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PARTE I – ENQUADRAMENTO TEÓRICO

Capítulo 1 Criatividade

1. Criatividade: Enquadramento e Definição

Nos últimos anos a palavra criatividade tem tido uma utilização diária e tem sido associada aos mais variados contextos (Tschimmel, 2011), no entanto, este conceito não é recente. A primeira referência ao termo “criativo” surgiu em 1877 no suplemento do Dicionário de Língua Francesa, reportando-se ao sujeito que teria o dom de criar, pelo que até essa altura qualquer ato criativo era atribuído a Deus ou a outras entidades divinas (Torre, 1993; citado por Santos, 2010). A comunidade científica, por sua vez, só começou a prestar atenção a este constructo nos anos 50 devido ao investimento feito pelos EUA no combate à União Soviética (Cropley, 1999a; Tschimmel, 2011) e pelo discurso proferido por Guilford na American Psychological Association, onde sublinhou a importância que a criatividade desempenha na indústria, na arte e na ciência (Sternberg & Lubart, 2005; Tschimmel, 2011), o que levou a um aumento exponencial de investigação e produção bibliográfica sobre a temática (Sternberg & Lubart, 2005).

A criatividade ganhou assim o interesse de várias disciplinas científicas, incluindo da Psicologia, surgindo uma multiplicidade de definições, investigações e aplicações, o que tem dificultado a sua conceptualização (Barbot, Besançon, & Lubart, 2011; Cropley, 2009; Kerr, 2009; Martinsen, 2003; Morais, 2001; Runco, 2007). Cramond (2008) refere até que a definição de criatividade difere em função da cultura, do período temporal, do espaço geográfico, da experiência, dos valores e do sistema de crenças, aspetos aos quais ainda se pode acrescentar a rede social, a educação e a idade dos inquiridos (Kerr, 2009; Martinsen, 2003; Morais, 2001). Aliás, Treffinger (1995) num levantamento de definições deste constructo identificou mais de 100 conceptualizações diferentes, variando em função do autor e da sua especialidade, resultado semelhante foi obtido por Meusburger, Funke e Wunder (2009).

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Relativamente à investigação psicológica, pode-se considerar que o interesse pela temática da criatividade teve o seu início no ano de 1916, com a publicação de “Tests for Originality” de Laura Chassel, e segundo Pereira (1996) pode ser organizado em quatro períodos distintos. A primeira fase terminou nos anos 50, período em que o seu estudo esteve focado nas questões da sobredotação e dos atributos das pessoas consideradas como privilegiadas. Com a comunicação de Guilford em 1950, iniciou-se a segunda fase em que as competências criativas passaram a ser encaradas como contínuas, podendo ser estimuladas ou inibidas. Nesta fase a investigação focou-se no estudo da relação entre criatividade e inteligência; na criação e validação de instrumentos de avaliação do constructo; e no início do desenvolvimento de projetos de treino de competências criativas. A terceira fase ocorreu entre os anos 70 e 80 através da proliferação de programas de treinos de competências. A partir da década de 90 deu-se início à 4ª fase, momento em que a criatividade passou a ser entendida à luz de modelos explicativos interativos e multifatoriais, abandonado as abordagens psicométricas adotadas até então.

Esta resenha história permite-nos compreender que, ao nível da Psicologia, existe também uma grande diversidade de conceptualizações que variam em função da corrente teórica adotada pelo autor. Freitas-Magalhães (2003) fez uma listagem de algumas destas definições, por exemplo: Kris caracteriza criatividade como sendo uma recriação da realidade; Schiller defende que é um meio para melhorar a sociedade; Dewey considera-a como fruto da experiência do indivíduo; Freud diz que resulta da tensão provocada pela perceção do desequilíbrio ou necessidades; e Jung representa- a como o resultado do tipo psicológico do indivíduo. Noutro trabalho realizado por Dias (2014) são apresentadas outras definições deste constructo, nomeadamente a de Guilford que caracteriza criatividade como um processo mental pelo qual o sujeito produz informação que não possuía e a de Torrance que a descreve como o processo de resolução de problemas que leva à descoberta de conexões novas e significativas. É de notar que Guilford e Torrance são dois dos nomes mais sonantes da conceptualização e investigação psicológica da criatividade (Kerr, 2009). O próprio Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora (2014) apresenta duas definições de criatividade, uma geral e uma referente à Psicologia. No sentido lato caracteriza-a como “a faculdade de encontrar soluções diferentes e originais face a novas situações”, enquanto na conceptualização psicológica a criatividade é apresentada como a “capacidade de produção do artista, do descobridor e do inventor que se manifesta pela originalidade inventiva”.

