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1.2 A Fenomenologia do Espírito e a experiência da consciência

1.2.3 Razão: o eu que é um nós

Até o momento da luta de vida e de morte, do primeiro encontro com o outro, a consciência apareceu apenas como consciência de si, isto é, “como consciência particular. Ela agora vai se mostrar como consciência universal. Vai passar pelo momento da Razão, em que ela sabe ser toda a realidade, chegando ao nível de uma consciência coletiva”32. Como explica Lima Vaz, “aqui a consciência faz verdadeiramente a sua experiência como consciência-de-si porque o objeto que é mediador para o seu reconhecer-se a si mesma não é o objeto indiferente do mundo mas é ela mesma no seu ser-outro: é outra consciência-de-si”33.

Doravante, a consciência de si encontra sua verdade na medida em que o saber de si é resultado não mais de uma dialética do desejo cujo resultado é o consumo do objeto inanimado, mas sim de uma dialética na qual ela se põe em relação com outra consciência, não consumível. Dessa maneira:

Somente como consciência de si para outra consciência de si, na medida em que é eu e objeto ao mesmo tempo, ela é Espírito cuja dialética começa pela cisão da luta de morte e da desigualdade do senhor e do escravo, cisão decorrente do fato de reivindicar a consciência de si, isoladamente, a absoluta universalidade e reconhecimento, até o advento do nós ou do momento em que a consciência é um eu e um nós. Esse momento luminoso só será realizado quando a consciência de si reconhecer a outra consciência de si como tal, ou seja, conhecendo-se como livre, como para si, conheça a outra como também livre e para si, como igual. O processo de reconhecimento é exatamente essa conquista da igualdade das consciências de si,

32 SALGADO, Joaquim Carlos. O aparecimento do Estado na “Fenomenologia do Espírito” de Hegel. Revista da

Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, n. 17, p. 178-193, 1976. Disponível em: <https://www.direito.ufmg.br/revista/index.php/revista/article/view/775/722>. Acesso em: 15 nov. 2017. p. 182.

33 VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Senhor e Escravo – Uma Parábola da Filosofia Ocidental. Síntese, Rio de

Janeiro, v. 8, n. 21, p. 7-29, 1981. Disponível em:

como para si, em que o eu se conhece em primeiro lugar nele mesmo e, em segundo lugar, se conhece no outro, ou se vê também no outro (num duplo conhecimento), porque seu igual.34

Ou seja, reconhecendo a outra consciência de si como o outro de si, vale dizer, como sua igual, a consciência de si se conhece concretamente35, já que sabe de si pelo saber de seu outro, isto é, sabe de si como um nós: é razão. É o momento da razão, de unidade do eu com o nós, que emerge do reconhecimento figurado por Hegel na majestosa parábola do senhor e do escravo. Diz ele:

Tomemos em sua realidade essa meta [alcançada]: o conceito, que já surgiu para nós – isto é, a consciência-de-si reconhecida, que tem em outra consciência-de-si livre a certeza de si mesma, e aí precisamente encontra sua verdade. Destaquemos esse espírito ainda interior como substância já amadurecida em seu ser-aí. O que vemos patentear-se nesse conceito é o reino da eticidade.

Com efeito, esse reino não é outra coisa que a absoluta unidade espiritual dos indivíduos em sua efetividade independente. É uma consciência-de-si universal em si, que é tão efetiva em uma outra consciência, que essa tem perfeita independência – ou seja, é uma coisa para ela. [Tão efetiva] que justamente nessa independência está cônscia de sua unidade com a outra, e só nessa unidade com tal essência objetiva é consciência-de-si.

Essa substância ética, na abstração da universalidade, é apenas lei pensada; mas, não menos imediatamente, é a consciência-de-si efetiva ou o etos. Inversamente, a consciência singular só é esse Uno essente porque em sua própria singularidade está cônscia da consciência universal, como de seu [próprio] ser: porque seu agir e seu ser aí são o etos universal.

É na vida de um povo que o conceito da efetivação da razão consciente-de-si tem de fato sua realidade consumada: ao intuir, na independência do Outro, a perfeita unidade com ele; ou seja, ao ter por objeto, como meu ser-para-mim, essa livre coisidade de um outro, por mim descoberta – que é o negativo de mim mesmo.36

Assim, quando a consciência de si se reconhece em outra consciência de si, tem início uma vida partilhada, uma construção coletiva da realidade cuja objetividade é o ethos de um povo: “Essa unidade do ser para o outro – ou do fazer-se coisa – com o ser-para-si, essa

34 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Hegel. São Paulo: Loyola, 1996. p. 252-253. (grifos no

original).

35 “A consciência-de-si encontrou a coisa como a si, e a si como coisa, quer dizer: é para ela que essa consciência

é em si efetividade objetiva. Não é mais a certeza imediata de ser toda a realidade; mas é uma certeza tal, que o imediato tem para ela a forma de um suprassumido, de modo que sua objetividade só vale como superfície, cujo interior e essência é a própria consciência-de-si.

