contestadas.

19 Do original: “(...) the most important legacy of the United Nations (UN) for economic and social policy

and development” (WEISS; CARAYANNIS, 2001, p. 25).

20 Do original: “The UN has not had great material power with which it can coerce or induce states, but to

the extent that the UN has been a locus for the creation and dissemination of new ideas and values it can have significant effects in the world by changing the purposes to which material power is put by others. (...)This approach usefully draws our attention to the ways in which the UN can be a creative agent of change in the world. The mechanisms of change here are ideas, norms, and values, and the myriad actors, including the world organization, who use them to create new actors, interests, and tasks. Creative, strategic, and sometimes accidental uses of framing, shaming, and debating by international organizations have been shown to transform beliefs and perceptions of interest, create new actors, and propagate new norms of behavior” (BARNNET; FINNEMORE, 2008, pp. 49-50).

Envolvem os dados e as estatísticas levantados pela Primeira ONU e processados e analisadas pela Segunda ONU. Por exemplo, o fato dos países do CAD-OCDE terem gasto 0,3% de seu PIB em AOD no ano de 2015 é uma ideia positiva (ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND DEVELOPMENT, 2016 b).

As ideias normativas são crenças sobre como a ONU deveria atuar. A meta estabelecida para que os países do CAD-OCDE gastem 0,7% do PIB em AOD é uma ideia normativa a respeito de qual seria a alocação mais justa da assistência externa, por exemplo. Já as ideais causais são noções operacionais. Por exemplo, o cálculo de que 0,5% do PIB em AOD é necessário para apoiar a implementação dos ODMs envolve uma ideia causal, pois trata-se de uma ideia específica, mas que não chega a consistir em uma teoria.

O debate, a formulação, a disseminação e a institucionalização das ideias na ONU nunca ocorrem de forma linear. Trata-se de um processo complexo de debate e negociação, que se desdobra de forma não-sistemática entre Estados-membros e funcionários civis internacionais. Nesse processo, a ONU assume, coletivamente, oito papeis ideacionais:

i) Fonte (Fount): é uma fonte de geração e definição de novas ideias; ii) Fonte (Font): dá legitimidade internacional às ideias;

iii) Fórum (Forum): um papel de encontro e debate, onde os diferentes atores podem coletivamente discutir e negociar assuntos;

iv) Canalizador (Funnel): canaliza as ideias por meio de ações operacionais, além de testar e implementar novas ideias nos níveis nacional e internacional;

v) Fanfarra (Fanfarre): promove a adoção das novas ideias por meio de normas e políticas;

vi) Seguimento (Follow-up): monitora e avalia o progresso da implementação das ideias;

vii) Financiamento (Funding): gera recursos para concretizar a adoção de normas e políticas baseadas em novas ideias;

viii) Funeral (Funeral): age para enterrar ideias que sejam inconvenientes ou controversas (ANSTEE21 apud WEISS et al., 2009 b, p. 2).

21 Margaret Joan Anstee foi a primeira mulher a ocupar o cargo de Vice-Secretária-Geral da ONU, em 1987.

As ideias geradas pela ONU impactam e exercem influência internacional de quatro maneiras (JOLLY et al., 2009, p. 42): geram mudanças em relação à percepção e à linguagem por meio das quais os problemas processados; permitem a definição de agendas que orientam estrategicamente a ação da ONU; alteram a percepção dos interesses das diferentes coalizões em relação à resistência ou não às mudanças, e, dessa maneira, possibilitam alterações no equilíbrio de forças das negociações; e conduzem o processo de criação das instituições, que são responsáveis por difundir as ideias e se tornam o lócus de seu monitoramento e avaliação.

Esse impacto demonstra a capacidade da ONU em ser uma organização que aprende (learning organization), conceito definido por Haas (1991, p. 4) para demonstrar como as organizações mudam com a emergência de novas ideias e se transformam por meio dessa aprendizagem. Na área do desenvolvimento, fica clara a capacidade da ONU em reexaminar e alterar o quadro normativo e a ação em campo diante dos novos conhecimentos produzidos ao longo da segunda metade do século XX, a partir da forma como Estados-membros e funcionários civis internacionais mobilizaram esses conhecimentos na dinâmica do processo de tomada de decisão.

De posse desses conceitos relacionados ao papel das ideias na ONU, a análise passará para o campo da cooperação internacional para o desenvolvimento propriamente dito, apresentando as origens da ideia de CSS e como ela foi sendo gestada no interior do SDNU.

1.4. Origens: a ideia de ajuda externa ao desenvolvimento, a consolidação do