Embora se verifique a adoção de uma multiplicidade de critérios para definir este constructo, existem dois aspetos que parecem ser consensuais nas diferentes definições: a originalidade e o valor (Boden, 1998; Hennessey & Amabile, 2010; Kerr, 2009; Morais, 2001; Runco, 2007; Runco & Jager, 2012). Com base nesta premissa, a criatividade envolve o desenvolvimento de um novo

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produto, ideia ou solução para um problema que tem valor para o indivíduo ou para um grupo de indivíduos (Hennessey & Amabile, 2010). A este respeito, Vygotski (1990; citado por Zanella, Ros, Reis, & França, 2003), acrescenta que a possibilidade de criar reflete a relação estabelecida entre o Homem e o seu meio envolvente através do recurso a ferramentas psicológicas que lhe permitem conhecer e comunicar a realidade. Assim sendo, segundo este autor, a atividade criadora supera a simples reprodução do que já é conhecido, envolvendo diversos processos psicológicos, nomeadamente: a perceção de determinados aspetos da realidade e a acumulação, pela memória, dos elementos mais significativos para o sujeito; a reelaboração desses elementos mais significativos através da fantasia; e a objetivação do produto da imaginação, que, ao materializar-se na realidade, traz consigo uma nova força, que se distingue pelo seu poder transformador face à realidade da qual deriva.

Para além desta questão, a definição deste constructo é igualmente dificultada pelo facto do termo criatividade ser utilizado na vida quotidiana, o que leva os autores a falarem na dicotomia Big C e little c, por outras palavras, Criatividade com C grande e criatividade com c pequeno (Craft, 2007). De forma geral, o Big C refere-se à criatividade socialmente reconhecida que é associada à genialidade nas várias áreas científicas. Por contrapartida, a little c diz respeito à criatividade na vida quotidiana, o que implica a procura ativa de soluções para problemas diários e inclui competências como adaptação à mudança, imaginação e definição de objetivos. A esta terminologia Kaufman e Beghetto (2009) acrescentam ainda a existência do Mini C, espelhando a criatividade inerente ao processo de desenvolvimento da criança, e o Pro C, que se refere ao domínio de competências técnicas de uma determinada área criativa sem que haja a criação de algo novo.

Sendo a criatividade um conceito multifacetado, pressupõe-se que a sua avaliação requer uma abordagem multivariada. Segundo Rhodes (1961; citado por Runco, 2004) para o estudo da criatividade é necessário ter em conta as características dos quatro aspetos fundamentais do ato criativo: pessoa, processo, produto e pressão ambiental. A pessoa criativa refere-se às características observáveis ou subjacentes do indivíduo, incluindo competências, traços de personalidade, padrões motivacionais e afetivos, atitudes e valores. Já o processo criativo consiste no modo como o sujeito pensa, sente, experiencia e age para criar algo original e com valor, ou seja, estando mais associado ao comportamento do que à pessoa. Relativamente ao produto criativo, esta dimensão consiste no resultado do esforço criativo, que pode ser um produto, um comportamento, um conjunto de ideias ou um processo. Finalmente, a pressão ambiental diz respeito à influência, positiva ou negativa, que o meio envolvente exerce para o desenvolvimento da criatividade, que pode incluir cultura, valores, regras sociais, características físicas, entre outros. Assim sendo, é através da interação dinâmica

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entre estas particularidades que o ato de criar se torna possível (Wechsler, 1999, citado por Santeiro, Santeiro, & Andrade, 2004).