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Conforme consagrada explicação de Lima Vaz, o termo grego ethos recebe duas grafias, cada uma com um significado distinto, porém muito próximos: ethos com eta inicial designa o corpo normativo dos costumes de um determinado grupo social e ethos com épsilon inicial diz respeito à constância do comportamento prescrito por esse ethos-costume na conduta dos indivíduos. Ambos os sentidos decorrem da mesma realidade consistente na existência de

158 VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Ética e cultura. In: _____. Escritos de Filosofia. São Paulo: Loyola, 2004. v.

condutas tidas como obrigatórias no seio de uma comunidade (costumes) e seu reflexo no condicionamento da ação individual.159

Enquanto a segunda acepção costuma ser traduzida por costumes, o significado que irá prevalecer é o de ethos (com eta) na condição da própria realidade fundamental correspondente ao espaço normativo criado pelo homem no qual ele se encontra acolhido, pois ali descobre afinidade entre seu comportamento e o do outro, e assim com ele se identifica. Consequentemente, ao se ver em um contexto social de estabilidade, no qual sabe o que pode esperar do outro, se sente seguro. É por isso que o gênio grego deu por bem designar essa realidade pelo mesmo termo empregado para denotar a morada, covil ou abrigo dos animais, transposição metafórica essa que Lima Vaz enxerga como:

[...] fruto de uma intuição profunda sobre a natureza e sobre as condições de nosso agir (praxis), ao qual ficam confiadas a edificação e preservação de nossa verdadeira residência no mundo como seres inteligentes e livres: a morada do ethos cuja destruição significaria o fim de todo sentido para a vida propriamente humana.160

Assim, ethos significará nada menos que a morada do homem, aquele espaço que ele cria para si em sua existência histórica no qual, por ser o reino da liberdade, se inscreverão as normas, valores, virtudes, hábitos e costumes por ele criados em contraposição, portanto, ao reino da necessidade, da physis161.

É, por isso, no sentido de abrigo, lugar sólido e estável no qual o homem encontra guarida, que o termo ethos designará costume como estrutura padronizada e estável de comportamentos, como modo de vida homogêneo como tal consolidado. Evidentemente, contudo, que, por ser criação humana, o ethos se solidifica, mas não se incrusta, norteia o homem, mas não o agrilhoa, pois, como manifestação de sua liberdade – e não da necessidade que rege a physis –, trata-se de uma conformação passível de ser recriada e remodelada a todo tempo. Na lição do insigne filósofo:

A primeira acepção de ethos (com eta inicial) designa a morada do homem (e do animal em geral). O ethos é a casa do homem. O homem habita sobre a terra acolhendo-se ao recesso seguro do ethos. Este sentido de um lugar de estada

159 VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Ética e cultura. In: _____. Escritos de Filosofia. São Paulo: Loyola, 2004. v.

II. p. 12 e seguintes.

160 VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Introdução à Ética Filosófica. In: _____. Escritos de Filosofia. São Paulo:

Loyola, 2015. v. IV. t. 1. p. 13.

161 E em outra passagem: “Elevando-se sobre a physis, o ethos recria, de alguma maneira, na sua ordem própria, a

continuidade e a constância que se observam nos fenômenos naturais. Na physis, estamos diante de uma necessidade dada, no ethos tem lugar uma necessidade instituída, e é justamente a tradição que suporta e garante a permanência dessa instituição e se torna, assim, a estrutura fundamental do ethos na sua dimensão histórica. Entre a necessidade natural e a pura contingência do arbítrio, a necessidade instituída da tradição mostra-se o corpo histórico no qual o ethos alcança sua realidade objetiva como obra de cultura.” (VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Ética e cultura. In: _____. Escritos de Filosofia. São Paulo: Loyola, 2004. v. II. p. 17).

permanente e habitual, de um abrigo protetor, constitui a raiz semântica que dá origem à significação do ethos como costume, esquema praxeológico durável, estilo de vida e ação. A metáfora da morada e do abrigo indica justamente que, a partir do ethos, o espaço do mundo torna-se habitável para o homem. O domínio da physis ou o reino da necessidade é rompido pela abertura do espaço humano do ethos no qual inscrevem-se os costumes, os hábitos, as normas e os interditos, os valores e as ações. Por conseguinte, o espaço do ethos enquanto espaço, não é dado ao homem, mas por ele construído ou incessantemente reconstruído.162