Assim sendo, o objeto a que ela se refere positivamente é uma consciência-de-si; um objeto que está na forma da coisidade, isto é, um objeto independente. No entanto, a consciência-de-si tem a certeza de que esse objeto independente não lhe é nada de estranho, pois sabe que por ele é reconhecida em si. Ela então é o espírito, que tem a certeza de ter sua unidade consigo mesmo na duplicação de sua consciência-de-si e na independência das duas consciências-de-si [daí resultantes].” (HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Tradução de Paulo Meneses. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 249, § 347).

36 HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Tradução de Paulo Meneses. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. p.

substância universal fala sua linguagem universal nos costumes e nas leis de seu povo”37. Isso porque, como esclarece Salgado:

A consciência [...] experimenta que, como consciência individual, não pode ela ser conteúdo do mundo e que só o coletivo pode operar a síntese concreta da consciência e do seu mundo. A operação da razão é pois afastar o individualismo. [...] O concreto é a totalidade dos indivíduos integrados, exprimindo o seu mundo que é a sua realidade histórica, a sua cultura, o espírito de um povo, etc. O individualismo é uma abstração superada no desenvolvimento do espírito.

Como consciência coletiva, a Razão compreende o seu mundo e se torna substância espiritual. Se a substância espiritual pode ser a consciência de si do indivíduo, deve ser a consciência de si da pluralidade dos indivíduos. Deve constituir-se não no “cogito” cartesiano, mas como um “cogitamus”, que é o cogito da comunidade. Daí a razão por que na fase da “coisa mesma” a consciência não tinha a compreensão do seu mundo, embora aí estivesse o mundo humano.

Pelas mesmas razões, as anteriores figuras da consciência são meras abstrações do Espírito, pois, a consciência ainda não existe como um nós.

O cogito cartesiano é abstração porque o “eu existo” de uma consciência de si só é possível por outro “eu existo”. Isto, porém, não significa que a consciência de si universal é um penso em geral. Ela é o “nós” que unifica os “eus”, é a intersubjetividade pela qual os “eus” se enviam através da obra humana.38

Apenas mediante o reconhecimento pela consciência de si da outra consciência de si como seu ser-outro é que é possível falar no surgimento do Estado, pois, doravante identificadas, elas se postam lado a lado, como um nós, que se exterioriza no mundo da cultura, e marcha pela história mediante a objetividade das leis, costumes e tradições do povo, isto é, seu ethos. Destarte, como afirma Salgado, “cada povo, segundo a particularidade do seu ethos, realiza o espírito universal na medida em que constitui um Estado”39. De fato, ensina Lima Vaz que:

Com a passagem da dialética do desejo para a dialética do reconhecimento o movimento da Fenomenologia encontra definitivamente a direção do roteiro que Hegel traçará para essa sucessão de experiências que devem assinalar os passos do homem ocidental no seu caminho histórico e dialético para cumprir a injunção de pensar o seu tempo na hora pós-revolucionária, ou para justificar o destino da sua civilização como civilização da Razão. Com efeito, o que aparece agora no horizonte do caminho para a ciência são as estruturas da intersubjetividade ou é o próprio mundo

37 HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Tradução de Paulo Meneses. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. p.

251-252, § 351. No mesmo sentido, na Filosofia da História, afirma Hegel: “É [na história] que se expressam concretamente todas as facetas da consciência e do querer, da realidade total desse povo. É na história que uma nação encontra o cunho comum de sua religião, de sua constituição política, de sua moralidade objetiva, de seu sistema jurídico, de seus costumes e também de sua ciência, arte e habilidade técnica. [...] Assim, o espírito de um povo é um espírito determinado, que se ergue em meio a um mundo objetivo. Ele existe e persiste na forma do culto religioso, nos costumes, em sua constituição e em suas leis políticas – em todo o complexo de suas instituições, dos acontecimentos e dos fatos que compõem a sua história. É essa a sua obra; é isso que essa nação particular é.” (HEGEL,G.W.F. Filosofia da História. Tradução de Maria Rodrigues e Hans Harden. 2. ed. Brasília: UnB, 1999. p. 60-68).

38 SALGADO, Joaquim Carlos. O aparecimento do Estado na “Fenomenologia do Espírito” de Hegel. Revista da

Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, n. 17, p. 178-193, 1976. Disponível em: <https://www.direito.ufmg.br/revista/index.php/revista/article/view/775/722>. Acesso em: 15 nov. 2017. p. 183- 184.

humano como lugar privilegiado das experiências mais significativas que assinalam o itinerário da Fenomenologia.40

É aqui que nos colocamos diante daquilo que acreditamos ser a atividade da consciência política em Hegel: o reconhecimento como a experiência (política) da consciência que faz dela, no célebre aforismo de Hegel, “Eu que é Nós, Nós que é Eu”41. É para a universalidade desse nós que a consciência política encaminha a experiência humana, a universalidade da comunidade em cujo ethos o Estado e o direito (logo, como pretendemos evidenciar, a consciência jurídica) deitam seu fundamento histórico-fenomenológico. “O universal, descobre-o a consciência de si na inter-relação de consciências de si que realizam a obra da cultura; é Razão”42. Essa inter-relação, a que entendemos corresponder a consciência política de Salgado, é o fundamento do Estado e da cultura, cuja gênese, portanto, é exatamente o reconhecimento descrito por Hegel na Fenomenologia como o momento da Razão em que, na figura da dialética do senhor e do escravo, a consciência de si se revela como consciência de um nós.