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As crianças: atores/autores sociais

INFÂNCIAS, CRIANÇAS E CULTURAS INFANTIS: ALGUMAS INTERLOCUÇÕES

3.1. AS CONCEPÇÕES DE INFÂNCIA: O SER CRIANÇA

3.1.1 As crianças: atores/autores sociais

Reconhecer a criança como ator social significa desconstruir uma série de concepções teóricas, formuladas ao longo do tempo, cuja visão central difere dessa perspectiva. Também é entender que a criança interage com a cultura adulta e, a partir dela, ou, talvez, apesar dela, constrói sua própria cultura. Dessa forma, assumimos como ponto de partida as ideias de Coll Delgado e Mülller (2006), ao afirmarem que

[…] a palavra ator tem sentido de ação e não foi tão simples nos últimos tempos perceber que as crianças não somente reproduzem regras, valores, hábitos e comportamentos do mundo adulto, mas principalmente criam e recriam as realidades e dão outros sentidos ao mundo. (p. 9)

Isto significa compreender que as crianças participam coletivamente da sociedade e dela são sujeitos ativos (CORSARO, 2011). Ao trazer essa reflexão, reconhecemos, antes de tudo, que mais do que um conceito criado, pensar nessa perspectiva é entender que as crianças se tornam “sujeitos de sua própria socialização, uma percepção muito diferente daquela que por

séculos foi veiculada, e através da qual a criança era concebida apenas como receptora da cultura ou dos processos de socialização propostos pelos adultos.” (SHERER, 2009, p. 2).

Ao assentirmos a concepção das crianças enquanto atores sociais, estamos reconhecendo que elas estão em constante interação entre si, com os adultos, com as instituições, assim como estão buscando formas de participações no mundo social. E nessa participação aprendem e questionam regras, constroem visões de mundo. Conforme afirma Kuhlmann Jr. (2010), elas “[...] buscam essa participação, apropriam-se de valores e comportamentos próprios do seu tempo e lugar, porque as relações sociais são parte integrante de suas vidas, de seu desenvolvimento.” (p. 30).

Nesta concepção, as infâncias se encontram na “mesma condição das demais categorias sociais, e as crianças não seriam definidas como seres que um dia ‘virão a ser’ ” (GOMES, 2015, p. 126). Ao considerar essa noção, estamos, também, conforme afirma Gomes (2015), articulando a função social da infância, as interdependências que as crianças estabelecem com seus pares, com os jovens e com os adultos nas diferentes instâncias de socialização e, ainda, as interferências de suas atuações nos espaços e tempos sociais dos quais participam.

Certamente, reconhecemos que cada grupo etário possui suas particularidades nos processos de participação social, e que as crianças têm suas singularidades em sua natureza física, psicológica e social. No caso da infância, também admitimos que existe uma menor demanda de suas funções sociais, especialmente, se considerarmos, por exemplo, quanto à questão política, o que significa a atuação menos expressiva das crianças em relação aos demais grupos etários. Contudo, pensando na sua função social, essa prerrogativa não “exclui e tampouco impede a atuação, participação e influências da infância como das crianças na ordem social.” (GOMES, 2015, p. 127). Isto é, reconhecemos que as crianças tomam parte das relações sociais, e tal envolvimento “[...] não é exclusivamente um processo psicológico, mas, também, social, político, cultural e histórico.” (KUHLMANN JR., 2010, p. 30).

Nesse sentido, reforçamos a ideia de que existe a ação/atuação das crianças na sociedade nesse momento vivido por elas, pois a participação delas no futuro, quando lá chegarem, não será mais enquanto crianças, mas sim como adultos. Além disso, conforme afirma Gomes (2015), não podemos jamais esquecer que “essa participação e atuação significa socializar-se, ou seja, é a criança que articula sua socialização a partir das relações que estabelece com a comunidade da qual participa.” (p. 131).

118 É nesse sentido que, ao tratar as crianças como atores sociais, os sociólogos da infância têm argumentado que elas estão em sociedade, sendo, desse modo, produtoras da mesma, uma vez que, se a sociedade é constantemente produzida, ela não poderá sê-lo senão pelos sujeitos que a constituem. As crianças, nesse contexto, interagem com as pessoas, com as instituições, reagem frente aos adultos e buscam participar do mundo social; contudo, se antes elas eram atores no sentido de atuar em um papel, agora elas o são no sentido de “[…] atuar na sociedade recriando-a a todo momento. São atores não para serem intérpretes de um papel que não criaram, mas por criarem seus papéis enquanto vivem em sociedade.” (COHN, 2009, p. 20–21).

Na perspectiva de elas serem criadoras de seus papéis sociais, as reconhecemos não somente como ator social, mas, também, entendemos que as crianças são ao mesmo tempo ator/autor sociais (MACEDO, 2013). Por outra forma, o ator/autor criança é “um ser que pensa e deseja, que altera-se e autoriza-se em meio às possibilidades e limites da instituída e instituinte conviviabilidade social, é um sujeito contextualizado, portanto está inserido numa classe social, numa família, numa cultura.” (MACEDO, 2013, p. 121). Como um sujeito relacional, o ser criança se constitui como autor social, levando em conta todas as possibilidades que imaginemos, até porque ela se forma enquanto sujeito que participa da sociedade, pensa e elabora suas próprias ideias sobre o mundo adulto, revelando necessidades, interesses, desejos e conhecimentos. Nesse sentido, não podemos deixar de considerar que as ações ou funções sociais das crianças estão fortemente articuladas com seu universo infantil, assim como com a cultura da qual participam. Assim, as barreiras impostas pelas determinações sociais são revisadas, transpostas ou vistas pelas crianças em correlação com seu espaço social.