Ora, é no plano político, é dizer, no plano da comunidade política, da pólis, que se inscreve o espaço do ethos, dessa forma unificada de existência na configuração geral dos costumes, que, por sua vez, emprestam inicialmente esse seu significado ao termo nomos (que só posteriormente, sobretudo com os sofistas, ganharia o sentido restrito de lei jurídica). Mas já aqui se verifica a tensão entre o ethos incrustado na comunidade pela tradição e a ação ética cujo móvel é a vontade subjetiva do agente, tensão que se resolve, segundo Lima Vaz, nessa primeira aproximação com o tema, pela superação dialética do costume como universalidade abstrata e sua negação, a particularidade da prática repetitiva das ações tidas como éticas (praxis) na situação, no plano dos hábitos (hexis) que assim são plasmados universal e concretamente de modo a atualizar os costumes até então sedimentados na sociedade. Pe. Vaz entende, assim, que, “no primeiro momento, a liberdade é exterior ao ethos, que está diante dela como uma natureza primeira – costumes. No segundo momento, a liberdade é interior ao ethos, que constitui como seu corpo orgânico ou sua segunda natureza – hábitos”163. A essa dinâmica de criação histórico-cultural do ethos por meio da atualização dos hábitos pela ação ética dos indivíduos empíricos, cujo ponto de partida, assim como de chegada, é o próprio ethos, Lima Vaz chama de circularidade do ethos. Em suas palavras:

[...] a relação entre o ethos e o indivíduo, assim como se manifesta já no conteúdo semântico do termo ethos, é, por excelência, uma relação dialética, segundo a qual a universalidade abstrata (no sentido da lógica dialética) do ethos como costume é negada pelo evento da liberdade na práxis individual e encontra aí o caminho da sua concreta realização histórica no ethos como hábito (hexis) ou como virtude.164

162 VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Ética e cultura. In: _____. Escritos de Filosofia. São Paulo: Loyola, 2004. v.

II. p. 13.

163 VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Ética e Cultura. In: _____. Escritos de Filosofia. São Paulo: Loyola, 2004.

v. II. p. 26.

164 VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Ética e Cultura. In: _____. Escritos de Filosofia. São Paulo: Loyola, 2004.

Portanto, ao mesmo tempo que é “constitutivamente tradicional, pois o ser humano não conseguiria refazer continuamente sua morada espiritual”165, onde “sua permanência é exatamente o índice próprio de sua historicidade”166, é sabido que o ethos não é:

[...] uma grandeza cultural imóvel no tempo mas, como a própria cultura, da qual é a dimensão normativa e prescritiva, revela um surpreendente dinamismo de crescimento, adaptação e recriação de valores, quando os chamados “conflitos éticos” desencadeiam no seu seio síndromes de crise cujo desfecho é, em geral, a invenção de uma nova forma ética de vida.167

Fica nítido, portanto, que, para Lima Vaz, “a cultura é o domínio onde o ethos se explicita formalmente na linguagem das normas e valores e se constitui como tradição”.168 Para ele, “o ethos [...] não é senão o corpo histórico da liberdade, e o traço do seu dinamismo infinito inscrito na finitude das épocas e das culturas”169. Essa é a base inescapável do pensamento ético de Lima Vaz, que se insere, então, em uma vertente “culturalista” no que se refere à apreensão da natureza do fenômeno ético. Isso deve ficar bem claro para que a interpretação do filósofo não caia em reducionismos e esquematismos vazios. O pensamento ético de Lima Vaz é concreto, pois, como bom discípulo de Hegel, sabe que uma filosofia que se sabe um pensamento de totalidade não pode prescindir da história e da cultura, é dizer, de elementos da realidade, para compreender a realidade. Para ele, “a Ética tem por objeto o ethos, que se apresenta como um fenômeno histórico-cultural dotado de evidência imediata e impondo-se à experiência do indivíduo”170.

Dessa sorte, a investigação de Lima Vaz não se inibe diante da pluralidade e do conflito constatados entre os diversos de ethea históricos. Pelo contrário, avesso às abstrações típicas da filosofia moral kantiana, ele faz da multiplicidade das práxis constatadas no seio das várias comunidades éticas concretas e, no âmbito interno, da tensão fundamental entre práxis e ethos nelas reinantes, os principais elementos para a compreensão do fenômeno ético em sua totalidade. Reconhece, assim, que:

165 VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Introdução à Ética Filosófica. In: _____. Escritos de Filosofia. São Paulo:

Loyola, 2015. v. IV. t. 1. p. 40.

