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Da consciência moral à consciência jurídica

2.5 Conclusão do capítulo

3.1.2 Da consciência moral à consciência jurídica

Ao situar o direito como ponto superior do processo ético, Salgado irá conceber o aparecimento da consciência jurídica em Roma como superação da consciência moral grega. A análise do significado dessa transição e o papel que a consciência política nela desempenha será feita mais adiante, quando ofereceremos nossa interpretação particular desse processo trazendo a lume as contribuições de Hegel e Lima Vaz.

Para Salgado, que compartilha com Hegel uma compreensão crítica da noção de moralidade haurida da filosofia moral de Kant, que para Hegel encerra o momento particular do Espírito Objetivo, o que caracteriza a consciência moral é seu aspecto interior, abstrato, aspecto esse que assim conforma as determinações morais que ela intui, apesar da pretensão de universalidade. Conforme a lição de Salgado, a consciência moral “não busca a lei, mas o bem diretamente. Essa consciência passa a buscar a lei em si mesma e se recolhe na busca do bem em si mesmo [...]. Por isso a consciência moral se volta para si mesma e cria sua própria lei”338. A atividade da consciência moral é a fixação da lei moral, cuja fonte, portanto, é o próprio sujeito que assim identifica seu dever moral. Entretanto, apesar de a lei moral ser concebida pelo indivíduo, a consciência moral não limita apenas a si própria a abrangência das determinações que cria. Com isso, a lei moral é considerada universal pela consciência moral que em tese a capta, mas em verdade ela não é nada mais que uma lei particular, pois não aponta para nenhuma instância objetiva externa de onde poderia ter sorvido seu conteúdo, apesar de pensar assim proceder.

Nesse ponto ocorre a alienação da consciência moral em uma autoridade legisladora externa, sobretudo a religião, que para ela passa a ser uma fonte objetiva das normas morais que em realidade ela mesma criou. Segundo Salgado, isso ocorre porque, por ser difícil

337 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça no mundo contemporâneo: fundamentação e aplicação do

direito como maximum ético. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 41-2.

338 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça no mundo contemporâneo: fundamentação e aplicação do

encontrar um bem universal externo, ademais inexistente antes da formalização objetiva desse bem, o que só ocorrerá com o advento da consciência jurídica, por meio da lei posta, a consciência moral terá que conformar internamente esse bem a que visa para, num segundo momento, aliená-lo em outra consciência, externa. Assim, “cria uma consciência externa e a absolutiza, para que essa consciência externa possa criar a lei boa, que realiza um fim bom, pois sendo um absoluto sabe qual é o fim bom”339.

A consciência moral considera suas proposições subjetivas absolutas porque atribui a fontes externas seu conteúdo (e daí vem a ideia de direito natural), ou seja, se aliena. A fonte legisladora externa, inconscientemente constituída dessa forma, faz da lei moral, para a consciência do próprio sujeito que a criou, uma lei objetiva, universal. Portanto, como seu conteúdo subjetivo é alienado em uma consciência externa, por sua absolutização, a consciência moral passa a se supor objetiva, mas essa pseudo-objetividade em verdade é “a universalização do eu, por isso sua absolutização imanente [...]. Essa universalização é totalmente abstrata, pois que pensada no interior da pura subjetividade de uma vontade pura”340.

Ora, como “a consciência moral não encontra na sua atividade um universal concreto, por estar sempre recolhida na individualidade ou subjetividade”341, competirá à consciência jurídica encontrar uma universalidade objetiva, que é a lei. A passagem da consciência moral para a consciência jurídica se dá pela objetivação da lei moral particular em uma realidade verdadeiramente objetiva que é a lei jurídica, compartilhada por todos os membros da comunidade, e aqui se tem a passagem da moral para o direito.

A irrupção da consciência jurídica diz respeito ao descolamento do direito da moral promovida pelos romanos, que criaram uma ciência distinta da Ética para o estudo do direito e da justiça, esta que para eles é um valor jurídico, não moral. É assim que “a consciência jurídica ou consciência do justo como valor universal propriamente jurídico experimenta a sua processualidade histórica e revelação conceptual no movimento ímpar da jurística romana, seu lugar de nascimento”342.

Para os gregos, contudo, de cuja consciência moral a consciência jurídica romana se descola, a Ética cuida do agir virtuoso, sendo a virtude objeto indistinto da moral e do direito,

339 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça no mundo contemporâneo: fundamentação e aplicação do

direito como maximum ético. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 31.

340 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça no mundo contemporâneo: fundamentação e aplicação do

direito como maximum ético. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 33.

341 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça no mundo contemporâneo: fundamentação e aplicação do

direito como maximum ético. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 35.

