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A crise ética contemporânea e a resposta de Lima Vaz

Nos escritos de Lima Vaz, é frequente a referência à crise ética que ele verifica se abater sobre o Ocidente, para ele resultado do deslocamento moderno do vetor ético que direciona (ou que deveria direcionar) a realização humana rumo ao encontro com o outro, para um locus poiético de relações protagonizadas pelo indivíduo, cuja mentalidade egocêntrica e consequentes relativismo e niilismo éticos que professa têm se mostrado absolutamente deletérios para os rumos civilizatórios do Ocidente.

Com efeito, sua Ética tem como ponto de partida esse diagnóstico de crise da sociedade atual, o que ele atribui, em última instância, à cisão moderna entre indivíduo e ordem (comunidade), da qual resultou uma práxis ética focada no indivíduo, que se pretende, como instância subjetiva e autônoma, apartada do todo social, a fonte absoluta da legislação moral e jurídica. Para ele, “o advento da modernidade assinala a primeira vez em que o homem levantou a pretensão de absorver na imanência da sua liberdade as razões e os fundamentos do seu ethos”143. E prossegue:

Uma vez pressuposta essa prioridade lógica e axiológica dos indivíduos sobre o seu existir comunitário, o fundamento da relação recíproca do reconhecimento reflui da comunidade para os próprios indivíduos. A comunidade passa a ser um resultado, não um princípio e fundamento. Ela se apresenta como incapaz de assegurar as razões do reconhecimento e, portanto, de demonstrar-se como comunidade ética.144

Em consequência disso, a ética separa-se da política, o indivíduo dissocia-se da comunidade, e assim temos instaurado o mencionado individualismo, que tem conduzido o homem por trilha oposta àquela que o encaminharia à sua realização pessoal, ao encontro consigo mesmo, com sua essência. Como, para Lima Vaz, essa essência é ética – o que, como veremos adiante, decorre da categoria antropológica da intersubjetividade –, esse encontro consigo só ocorre por meio do encontro com o outro. Decorre daí que:

[...] o postulado da autonomia do indivíduo como primeiro princípio da ordem das razões do ser-em-comum-social, ou a absolutização da sua práxis, implica, necessariamente, em filosofia social e política, um empirismo nominalista que, suprimindo a categoria lógico-ontológica da natureza humana e da sua sociabilidade constitutiva, abre caminho para a dramática anomia ética que reina nas sociedades modernas e, com ela, para a instauração do hobbesiano “estado de natureza” do bellum

143 VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Filosofia e cultura. In: _____. Escritos de Filosofia. São Paulo: Loyola, 1997.

v. III. p. 144.

144 VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Filosofia e cultura. In: _____. Escritos de Filosofia. São Paulo: Loyola, 1997.

omnium contra omnes que caracteriza, para a nossa civilização, a impossibilidade de constituir a Ética do seu projeto universalizante.145

Desse ponto advêm consequências extremamente deletérias, entre as quais a principal talvez seja, no nível mais básico e estruturante da sociedade, a orfandade de uma ordenação ética, de um ethos que novamente constitua a morada do ser humano, que o acolha em sua inexorável inclinação para a autorrealização social, na qual a liberdade de que se diz portador realmente faça algum sentido.

Para Lima Vaz, “a forma da existência ética é a mais significativa de nosso ser”146, mas o que temos instaurado em termos de teoria e práxis éticas é um “programa que absolutiza o uso da liberdade, ao mesmo tempo em que proclama seu ceticismo com respeito às razões e aos fins de ser livre”147. O individualismo e o solipsismo são alimentados, e o homem se vê cada dia mais alijado do contato com o outro (e, logo, do contato consigo, com sua essência), do qual adviria sua realização como ser livre e, como veremos, sua transcendência rumo ao bem a que se destina. Mas, muito aquém de encaminhá-lo à transcendência, a tão proclamada liberdade do indivíduo, pretensamente absoluta, nem sequer consegue realizar-se no plano objetivo, já que este é visto como uma limitação. Portanto, o homem não enxerga sua comunidade, suas leis, seus costumes, seu ethos, em suma, como obra sua, e se isola mais ainda, num círculo vicioso de alienação e descontentamento.

Logo, o projeto universalizante que atualmente se apresenta no processo irrefreável de globalização possui uma limitação e uma contradição insuperáveis, e por isso Pe. Vaz entende que seu alardeado sucesso é altamente questionável. É que seu êxito se restringe ao âmbito material de reprodução global dos padrões de comportamento associados ao consumismo, individualismo, pragmatismo e tecnicismo.

