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AS INFÂNCIAS NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO

INFÂNCIAS, CRIANÇAS E CULTURAS INFANTIS: ALGUMAS INTERLOCUÇÕES

3.2 AS INFÂNCIAS NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO

As discussões apresentadas até aqui, demonstrando o quanto tal noção veio se transformando ao longo do tempo, de acordo com a teoria analisada, deixam claro que a infância se constituiu como construção social e histórica, considerando, inclusive, como cada vez mais preponderante, a participação da criança nessa construção. É exatamente o entendimento de que a concepção de infância alterou-se e continuará se alterando com o passar do tempo que nos leva, mais uma vez, a destacar que, direta ou indiretamente, quaisquer acontecimentos e/ou mudanças ocorridos na sociedade chegam até as nossas crianças, transformando-as e sendo transformados por ela.

Nesse sentido, ressaltamos que, hoje, vivemos em uma sociedade em que diversas mudanças no nosso cotidiano ocorrem, diariamente, em um ritmo cada vez mais frenético. Estamos vivenciando – adultos e, também, crianças – uma nova forma de organização social e econômica, que vem gerando diferentes maneiras de nos relacionarmos com os outros e com o mundo a nossa volta. Não podemos negar que essas mudanças trazem incertezas, inseguranças e, em algumas situações, complexas contradições para a sociedade e, ao mesmo tempo, para os sujeitos contemporâneos.

Bauman (2001) destaca que a sociedade atual está em intensa transformação e denomina essa nova ordem social que vem se configurando de “modernidade líquida”, em contraposição à sociedade moderna dos séculos XVIII e XIX, o qual nomeia de “modernidade sólida”. Para o autor, no contexto contemporâneo, vivemos um estado de liquidez, em que nossas relações sociais e econômicas vêm se modificando cada vez mais por processos flexíveis e fluidos.

Ao utilizar a expressão “líquida”, Bauman (2001) faz uma analogia entre os aspectos deste estado físico da matéria e as particularidades da sociedade contemporânea. Ele associa a instabilidade do estado líquido dos fluidos às inseguranças e complexidades que encontramos nas atuais relações sociais. Ainda afirma que vivemos uma contínua e irrecuperável mudança na sociedade, assim, diferentemente da modernidade sólida – que fornecia e prometia a estabilidade, a certeza e a durabilidade –, a sociedade atual sofre transformações (p. 8). Assim, a modernidade “liquida” se caracteriza pelas incertezas, instabilidades e pelo instantâneo, na qual tudo pode escoar pelas nossas mãos a qualquer momento.

[…] os fluidos não se atêm muito a qualquer forma e estão constantemente prontos a mudá-la; assim para eles, o que conta é o tempo, mais do que o espaço que lhes toca ocupar; o espaço que, afinal, preenchem apenas “por um momento”. […] Os fluidos se movem facilmente. Eles “fluem”, “escorrem”, “esvaem-se”, “respigam”, “transbordam”, “vazam”, “inundam”, “borrifam”, “pingam”, são “infiltrados”, “destilados”, diferentemente dos sólidos, não são facilmente contidos – contornam certos obstáculos, dissolvem outros e invadem ou inundam seu caminho. (BAUMAN, 2001, p. 08)

Na atualidade, podemos associar as inconstâncias, momentaneidade e instabilidades da sociedade contemporânea às condições humanas, reconhecendo que as crianças também integram essa modernidade líquida, são influenciadas por ela e, da mesma forma, influenciam a constituição desse modo de vida. Sabemos que Bauman (2001) não se dedica em seus escritos a discutir as infâncias e as crianças, mas suas reflexões nos apontam alguns indícios para compreendê-las no contexto contemporâneo. Quando Bauman revela elementos que

122 caracterizam a sociedade, entendemos que as crianças fazem parte dessa realidade e, também, direta ou indiretamente, vivem o estado de liquidez defendido pelo autor. Borges e Avila (2015) corroboram com essa ideia, ao afirmarem que o modo de vida infantil vem apresentando características líquidas, mesmo quando os sujeitos adultos não admitem ou não a considerem como tal.

Nessa conjuntura de liquidez, as crianças convivem com a falta de garantias, as incertezas e as inseguranças da modernidade. Esta é a realidade das crianças na atualidade, e, desde muito cedo, elas aprendem a lidar de diferentes formas com tais questões. Por mais que os adultos tentem protegê-las ou proibi-las de vivenciar certas situações, entendemos que este modo de vida já está intrínseco em muitos contextos.