342 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça no mundo contemporâneo: fundamentação e aplicação do

tal como se observa em Aristóteles. Salgado, como jurista, endossa e explicita a concepção dos romanos, demonstrando que, “se a condição transcendental de valoração do bem e do mal está na consciência moral, a do justo e injusto se dá na consciência jurídica”343. Daí sua crítica a Aristóteles – crítica essa que, como veremos adiante, também se aplica a Lima Vaz –, segundo a qual uma das grandes confusões conceituais no tratamento do tema da justiça reside no fato de não ter ele “separado direito e moral, e ter tratado da justiça na ética, como virtude moral. Na verdade, a justiça era de ser tratada no direito, pois é valor jurídico. A justiça deve ser tratada pelo direito”344. Assim, enquanto “a consciência filosófica grega desenvolveu o conceito moral de justiça”345:

[...] a consciência jurídica romana formulou o conceito de justiça jurídica e, ao identificar direito e justiça, pôs o político a serviço da pessoa de direito, concebendo o direito como máximum ético. Para os gregos a justiça é assunto da ética, ao passo que para os romanos (o que Kelsen parece não ter percebido) é tema do direito; o conceito de justiça é jurídico.346

Esse é o significado do acréscimo do termo ius, por Ulpiano, à definição de justiça dos gregos: dar a cada um o que é seu. Doravante, para o romano, justiça é dar a cada um seu direito, sendo o direito compreendido como aquilo que é objetivamente devido por emanar de uma fonte objetiva, reconhecida por todos: a lei. Quando os valores morais até então adstritos ao plano moral são reconhecidos formalmente em lei, eles se tornam universais e concretos, submetendo igualmente a todos. Essa passagem da moral para o direito se dá, portanto, pela universalização dos conteúdos morais até então partilhados subjetivamente com pretensão de universalidade – que então era abstrata. Quando a norma moral subjetiva passa a ser partilhada pelas outras consciências, ela se torna verdadeiramente universal, porque verdadeiramente referente à coletividade que partilha sua aceitação, e daí se objetiviza na lei. A lei é, assim, a fonte do valor do justo na condição de um valor moral (o bem individual) suprassumido na objetividade de um bem universal e concreto, pois por todos considerado como devido a todos. Salgado esclarece:

É no justo que se encontra a realização da consciência moral como jurídica, pois nesse âmbito axiológico a consciência é um nós [...], uma vez que o outro é o em que a consciência é não mais um eu abstrato, isto é, uma universalização do eu

343 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça no mundo contemporâneo: fundamentação e aplicação do

direito como maximum ético. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 40.

344 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça no mundo contemporâneo: fundamentação e aplicação do

Direito como maximum ético. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. 50.

345 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça no mundo contemporâneo: fundamentação e aplicação do

Direito como maximum ético. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 2007. p. 4.

346 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça no mundo contemporâneo: fundamentação e aplicação do

abstratamente, mas uma universalização do eu concretamente, um nós concreto. Nesse momento da consciência jurídica, a lei é objetivamente posta por ela, mas como por um nós; e sendo posta por um nós, a lei não é mais produto de uma subjetividade e universalidade abstrata do eu transcendental, mas adquire objetividade e universalidade concreta como lei posta por todos concretamente.347

Dessa forma, o caráter objetivo do direito, que se deve à positividade da lei, conduz à constitutiva mudança polar do sujeito da prestação jurídica em relação ao sujeito da prestação moral. Enquanto no primeiro caso quem protagoniza a relação entre dois sujeitos morais é aquele portador do dever, a relação jurídica é capitaneada pelo sujeito que tem o direito à prestação devida pelo outro sujeito; ele se torna, por isso, sujeito de direitos, pois pode reivindicar a prestação que juridicamente lhe cabe. Na lição de Salgado:

A diferença entre a consciência jurídica romana e a moral socrática aparece com nitidez no deslocamento polar da idéia de justiça, entre os gregos concentrada no sujeito portador do dever moral da prestação da justiça como exercício da virtude, para entre os romanos concentrar-se no sujeito titular do direito.348

O direito, portanto, tal como Kelsen irá desenvolver e levar às últimas consequências, se distingue da moral por um critério essencialmente formal, pois, independentemente do conteúdo da prestação, ela se destaca por se encontrar positivada formalmente, e por isso é devida por todos. A coercibilidade da norma jurídica é a forma pela qual se assegura o acesso ao aparato estatal ao sujeito que, municiado pela actio, quer fazer respeitado seu direito, dever de todos.

A consciência jurídica, portanto, é a consciência de um nós, porque promove a formalização de valores que são considerados universais pelos membros da comunidade, e por isso são por ela formalmente declarados como direitos. O que caracteriza a consciência jurídica é a universalização que ela promove dos valores morais até então comungados subjetivamente com pretensão de universalidade – uma universalidade abstrata, portanto – e por isso ela é o universal concreto, sendo que “essa universalização concreta se dá não no plano da racionalidade subjetiva da moral (Kant) ou de um bem moral objetivado por essa mesma consciência moral subjetiva, mas decorre da consciência jurídica considerada como um nós”349.

