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Criatividade sob o olhar psicanalítico

1. Criatividade: encontro com a diversidade teórica

1.4. Criatividade sob o olhar psicanalítico

Noutra direção, no entanto, ainda constituída no contexto das abordagens psicológicas, a dimensão psicanalítica freudiana de criatividade indica o processo criativo como “uma forma inconsciente de solução de conflitos” (WECHSLER, 1993, p. 6), “ressaltando o papel da fantasia e da imaginação” (ALENCAR, 1986a, p. 26). “Para Freud, a criatividade é um desvio dos impulsos biológicos que, impossibilitados de sua efetivação direta, tomam caminhos substitutivos de satisfação do sujeito e usufruto coletivo”, comenta Oliveira (2007, p, 20).

Semelhante ao que fez Santeiro (2000) pode-se imaginar o escrito de Freud sobre A

Interpretação de Sonhos (193814) como lugar em que se extraíram elementos referentes à

criatividade, ao processo criativo, identificando o sonho como lugar favorável à lucubração criativa. Em sono e sonhando põe-se o sujeito (indivíduo) em ‘elaboração onírica’ - “maneira como o material inconsciente oriundo do id, força seu caminho até o ego, torna-se pré- consciente e, em conseqüência da oposição do ego, experimenta as modificações que conhecemos como deformações oníricas” (FREUD, 1978, p. 213) -. Fantasia e imaginação,

14 O texto original A interpretação de Sonhos de Sigmund Freud encontra-se no IV volume de sua Obra Completa (parte I) de 1900 e no V volume (parte II) de 1901.

num jogo de forças entre inconsciência e consciência, sonho e vigília, formam pares em contradições, resíduo de um mesmo ambiente psicológico.

No entanto será pela sublimação de pulsões sexuais latentes ou reprimidas que a criatividade emerge como reação psíquica saudável às ‘pressões’ de repressão sexual de imersão social. Apoiada na interpretação da obra freudiana Personagens Psicopáticos no

Palco de 1905, Oliveira (2007) elabora conectividade entre sublimação e criatividade:

“sublimando, se cria a encenação do desejo primitivo de onipotência, primariamente sexual” (OLIVEIRA, 2007, p. 24). Ator e espectador sublimando suas pulsões sexuais reprimidas, em situação da representação (ator) e da contemplação do drama (espectador), declinam em prazer constituído pela imaginação criativa.

Imaginação, que com Freud encontra-se associada à brincadeira, à maneira pela qual na infância a criança seleciona elementos do mundo, criando e recriando seu universo simbólico em emoção. Neste sentido, a ação criativa “se apresenta como uma atividade corriqueira a qualquer um que tenha um trânsito equilibrado entre o mundo compartilhado e o mundo subjetivo” (Loc.cit.). Diante de desejos não satisfeitos, tanto o adulto como a criança, envolvendo-se com fantasias, tramam a “realização de um desejo e a correção de uma realidade insatisfatória” (ALENCAR, 1986a, p. 26), sublimam, criando outros impulsos, satisfazendo as necessidades ao nível da fantasia.

A interpretação psicanalítica freudiana sobre criatividade perpassa por uma extensão de significados representados pela inserção do sujeito nas relações sociais. Assim, estará criatividade associada aos traços de características da biologia e psique do sujeito, incitadas pelos conflitos captados nas relações com o mundo? Criatividade e sublimação, criatividade e sonho, assim como criatividade e brincadeira são relações em reflexão que possibilitam explicar o processo de ‘desenvolvimento psicossexual’ normal do sujeito frente à realização cultural.

Criatividade e narcisismo, na trajetória contextual da psicanálise, remetem ao entendimento elaborado por Freud quanto ao conteúdo egocêntrico do processo de criação. Um ‘eu-narciso’ prevalecendo sobre a criação. Para Oliveira (2007), Freud (Escritores

Criativos e Devaneios, 1908) atribui ao ego conotação de “verdadeiro protagonista na trama

do desejo” (Op.cit., p. 25), um ego interferindo no processo criativo. Será atribuída ao ego a condição de incitar à sublimação – “o ego passa a incidir sobre as pulsões sexuais – em lugar de um automatismo orgânico, a sublimação ganha um núcleo de agência: o eu” (Op.cit., p. 32). De acordo com a autora, a sublimação no processo egóico representa ‘a via de escape’ em que o sujeito recorre para “satisfazer tais exigências egóicas” (Ibid.).

