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1.2 A Fenomenologia do Espírito e a experiência da consciência

1.2.5 Revolução e reconhecimento

A Revolução Francesa é o evento histórico mais importante para Hegel, pois representa o ponto de chegada do processo histórico-fenomenológico de desenvolvimento do Estado, que começa com a bela totalidade da pólis grega e culmina no seu restabelecimento, agora mais bela e mais universal. A pólis grega sempre fora o arquétipo da existência política para Hegel; seus textos dos tempos de juventude, de franca inspiração romântica, já deixavam antever sua predileção pelo ideal de vida integrado. Mas, ciente dos obstáculos ao retorno a esse panorama devido ao surgimento e inexorável participação do indivíduo na política, ele fará desse óbice o degrau para a atualização da pólis aos tempos modernos, e assim, pela dialética, fará da

meta e resultado deles, a consciência-de-si efetiva do espírito absoluto.” (HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Tradução de Paulo Meneses. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 306-7, §§ 441-443).

54 SALGADO, Joaquim Carlos. O aparecimento do Estado na “Fenomenologia do Espírito” de Hegel. Revista da

Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, n. 17, p. 178-193, 1976. Disponível em: <https://www.direito.ufmg.br/revista/index.php/revista/article/view/775/722>. Acesso em: 15 nov. 2017. p. 182.

subjetividade uma instância mediadora para a restauração da totalidade ético-estatal em um momento superior ao grego.

Essa realização da liberdade era, desde seu aparecimento, a meta do Espírito no plano objetivo: ser em-si e para-si, autoconsciente. Ora, a consciência imersa na totalidade imediata não pode conhecer a substância na qual está inserida pois lhe falta a consciência dessa realidade. Era, assim, uma universalidade abstrata. Apenas quando se aliena e volta para si mesma, para a sua particularidade interior, ela conhece a realidade objetiva, mas como algo externo. Por consequência, o vínculo com a comunidade deixa de ser algo natural, como um dado, e com isso o reatamento desse elo deverá ser conscientemente buscado pela sua vontade. A liberdade reconhecida a todos na Revolução efetivar-se-á na comunidade como vontade substancial, pela qual a unidade é visada. Esse é o Estado que Hegel vê nascer após a Revolução, que realiza a liberdade em si e para si em uma universalidade que é, assim, concreta. Como atesta Salgado, “o Estado de Hegel, pós-revolucionário, realiza essa unidade da liberdade substancial e da liberdade subjetiva”55, pois:

A Revolução é a marca do “destino” histórico ocidental, da cisão e da reconciliação, da partida e da chegada, do abandono e do retorno triunfal. Afirmação absoluta do indivíduo livre, ela prepara o encontro harmonioso dessa individualidade com a comunidade, cuja realização a história ocidental persegue tragicamente, desde a fragmentação da bela totalidade ética da polis grega. A nova era que se abre torna impossível aceitar a vida na sociedade contemporânea sem o conceito harmonioso da sociedade política e do indivíduo que a compõe e nela exerce a sua liberdade. Nela novamente o homem põe-se, frente a frente, no combate pelo reconhecimento da liberdade individual, fazendo a experiência da morte, na trágica eliminação do ser- para-si vivente.56

E ainda:

[...] sem a Revolução Francesa não poderia Hegel desenvolver a teoria política do Estado contemporâneo tal como a concebeu: sistema convencional de realização da liberdade. Eis porque Hegel reconhece na Revolução Francesa o momento histórico da realização da liberdade, objetiva e subjetiva, bem como do direito nela fundado, pois uma constituição foi elaborada segundo o conceito do direito; nela tudo encontra seu fundamento. Pela primeira vez, “desde que o sol está no firmamento” o homem constrói a realidade segundo o modelo do pensamento.57

55 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Hegel. São Paulo: Loyola, 1996. p.320.

56 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Hegel. São Paulo: Loyola, 1996. p. 315. (grifo no original). 57 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Hegel. São Paulo: Loyola, 1996. p. 307. Essa esplêndida

passagem de Hegel sobre a Revolução que Salgado cita assim se encontra na Filosofia da História: “Nunca, desde que o Sol começou a brilhar no firmamento e os planetas começaram a girar ao seu redor, se havia percebido que a existência do homem está centrada em sua cabeça, isto é, no pensamento, a partir do qual ele constrói o mundo real. Anaxágoras foi o primeiro a dizer que o νοῠς rege o mundo; mas só agora o homem percebeu que o pensamento deve governar a realidade espiritual. Assim se deu um glorioso amanhecer. Todos os seres vivos pensantes comemoraram essa época. Naquele período, reinou um sublime entusiasmo, um entusiasmo do espírito, que estremeceu o mundo como se só agora tivesse acontecido a verdadeira reconciliação

A liberdade é o grande fundamento da Revolução Francesa, já que o trunfo revolucionário é a constituição de uma organização política livremente pactuada por indivíduos livres. O Estado pós-revolucionário advém, portanto, do reconhecimento de que todos são livres. No lapidar aforismo de Hegel, “os orientais só sabiam que um único homem era livre, e no mundo grego e romano alguns eram livres, enquanto nós sabemos que todos os homens em si – isto é, o homem como homem – são livres”58. Essa constatação de que todos os homens são livres é o ponto de chegada da dialética do reconhecimento, e a organização política dele decorrente é o Estado pós-revolucionário que concretiza no plano objetivo a liberdade a todos reconhecida. A declaração de direitos é o marco desse reconhecimento universal da liberdade, e seu produto é o Estado que advém da Revolução como a organização racional da liberdade.