Para Lima Vaz, a integração entre mercados é a única face verdadeira da globalização, uma face sombria porque conspurca o luminoso horizonte de universalização daquilo que deveria ser o produto mais elevado da atividade humana no plano objetivo, a ética. Esse quadro escancara o “paradoxo de uma civilização sem ética ou de uma cultura que, no seu impetuoso e aparentemente irresistível avanço para a universalização, não se fez acompanhar pela formação de um ethos igualmente universal”148. Daí decorre a “crise de uma civilização

145 VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Filosofia e cultura. In: _____. Escritos de Filosofia. São Paulo: Loyola, 1997.

v. III. p. 149.

146 VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Introdução à Ética Filosófica. In: _____. Escritos de Filosofia. São Paulo:

Loyola, 2004. v. V. t. 2. p. 19.

147 VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Filosofia e Cultura. In: _____. Escritos de Filosofia. São Paulo: Loyola,

1997. v. III. p. 145.

148 VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Filosofia e cultura. In: _____. Escritos de Filosofia. São Paulo: Loyola, 1997.

universal pela difusão planetária das suas obras e do seu way of life, mas que não logrou infundir nessa universalidade a alma de um ethos que fosse o princípio vital de sua unidade e do seu sentido”149.

O correspondente vetor espiritual ou ético da globalização, apto a nortear uma integração ética global, é solenemente desprezado, pois a própria reflexão filosófica não consegue conceber a construção de uma comunidade ética universal – como tal baseada em um ethos universal – como um caminho possível, tanto menos necessário. Verifica-se uma incapacidade de se conceber uma práxis universal no âmbito da reflexão ética porquanto essa se tornou refém de perspectivas cientificistas e materialistas, inábeis a penetrar no domínio por excelência espiritual e filosófico da ética.

Nossa sociedade se depara, então, com a dramática contradição de, a par do universalismo de que se diz porta-voz, se mostrar absolutamente incapaz de ditar os rumos de uma globalização da ética, de um ethos global. A mesma civilização que se pretende mundial se apresenta como “uma civilização sem ethos e, assim, impotente para formular a Ética correspondente às suas práticas culturais e políticas e aos fins universais por ela proclamados”150. Com efeito:

[...] a Razão nela operante expandiu-se em várias direções – científica, técnica, organizacional, política – acompanhando a dilatação de seu espaço histórico-cultural; no espaço do ethos, porém, ela não consegue criar um novo paradigma de racionalidade ética ou uma Ética universal para uma civilização universal.151

Para fazer frente a essa nefasta razão técnica que subjuga a ciência do ethos aos imperativos metodológicos típicos das tecnociências modernas, Lima Vaz erige sua densa e intricada Ética Filosófica, já que o pensamento filosófico é o único capaz de penetrar na natureza filosófica da ética.

Nessa difícil empreitada, a primeira constatação é a inadequação do modelo liberal- hobbesiano e contratualista, cuja concepção política parte de uma insuperável oposição entre indivíduo e ordem. Essa matriz binária, dualista, surge de uma lógica analítica e abstrata que, ao colocar em polos opostos o princípio de ordem e o princípio individual, impede a compatibilização entre eles na comunidade política. Apesar de Hegel já ter feito essa constatação e apresentado a lógica dialética como solução para a contradição moderna entre

149 VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Filosofia e Cultura. In: _____. Escritos de Filosofia. São Paulo: Loyola,

1997. v. III. p. 129.

150 VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Filosofia e Cultura. In: _____. Escritos de Filosofia. São Paulo: Loyola,

1997. v. III. p. 126.

151 VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Filosofia e Cultura. In: _____. Escritos de Filosofia. São Paulo: Loyola,

sociedade civil e Estado, o que Pe. Vaz tentará recuperar, este entende que “o intento hegeliano de unificar, numa superior Filosofia do Espírito objetivo, práxis individual e práxis social e política [...] não encontrou herdeiros à altura de suas ambições teóricas”152. Segundo Lima Vaz: Os tempos pós-hegelianos assistiram à hipertrofia da estrutura binária indivíduo- sociedade, seja na forma de uma exacerbação do individualismo, seja na cisão cada vez mais profunda entre sociedade civil e Estado, este arrastado pela dialética da acumulação do poder, aquela pela dialética da satisfação cumulativa de necessidades sempre novas.153