A ação criativa delimitada por este contexto vai exigir a compreensão da associação de criatividade como elemento de saúde psíquica. Pela sublimação criativa o sujeito busca satisfazer a emoção de mal-estar – “a incitação egóica à criatividade suaviza o caráter de ‘uma defesa pulsional saudável’, passando a esboçar a conotação de um objetivo do eu” (OLIVEIRA, 2007, p. 32) -. Ao criar, o sujeito sublima problemas que se tornariam neuroses, caso não se envolvesse na superação destes mesmos problemas. Há interferência de um ego consciente sobre o conflito, como há uma determinação do id inconsciente sobre a condição biológica deste mesmo processo criativo.

Pode-se, com isto, apontar na direção da dimensão social de criatividade sob uma abordagem psicanalítica. Sujeito e sociedade se organizam em equilíbrio tendo, de um lado, as repressões pulsionais e, de outro, a capacidade de sublimar cada uma das tensões em conflito. Tensões estas que Ostrower (1987) afirma representar “uma noção renovada do potencial criador [...] relevante para a criação” (Op.cit., p. 27). Criando, confronta-se o homem com tensões fundamentais ao vigor da própria ação em criação. Produz energia e com ela movimenta-se em prazer que se faz pelo “sentimento concomitante de reestruturação, de enriquecimento da própria produtividade, de maior amplitude do ser, que se libera no ato de criar” (Op.cit., p. 28).

Destas tensões o sujeito extrai fonte de energia fundamental a sua ação em conflito. Ação que se encontra subjugada pela intervenção do ego consciente em contraposição ao id inconsciente. Neste jogo de forças, pulsa uma dimensão dialética da qual resulta a ação criativa. Ao criar, o sujeito reencontra-se com a tensão geradora da ação criativa. Por conseguinte, “o desvio das pulsões biológicas para uma expressão criativa no mundo é condição imprescindível para uma vida saudável” (OLIVEIRA, 2007, p. 28).

Criatividade, assumida como traço de vida saudável, representa uma tendência biológica de superação aos problemas captados nas relações entre sujeitos no mundo. Possivelmente por esta razão, criatividade é dimensionada por Freud – na trama ator/espectador -, como pólos contrários de um mesmo contexto. Escreve Oliveira (2007, p. 26)

de um lado há o sujeito criativo, que tem um talento especial de disfarçar o caráter sexual de seus interesses, de tal modo que, em lugar do repúdio social, gera o reconhecimento e o aplauso. Do outro lado (de quem admira a criação), o prazer toma o caminho inverso: a partir da “manifestação sublime” da sexualidade do sujeito criativo, o espectador libera suas fantasias e recalques sexuais primitivos, devotando gratidão e admiração àquele que o possibilitou esse momento de satisfação.

Em Psicanálise e criatividade, Sonia Del Nero (2004) lembra a obra de Freud,

Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância de 1910, para argumentar sobre a

influência da infância no processo criativo adulto. Na infância, e em analogia ao processo de criação de Leonardo da Vinci, Freud expande a interpretação sobre criatividade. Confere-lhe expressão que superando a condição pulsional no mundo, volta-se para uma relação entre sublimação e curiosidade.

É pela curiosidade que o sujeito traz para si o mundo. Problematiza-o. Atua nele. A ação criativa, neste sentido, é expressada num campo social pela atividade profissional, pela curiosidade inteligente, pelo trabalho.

Portanto, o desenvolvimento da criatividade em Freud tem início com seus estudos apontando a teoria pulsional, com a qual a ação criativa perpassa pela efetivação da sexualidade. Na condição de sujeito que cria ou na de quem contempla a ação criada, sob a abordagem psicanalista freudiana, criatividade se expressa como “solução saudável frente ao desequilíbrio das pulsões sexuais. [...] Em suma, a criatividade é uma máscara de nossos desejos proibidos (DEL NERO, 2004, p. 31).