O nosso reconhecimento de que as crianças também se constituem como autores sociais perpassa a ideia de que autoria está presente nas suas ações, funções e práticas sociais e culturais. Com isso, reforçamos que ela é um sujeito ativo, com quem se pode dialogar, capaz de criar, questionar, investigar e construir, de interpretar criticamente o mundo em que vive. No desenvolvimento da convivialidade social, uma das ações fortemente articulada com o universo infantil, e que demarca a autoria da criança, principalmente, na constituição das culturas infantis, é o ato de brincar. Esta ação se configura ao mesmo tempo como produto e prática cultural, e como “forma de ação que a criança cria e transforma significados sobre o mundo” (BORBA, 2007, p. 39).

Constituindo-se um saber e um conjunto de ações e práticas partilhadas pela criança, entendemos que a sua autoria está estreitamente associada à sua formação como sujeitos culturais e à constituição de culturas em espaços e tempos nos quais interage com seus pares. Nessa interação, a brincadeira é um lugar de construção da cultura, assim como um suporte de sociabilidade. É importante demarcar que, quando trazemos para discussão essa perspectiva das crianças enquanto ator/autores sociais, assinalamos que as crianças se constituem como agentes de sua experiência social, organizando, em muitos momentos, com autonomia, as suas ações e as interações, elaborando planos e formas de ações conjuntas, criando regras e convivência social e de participação, especialmente nas suas práticas de brincadeiras ou nas suas atividades diárias. Borba (2007) declara que no processo do brincar as crianças “instituem coletivamente uma ordem social que rege as relações entre pares e se afirmam como autoras de suas práticas sociais e culturais” (p. 41)

Colaborando com essa discussão, autores, como Qvortrup (2010), trazem outro elemento para reflexão, que é a dimensão estrutural da infância, com história e lugar dentro da pluridimensionalidade da sociedade. Alberto Silva (2010, p. 98–100), em sua pesquisa de doutorado, cita algumas propostas ou teses desenvolvidas por Qvortrup (2001): a primeira tese relaciona-se com o argumento de que a infância constitui uma categoria particular e

distinta da estrutura social de qualquer sociedade, definível, não necessariamente pelas

características particulares de cada criança, nem por sua idade, mas sim por outros aspectos de sua presença e nas atribuições diárias que socialmente lhes são destinadas, diferindo, de certa forma, daquelas desenvolvidas por outros grupos etários. Por exemplo, a efetiva institucionalização das crianças, com particular e predominante presença da escola, e a sua condição de menoridade perante aos adultos constituem definições socialmente determinadas. Na segunda tese, Qvortrup (2010) defende que a infância não é, do ponto de vista

sociológico, uma fase transitória, mas carrega uma categorial social permanente, visto que

existe enquanto um espaço social para receber qualquer criança e para incluí-la por todo o período de sua infância. Para o autor, quando a criança crescer e se tornar adulto, a sua infância terá chegado ao fim, mas enquanto categoria a infância não desaparece, ao contrário, continua a existir para receber novos grupos de crianças.

A ideia desenvolvida por Qvortrup (2010) na terceira tese é exatamente a da infância

enquanto categoria histórica e intercultural. O que se percebe é que a criança, na sua

120 Silva (2010), trouxe a impossibilidade de olhar a infância e as suas crianças como locus onde se movimentam atores e construtores sociais, e isto, naturalmente, provocou um impedimento de se estudar e conhecer a variabilidade histórica da infância, para além de, também, ter potencializado a separação da criança da sociedade em que vivia. Outra tese defendida pelo autor é que a infância está, em princípio, exposta às mesmas forças que atingem os adultos. Nesse sentido, entende-se que as crianças integram um mesmo mundo sobre o qual qualquer mudança que emerge da ação política, econômica e social atinge o grupo societário no seu todo.

Portanto, ao tomarmos como parâmetro essas ideias postas, em síntese, para nossa discussão, salientamos que a infância, ou melhor, as infâncias são compreendidas neste estudo como: a) uma construção social, portanto, vista como fenômeno diferente da imaturidade biológica, não sendo mais um elemento natural ou universal dos grupos humanos, mas se constituindo como um componente específico, tanto estrutural quanto cultural, de um grande número de sociedades (JAMES; PROUT, 1990 apud SIROTA, 2001, p. 19); b) uma variável

da análise social, devendo ser considerada em pleno sentido, não podendo ser, assim pensada

de forma isolada das outras variáveis, tais como classe social, gênero ou pertencimento étnico (PINTO, 1997). Articulando essas duas primeiras compreensões, as infâncias passam, também, a ser entendidas como c) uma categoria estrutural da sociedade (QVORTRUP, 2010), ou seja, apesar de ser passageira para cada sujeito, para a sociedade como um todo ela é uma categoria que não desaparece, isto é, sempre há infância, pois sempre há crianças.