A nosso ver, trazer à tona os elementos vividos pelas crianças na modernidade líquida descrita por Bauman não significa dizer, como argumenta Postman (1999), que a infância está desaparecendo. Em suas reflexões sobre a infância no século XX, este autor defende a ideia de que a sociedade estava caminhando para uma fase marcada pelo fim dessa fase da vida, sustentando sua argumentação a partir da relação que estabelece entre existência da infância e o avanço da tecnologia, o processo de moralização e de escolarização.

De acordo com Postman (1999), para haver infância é fundamental manter uma linha divisória que distancia adultos e crianças, no sentido de que essas últimas não compartilhem as mesmas informações que os primeiros. Nesse sentido, seguindo sua linha de raciocínio, para o autor, a infância começou a desaparecer com o surgimento da revolução tecnológica e, em especial, com a presença da televisão. Para Postman, a televisão teve um papel de extrema importância nesse desaparecimento, pois tirou da família e da escola a possibilidade de controle na transmissão da informação.

Postman (1999) argumenta que a televisão, como meio visual, trouxe para o mundo infantil os segredos do mundo adulto que, a princípio, estariam escondidos das crianças. O autor defende que, sem segredos, a vergonha deixa de ser um importante meio de controle social, e complementa, afirmando que a televisão destruiu a linha divisória entre infância e idade adulta de três maneiras: “primeiro porque não requeria treinamento para aprender a sua forma; segundo porque não faz exigências complexas nem à mente nem ao comportamento; e terceiro porque não segrega seu público.” (POSTMAN, 1999, p. 94). Com a presença de outros meios eletrônicos, Postman assegura que a televisão recriou as condições de comunicação que existiam nos séculos passados – pois, nesse ambiente midiático, as crianças,

como na Idade Média, não estariam privadas dos segredos, e, segundo ele, sem segredos não poderia haver algo como infância.

Para declarar que a infância estaria desaparecendo, Postman (1999) indicou alguns sinais: sua inocência, seus trajes, suas brincadeiras estariam dando lugar à homogeneização de gostos e estilos de crianças e adultos no que se refere às vestimentas, ao lazer, ao entretenimento, à alimentação, à linguagem, entre outros. Entendemos que, para a época, Postman trouxe boas contribuições para repensarmos o significado da infância. Entretanto, deslocando as ideias do autor para os dias atuais, compreendemos que o avanço tecnológico torna-se mais um elemento das construções sociais que configuram a sociedade no contexto contemporâneo. Dessa forma, ao contrário de pensar que a infância esteja desaparecendo, percebemos que novas infâncias estão surgindo e se desenvolvendo.

Precisamos reconhecer que as crianças nascidas a partir dos anos 2000 são sujeitos diferentes daqueles analisados e descritas por Ariès, Postman e outros autores. Hoje, no contexto ocidental, um dos elementos vivenciados nessa modernidade líquida é a presença das tecnologias digitais móveis integrando o cotidiano de muitas crianças desde muito cedo, já nos seus primeiros anos de vida. E não negamos que essa é uma realidade que se estende também àquelas crianças que são oriundas de classes menos privilegiadas. Sabemos que nem todas as famílias possuem o mesmo capital financeiro e nem proporcionam as mesmas oportunidades às suas crianças, mas a presença e o uso das tecnologias digitais – de formas diversificadas – é algo que se faz presente, praticamente, para as diferentes infâncias. A defesa de que as crianças de baixa renda não fazem parte desta realidade é um erro comum. Entendemos que elas fazem parte da cultura digital e buscam encontrar maneiras de interagir e de se comunicar no ciberespaço. Conforme afirma Avila (2014), elas “frequentam lan

house, utilizam computador na escola ou em casa de familiares e, muitas vezes, encontram

formas de adquirir dispositivos móveis” (p. 72), ou seja, encontram formas de se integrar na cultura digital.