Em Além do Princípio do Prazer (1920), Freud redireciona sua interpretação sobre as

pulsões. Diferente do proposto até então, relaciona o conjunto pulsional em pulsões de vida. Em oposição a estas tensões Freud vai mencionar as pulsões de morte. Trata-se de pulsões que conduzem à idéia de concluso, da ausência de faltas e de desejos. É nesta relação dialeticamente posta, vida e morte, falta e não falta, desejo e não desejo que se pode perceber abertura freudiana a um psiquismo mais dinâmico, inconcluso. Por isto mesmo, encontra-se o homem engajado num movimento de novas criações e recriações. Afirma Oliveira (2007, p. 34):

Na medida em que o prazer das realizações criativas nunca repete a mítica completude da satisfação pulsional, há sempre a cota psíquica voltada para novas criações. Nesse raciocínio, a criatividade tem uma outra tônica: em lugar do desvio pulsional para um símbolo do desejo impossível, a discussão se centra na incompletude humana. O universo de criação se abre para o homem na medida em que ele almeja à plenitude, que sendo um estado mítico, nunca se alcança, e se continua criando, como que vislumbrando a quietude e a felicidade perfeita do Nirvana. A criatividade ganha uma conotação mais ampla que a substituição pulsional. São vestígios do fim maior do humano: a plenitude – as criações são um quase lá.

Sob um outro olhar, em Mal-estar na Cultura (1930), Freud vai atribuir viés antropológico à perspectiva psicanalítica. Nesta obra Freud (1978) refere-se à “teoria de que os homens vivem juntos e constroem uma cultura por necessidades” (Op.cit., p. 36), de tal

modo que contrapondo interesses individuais aos de cultura, a teoria aponta emergir, em conflito, uma pulsão de mal-estar responsável por incitar ação criativa no mundo. Produz o sujeito, assim, movendo-se no mundo, movendo-se criativamente no mundo, engendrado pela força das contradições de interesses individuais e de cultura, mudanças de hábitos.

A ação criativa, neste caso, encontra-se envolvida por sensações ambivalentes de mal- estar e prazer, de opressão e sublimação. Sensações com as quais o sujeito movimenta-se buscando amenizar sofrimentos, conflitos, tensões. Motivado, adentra na busca de soluções, expressão da ação criativa. Movimenta-se na busca do prazer, da satisfação, do belo. Pulsa por realizações intelectuais movidas pelas dimensões ética e estética. Com isto, busca o sujeito uma condição saudável frente às frustrações do mundo externo – “diante do sofrimento no mundo, o psiquismo se volta para si mesmo, e reage com a atividade criativa intelectual de trazer elementos que delineiem um ambiente mais aprazível” (OLIVEIRA, 2007, pp. 37-38).

No mundo, e em conflitos, o sujeito segue sublimando pulsões de vida. Busca a felicidade, que é busca inconclusa. Por conseguinte, o sujeito age e reage no mundo realizando atividades intelectuais, criação estética e beleza. De outra maneira, encontra-se em frustração. A tensão psíquica (como conflito emocional) produzida por frustrações e postas dialeticamente sob uma outra condição, a de sua superação (sublimação) possibilita a compreensão da tese defendida por Ostrower (1987) “de que não há crescimento sem conflito – o conflito é condição de crescimento (Op.cit., p. 28), continua a autora: “orientaria até certo ponto o quê e o como no processo criativo” (Ibid.).

A Religião apresenta-se como uma outra maneira do sujeito amenizar frustrações. Contudo, e em acordo com Oliveira (2007,pp. 38-39/ênfase da autora),

Seguindo este caminho, no entanto, o sujeito restringe o seu jogo de escolhas e os recursos adaptativos, em lugar de ampliá-los. Isso porque a religião oferece um caminho pré-estabelecido. Ela infantiliza o sujeito, tornando-o dependente de uma promessa ‘na eternidade’, e o retira deste mundo, deflacionando o valor da vida e montando um ‘quadro delirante da realidade’. O que resta como consolo é a submissão incondicional aos ‘desígnios soberanos de Deus’.

Em contrapartida a esta perspectiva, a esperança. Freud, neste sentido, vai disponibilizar uma outra interpretação ao psiquismo. Uma dimensão existencialista. A ação criativa deve ser entendida, aqui, como maneira de se “construir um jeito de viver, um modo de estar no mundo e buscar a felicidade. [...] Criar é afastar um pouco o sofrimento da vida e propiciar a esperança” (Op.cit., p. 40). A criatividade, como sublimação criativa frente à diversidade de tensões em conflito, emerge como possibilidade de satisfação, de busca da felicidade em vida. Uma felicidade inalcançável pela sua incompletude.