Destarte:

A universalidade do direito, formal e material, de que decorre a sua validade formal e material, não se suporta numa autoridade moral, mas no reconhecimento da

347 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça no mundo contemporâneo: fundamentação e aplicação do

direito como maximum ético. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 34.

348 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça no mundo contemporâneo: fundamentação e aplicação do

direito como maximum ético. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 53.

349 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça no mundo contemporâneo: fundamentação e aplicação do

tributividade universal de um valor e sua formalização como de uma vontade universal formal; universalidade material ou reconhecimento (saber) de valores universalmente tribuíveis e universalidade formal ou declaração (querer) formal de toda sociedade como direitos, portanto, exigíveis, é o que gera a obrigatoriedade do direito.350

Essa passagem da consciência moral para a consciência jurídica, cuja compreensão é capital para a compreensão do direito a partir da sua distinção constitutiva da moral, é certamente um dos pontos centrais do pensamento de Salgado. Seu significado é a explicitação universalidade do direito, que se exprime maximamente na figura do sujeito universal de direitos, o sujeito de direitos fundamentais do Estado Democrático de Direito, realização da ideia de justiça no mundo contemporâneo.

Mas a passagem da particularidade da consciência moral para a universalidade da consciência jurídica é propiciada, segundo Salgado, pela consciência política, cuja atividade tentaremos delinear a partir da interpretação global da obra do jusfilósofo, apoiada no pensamento dos filósofos que no nosso entendimento mais fortemente o influenciaram: Hegel e Lima Vaz.

Com efeito, em A idéia de justiça no mundo contemporâneo e em seus últimos artigos, Salgado se refere com certa reserva à consciência política, assim como à própria consciência moral, o que é natural, já que seu objetivo declarado é compreender a ideia de justiça, como tal realizada historicamente pela consciência jurídica. Mas, mesmo sem ser esse seu objetivo principal, ele brilhantemente intui uma concepção original de consciência política cuja riqueza e profundidade nos estimulou a buscar interpretá-la.

Nossa proposta, assim, é aproximar a consciência política de Salgado do momento fenomenológico da razão e sistemático do Estado em Hegel e da categoria da intersubjetividade em Lima Vaz, todos tendo em comum o movimento do reconhecimento, pelo qual o eu se descobre como um nós, ou seja, um movimento cuja atividade é a constituição da universalidade do nós.

Como vimos, para Salgado, a universalidade é a marca do direito, pois ele realiza a tribuição e formalização, como direitos subjetivos, dos bens entendidos pela coletividade como devidos a todos, indistintamente. Ora, sendo a consciência política a apontada por Salgado como responsável pela mediação entre a consciência moral – cuja essência é a interioridade – e a consciência jurídica – cuja nota é a universalidade –, é porque, conforme entendemos, ela promove essa universalização.

350 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça no mundo contemporâneo: fundamentação e aplicação do

Com esteio na filosofia hegeliana e nas contribuições de Lima Vaz, tentaremos demonstrar que Salgado concebe a consciência política como o movimento dialético que promove o reconhecimento, cujo significado mais profundo é a elevação do homem à universalidade, esta que para Salgado se realiza ao fim e ao cabo pelo direito. Nossa tese, que doravante passamos a demonstrar, pode ser assim enunciada: a mediação promovida pela consciência política entre a consciência moral e a consciência jurídica, tal como Salgado estabelece, se dá pelo reconhecimento.

Trata-se de um processo que possui um profundo significado filosófico, pois por meio dele a consciência de si conhece a si por meio do reconhecimento da outra consciência de si, e assim instaura a relação entre os homens como uma relação entre iguais, entre um nós. Esse movimento, em Hegel, se inicia no momento da razão, que ergue, pelo reconhecimento, o “eu que é um nós e o nós que é um eu”, e chega ao sistema como o reconhecimento concreto no seio do Estado que é o patriotismo; em Lima Vaz, temos a categoria da intersubjetividade (que na Ética Filosófica tem sua singularidade dada pelo que ele designa por consciência moral intersubjetiva) que, também pelo reconhecimento e seu prolongamento, o consenso, instaura a comunidade ética.

Nosso entendimento é que Salgado atribui a realização dessa mesma atividade fundamental de reconhecimento da outra consciência ao momento que optou designar por consciência política, que, segundo ele, instaura – politicamente, portanto – a universalidade da consciência jurídica. É o reconhecimento, empreendido pela consciência política, que tem o condão de propiciar a formação sempre renovada, pois dialética, do vínculo ético-político que iguala os membros da comunidade, fazendo deles sujeitos universais de direitos. Isso só ocorre porque é por meio da constituição política de um nós que se torna historicamente viável a realidade do ethos e, logo, do direito, que tem nesse nós o sujeito e destinatário de suas normas universais.