166 VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Introdução à Ética Filosófica. In: _____. Escritos de Filosofia. São Paulo:

Loyola, 2015. v. IV. t. 1. p. 41.

167 VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Introdução à Ética Filosófica. In: _____. Escritos de Filosofia. São Paulo:

Loyola, 2015. v. IV. t. I. p. 41. (grifo no original)

168 VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Ética e Cultura. In: _____. Escritos de Filosofia. São Paulo: Loyola, 2004.

v. II. p. 25.

169 VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Ética e cultura. In: _____. Escritos de Filosofia. São Paulo: Loyola, 2004. v.

II. p. 35.

170 VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Introdução à Ética Filosófica. In: _____. Escritos de Filosofia. São Paulo:

Em cada uma das esferas de relações que irão se inscrever na grande esfera da sociedade, a praxis humana apresenta peculiaridades que se traduzirão em formas particulares do ethos. O indivíduo trabalha e consome, aprende e cria, reivindica e consente, participa e recebe: a universalidade do ethos se desdobra e particulariza em ethos econômico, ethos cultural, ethos político, ethos social propriamente dito. Essas particularizações do ethos são outras tantas mediações através das quais a praxis do indivíduo se socializa na forma de hábitos (ethos-hexis). Elas dão origem igualmente, no interior do mesmo ethos societário, a tensões e oposições cujo âmbito de possibilidade caracteriza exatamente a unidade social como unidade ética.171

Ou seja, é a própria tensão ética reconhecida por Lima Vaz como condição de possibilidade da comunidade ética, compreensão essa que só é possível a partir da lógica dialética, que irá compatibilizar indivíduo e comunidade. Para ele, “o conflito ético se desenha, pois, como fenômeno constitutivo do ethos que abriga em si a indeterminação característica da liberdade”172. E prossegue:

O conflito ético atesta igualmente a peculiaridade da natureza histórica do ethos, em permanente interação como novas situações e novos desafios que se configuram e se levantam ao longo do caminho da sociedade no tempo. Nesse sentido, o conflito ético não é uma eventualidade acidental mas uma componente estrutural da historicidade do ethos. Ele se dá propriamente no campo dos valores e seu portador não é o indivíduo empírico, mas o indivíduo ético que se faz intérprete de novas e mais profundas exigências do ethos.173

Essa verificação da essência dinâmica do ethos e de sua natureza conflituosa atestam inequivocamente que a Ética filosófica de Lima Vaz é uma ciência do ethos. Trata-se de uma filosofia que apreende a ética em seu verdadeiro habitat, a cultura.

Na sequência, iremos expor a reflexão antropológica de Lima Vaz, da qual emerge a própria compreensão da essência ética do homem, que irá embasar o que ele chama de estrutura ontológica da comunidade. Assim como no capítulo anterior, sobre Hegel, em que apresentamos inicialmente o surgimento e desenvolvimento daquilo que entendemos podermos considerar como uma consciência política na perspectiva fenomenológica para depois demonstrarmos como ela se desdobra no sistema, aqui, também, pretendemos evidenciar inicialmente, no bojo da investigação de Lima Vaz acerca da constituição antropológica do

171 VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Ética e Cultura. In: _____. Escritos de Filosofia. São Paulo: Loyola, 2004.

v. II. p. 22.

172 VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Ética e Cultura. In: _____. Escritos de Filosofia. São Paulo: Loyola, 2004.

v. II. p. 30.

173 VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Ética e Cultura. In: _____. Escritos de Filosofia. São Paulo: Loyola, 2004.

v. II. p. 30. O autor explica, ainda, que “é dentro da unidade de um mesmo ethos que, de um lado, sedimentam- se os costumes, normas e práticas que acabam por constituir, através de causas histórico-culturais várias, o conjunto daquela que foi denominada por Bergson ‘moral de pressão’, expressão do conformismo social e, de outro, irrompem novos ideais éticos, novas formas de convivência e estilos de comportamento, abrindo caminho à moral aberta ou ‘moral de aspiração’, ainda na terminologia bergsoniana, e cujo aparecimento dá origem, exatamente, ao conflito ético” (VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Ética e cultura. In: _____. Escritos de Filosofia. São Paulo: Loyola, 2004. v. II. p. 32).

homem, a essência ontológica da intersubjetividade – que será catalogada como um fenômeno fronteiriço entre a antropologia e a ética – para, em seguida, verificarmos como a intersubjetividade toma parte em seu sistema ético.