Com Freud criatividade encontra-se associada à ação feita no mundo, ao modo como o sujeito obtém sucesso na sociedade. Daí sua relação com a busca de satisfação dos impulsos primários. Satisfação que se atrela à realização criativa como maneira de aliviar as tensões no mundo.

Noutra abordagem em psicanálise, Donald W. Winnicott (1896-1971), influenciado pela perspectiva psicanalista freudiana, vai, no entanto, à luz de sua prática clínica, desenvolver um modo particular de ‘consulta terapêutica’ de crianças, conferindo uma relação eu-mundo. Enquanto Freud articulava o mundo como espaço de tensões sob forma de opressão, repressão a um sujeito em conflito, Winnicott priorizava na relação eu-mundo “noções de dependência do mundo e de uma tendência do indivíduo a se relacionar com ele” (OLIVEIRA, 2007, p. 42). Difere de Freud, no que se refere à sua compreensão de criatividade, ao perceber uma dimensão da subjetividade “que não é regida pelas forças pulsionais” (Ibid.). Para Winnicott o fazer criativo é antecedido pelo ‘ser’ do sujeito. “É da apercepção de uma existência real, de um sentimento de valor da vida, que a criatividade ganha espaço no desenvolvimento dinâmico das pulsões”, afirma Oliveira (Loc.cit.).

Criatividade com Winnicott expressa a compreensão de uma relação eu-mundo concebida como “um espaço-tempo em que o indivíduo se desfaz de um pouco de ‘si’ e se retoma numa diluição/fusão com o mundo” (Op.cit., p. 43/ênfase da autora). Trata-se de processo em desenvolvimento do indivíduo em existência. A ação criativa decorre do devir do ‘eu’ que se organiza no conjunto mãe-bebê. Das experiências em bebê se constitui a vida adulta como agir criativo ou, noutro sentido, como uma indiferença em existência.

Em analogia ao processo de desenvolvimento humano e brincadeira, pode-se associar o comportamento criativo como um substituto e continuador das brincadeiras infantis. O “prazer e alegria seria uma reminiscência do jogo da criança, que explora o mundo e o põe à prova através do sonhar acordado, é um substitutivo dos jogos imaginários infantis” (WECHSLER, 1993, p. 6). Ao brincar, a criança explora com sua imaginação descobrindo, criando e recriando o mundo ao seu redor. Sobre este tema, Santeiro (2007, p. 45/ênfase nossa) comenta:

para ele [Winnicott] o brincar é visto caracteristicamente como atividade onde flui a liberdade de criação tanto da criança quanto do adulto; ele situa-se num espaço que não é nem o da realidade psíquica nem o da realidade externa, mas sim num espaço potencial existente entre mãe e bebê – o transicional. Brincar e ser criativo no trabalho analítico são colocados como sinônimos, como extensões de um mesmo processo.

duas fases: na primeira, inspiração, “o ego perde temporariamente o controle dos processos de pensamento para permitir uma regressão ao nível subconsciente do pensamento” (ALENCAR, 1986a, p. 27). Reduzindo os efeitos do pensamento lógico, racional, formulam- se novas idéias através da fantasia; o processo criativo toma forma. Na segunda fase,

elaboração, as idéias são avaliadas rigorosamente através da lógica, do racional. A ação e o

produto são analisados sob os critérios de satisfação, prazer, assim como de aplicação, utilidade, ao que se assemelha a perspectiva freudiana psicanalista.

Portanto, o processo criativo, sob a interpretação em psicanálise nos coloca frente ao debate com o qual o sujeito sublima frustrações derivadas do mundo externo em busca de prazer, satisfação, de uma felicidade inatingível (Freud). Noutra interpretação, o processo criativo se faz na relação eu-mundo consubstanciada pela subjetividade do sujeito antecedendo sua ação. Ação esta que não se faz a priori, mas que tem sua constituição nas experiências de vida da criança, desde a relação mãe-bebê até a morte (Winnicott).