Daí, compreendemos que as crianças na contemporaneidade possuem uma postura e uma identidade diferente daquela indicada na sociedade descrita por Ariès (2015) e Postman (1999). Hoje, junto com seus pais, elas convivem no estado de fluidez, e, portanto, constroem novas subjetividades e novas táticas para lidar com a realidade. Mas o ponto que deve ser enfatizado aqui é que, na sociedade atual, as crianças, ao mesmo tempo em que se constroem no contexto da sociedade moderna e líquida – tal como foi descrita por Bauman (2001) –,

124 também influenciam e interferem nesta sociedade. Para contribuir com essa discussão, nos apoiamos nas reflexões de Michel Serres (2013), filósofo francês, que traz elementos importantes para compreendermos sobre as infâncias contemporâneas. Serres, com sua obra “Polegarzinha28”, afirma que “não habitamos mais o mesmo tempo; eles vivem outra

história.” (p. 17). Para o autor, as crianças podem manipular várias informações ao mesmo tempo, pois eles “[...] não conhecem, não integralizam nem sintetizam da mesma forma que nós, seus antepassados.” (p. 19).

A partir desse contexto, não podemos desconsiderar que, na sociedade contemporânea, a realidade de nossas crianças, ou da maioria delas, é que o acesso às informações acontece de forma mais aberta e menos controladora – tal como fazia a escola e a família no século XIX. Essa facilidade é proporcionada pela presença, cada vez mais intensa, das tecnologias digitais, e chega às nossas crianças em um contexto em que elas não precisam se “esforçar tanto para armazenar o saber, pois ele se encontra estendido diante delas, objetivo, coletado, coletivo, conectado, totalmente acessível, dez vezes revisto e controlado.” (SERRES, 2013, p. 37).

Diante desse cenário, para a discussão da infância no contexto contemporâneo, vemos surgir, por parte de alguns autores, várias nomenclaturas para denominar a criança ou o grupo etário de crianças que vivem nesse contexto: nativos digitais (PRENSKY, 2001); infância midiática e eletrônica (BUCKINGHAM, 2007); homo zapping (VENN; VRAKKING, 2009); geração digital (TAPSCOTT, 2010); cyber-infância (DORNELLES, 2011); polegarzinha (SERRES, 2013), entre outras. Mas, independente da nomenclatura utilizada, faz-se necessário assinalar que as infâncias e a maneira como as crianças interagem com o mundo a sua volta estão se modificando. São crianças que observamos ao nosso redor e que facilmente aprendem a utilizar as tecnologias digitais móveis e como encontrar as informações que desejam. Elas têm a sua disposição, em um mesmo dispositivo tecnológico – seja um computador, um tablet ou um smartphone –, formas diversificadas de brincar, de aprender, de interagir com os outros, de construir conhecimento, de se relacionar com seus pares, além da ubiquidade e da mobilidade de acesso à informação e à comunicação. São crianças para as quais a cultura digital está integrada como um dos elementos do seu cotidiano e parte de sua socialização acontece diariamente no ciberespaço. Para Borges e Avila (2015), elas

[…] conversam em tempo real com parentes pelo Skype, correspondem-se por e-mail e redes sociais com amigos, postam fotos, criam e participam de

28 Livro escrito por Serres e publicado, no Brasil, em 2013. O autor usa esse termo para se referir a crianças e jovens do contexto atual, que interagem com as tecnologias, em especial, com os celulares, para se comunicar usando seus “polegares”. Para Serres, eles fazem isso mais rápido do que qualquer adulto.

blogs, fã-clubes e comunidades virtuais, criam diários, jogam, consomem livros, filmes, seriados e desenhos animados por meio da rede. E nesta dinâmica de clicar e buscar, não são apenas expectadores, elas participam ativamente da construção do seu conhecimento. (p. 109)

Portanto, diante dessas características, não podemos esperar que as infâncias de hoje sejam no mesmo estilo de vida das crianças dos séculos passados, ou até mesmo do período em que vivemos nossa infância na década de 80, em que as brincadeiras tradicionais –ciranda cirandinha, cabra-cega, barra manteiga, queimada, jogo de pião, pedrinhas, amarelinha, entre outras – se constituíam como únicas opções para o cotidiano infantil. Vivemos outra realidade em que as transformações tecnológicas e da sociedade se tornam cada vez mais intensas e aceleradas, e consequentemente, fica difícil imaginar que, para o contexto da infância, isso seja diferente. Diante desse cenário, as infâncias vividas na atualidade se apresentam em suas particularidades, em que muitas brincadeiras infantis de épocas passadas co-existem integradas a outras na cultura digital, e não acontecem exclusivamente no meio da rua, e sim em outros espaços, que para as crianças são considerados como espaços de brincadeiras, tais como as atividades lúdicas realizadas com os dispositivos móveis.