Por consequência, a essa “dificuldade de pensar e viver a comunidade ética a partir de uma matriz binária (indivíduo-lei, indivíduo-poder ou indivíduo-sociedade)”154, Lima Vaz, haurindo o pensamento dialético de Hegel, opõe a necessidade de fazer corresponder à estrutura objetiva da comunidade uma matriz teórica por ele denominada ternária, correspondente à articulação dialética entre os elementos princípio, ordem e indivíduo. Para ele, é essa “estrutura ternária que permitiu aos grupos humanos na história constituir-se como comunidades éticas”155, mas essa estrutura:

[...] necessariamente se desfaz com a imanentização do princípio ordenador no arbítrio do indivíduo. Uma nova estrutura, essa de forma binária, tendo como termos fundamentais a lei e o indivíduo ou então o poder e o indivíduo, passa a ser subjacente à construção moderna do universo ético-político, determinando uma forma de práxis em permanente desacordo com a tradição da comunidade ética, tal como era vivida em grupos como a família, as comunidades religiosas e outras.156

É essa estrutura ternária (leia-se dialética), então, que Lima Vaz trata de tentar restabelecer nas bases teóricas de sua comunidade ética, sendo esse seu projeto filosófico. Afirma ele que:

No limiar do terceiro milênio o desafio maior lançado à nossa civilização parece ser o de encontrar uma forma histórica de efetivação para o princípio do reconhecimento e para um tipo de estrutura ternária capaz de assegurar a estruturação de uma comunidade ética universal.157

152 VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Introdução à Ética Filosófica. In: _____. Escritos de Filosofia. São Paulo:

Loyola, 2015. v. IV. t. 1. p. 15.

153 VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Filosofia e Cultura. In: _____. Escritos de Filosofia. São Paulo: Loyola,

1997. v. III. p. 150.

154 VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Filosofia e Cultura. In: _____. Escritos de Filosofia. São Paulo: Loyola,

1997. v. III. p. 148.

155 VAZ, Henrique Cláudio. de Lima. Filosofia e Cultura. In: _____. Escritos de Filosofia. São Paulo: Loyola,

1997. v. III. p. 148.

156 VAZ, Henrique Cláudio. de Lima. Filosofia e Cultura. In: _____. Escritos de Filosofia. São Paulo: Loyola,

1997. v. III. p. 147.

157 VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Filosofia e Cultura. In: _____. Escritos de Filosofia. São Paulo: Loyola,

Diante desse desafio, sua contribuição é restabelecer o ethos como o fundamento da comunidade, cujas raízes mais profundas se fixam na categoria antropológica da intersubjetividade, como veremos no próximo tópico. Consequentemente, os conceitos de intersubjetividade, reconhecimento e consenso, no âmbito da Antropologia Filosófica e da Ética Filosófica de Lima Vaz, serão as grandes chaves para a compreensão filosófica do existir-em- comum do homem, na qual ética e política se reencontram. Como o existir humano é um existir- com-o-outro no lócus ético da comunidade política, a intersubjetividade apresentar-se-á como a categoria antropológica (tratada como uma essência ontológica do homem) da qual decorre essa sua vocação ético-política, veiculada pelo reconhecimento e pelo consenso. O pensamento de Lima Vaz toma conhecimento do processo fenomenológico pelo qual o ethos nasce, se desenvolve e se desdobra, e a partir dessa constatação parte para a conformação da matriz teórica pela qual o ethos se constitui. Assim podemos resumir o pano de fundo do projeto filosófico de Lima Vaz:

A crise das sociedades políticas nascidas da modernidade impõe [...] a busca de uma outra concepção do ponto de partida da filosofia política. Esse ponto de partida deve pressupor, em qualquer hipótese, a ideia de comunidade ética como anterior, de direito, aos problemas de relação com o poder do indivíduo isolado e submetido ao imperativo da satisfação das suas necessidades e carências. É no terreno da ideia de comunidade ética que se traça a linha de fronteira entre Ética e Política. A partir daí é possível formular a questão fundamental que se desdobra entre os dois campos e estabelece entre elas uma necessária comunicação: como recompor, nas condições do mundo atual, a comunidade humana como comunidade ética e como fundar sobre a dimensão essencialmente ética do ser social a comunidade política?158

É a essa pergunta que a reflexão de Lima Vaz tenta responder, e que doravante passamos a expor dando ênfase à categoria da intersubjetividade, inicialmente a partir da explicitação da historicidade do fenômeno ético, é dizer, da culturalidade do ethos.