Portanto, a Revolução é a derradeira figura fenomenológica do reconhecimento, iniciado pela dialética do senhor e do escravo, porque consiste no reconhecimento universal da liberdade e sua concretização no plano político-objetivo. Com isso, se compreende o alerta de Karine Salgado, segundo o qual “o tema do reconhecimento é tratado no plano fenomenológico em dois momentos [:] a relação entre o senhor e o escravo e a Revolução Francesa”59. A Revolução se posta ao final do percurso inaugurado na dialética do senhor e do escravo pela luta de vida e de morte, resultando diretamente do já explicitado processo histórico de luta do servo pelo reconhecimento da igualdade em liberdade com o senhor. Trata-se do reconhecimento concreto da outra consciência de si como o outro de mim livre, que ocorre porque o indivíduo moderno, que na Fenomenologia realiza a mediação para o momento do Estado ético mediato, o faz pela ação revolucionária, por meio da qual se descobre indivíduo livre, que pode, portanto, agir livremente no lócus político de modo a conformar racionalmente um Estado que será a morada da liberdade.

Doravante, esse reconhecimento concreto do indivíduo livre que se dá na Revolução Francesa possibilitará o aparecimento do Estado concreto cujo tratamento sistemático será dado por Hegel na Filosofia do Direito. Assim, como ressalta Salgado, a “Filosofia do Direito [é o] plano sistemático do tratamento do reconhecimento”60, pois nela Hegel irá explicitar a

do divino com o mundo.” (HEGEL, G. W. F. Filosofia da História. Tradução de Maria Rodrigues e Hans Harden. 2. ed. Brasília: UnB, 1999. p. 366).

58 HEGEL,G.W.F. Filosofia da História. Tradução de Maria Rodrigues e Hans Harden. 2. ed. Brasília: UnB,

1999. p. 25.

59 SALGADO, Karine. A Revolução Hegeliana em Joaquim Carlos Salgado – Breves Comentários sobre a Obra

A idéia de justiça em Hegel. In: SALGADO, Joaquim Carlos; HORTA, José Luiz Borges (Coord.). Hegel, liberdade e Estado. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 105.

60 SALGADO, Karine. A Revolução Hegeliana em Joaquim Carlos Salgado – Breves Comentários sobre a Obra

A idéia de justiça em Hegel. In: SALGADO, Joaquim Carlos; HORTA, José Luiz Borges (Coord.). Hegel, liberdade e Estado. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 105.

estruturação lógico-dialética do Estado que a Revolução fez surgir. Por isso, é possível dizer que o reconhecimento, “no máximo, é o começo aparente dos Estados, não o seu princípio substancial que, para Hegel, é o fundamento racional ou sua explicação na esfera do conceito, a ser estudado na Filosofia do Direito”61.

Portanto, vimos neste capítulo que o reconhecimento se desdobra em duas figuras fenomenológicas: a primeira, que concerne ao momento da razão e consequente aparecimento do Estado exterior, do Espírito e da história, é a dialética do senhor e do escravo, por meio da qual a consciência de si se identifica com as outras consciências de si; a segunda é a Revolução Francesa, na qual o Espírito, sabendo-se livre, isto é, reconhecendo a liberdade de todos, objetivará sua liberdade no Estado racional concreto.

Importa registrar que, sendo a Revolução uma figura fenomenológica, nela o Espírito ainda está sujeito aos revezes que marcam a experiência da consciência e, por isso, antes da efetivação do Estado concreto dela resultante, a liberdade individual que nela se projeta ainda é abstrata, e por isso o Espírito experimenta a perda de si no Terror62, para, após, reencontrar- se.

Superada essa negatividade, findo seu calvário, chega o Espírito à sua manifestação fenomenológica no Estado pós-revolucionário, o Estado que Hegel vê nascer, e a tarefa do Filósofo agora será oferecer-lhe, para além da explicitação da racionalidade do devir histórico- fenomenológico que possibilitou seu surgimento, o tratamento sistemático exigido por sua racionalidade imanente, isto é, sua necessidade lógica dentro do sistema, para além de sua necessidade histórica determinada pelo devir do Espírito. Por isso Salgado afirma que, após a análise fenomenológica do reconhecimento na Revolução, chega-se:

[...] ao plano sistemático do tratamento do reconhecimento, a Filosofia do Direito, em que o reconhecimento deixa de ser um momento abstrato para realizar-se concretamente na sua forma mais alta, “ existência política como esfera do consenso plenamente racional”, no seio da qual o desejo é substituído pela vontade racional e o trabalho servil pelo trabalho livre. Nesse caso, já não se trata mais de uma consciência de si no plano da existência singular, mas de uma consciência de si no plano da realidade efetiva, a consciência de si universal, cuja expressão é o Estado.63

Passemos, então, à análise, no plano sistemático, do Estado hegeliano.

61 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Hegel. São Paulo: Loyola, 1996. p. 267.

62 Sobre o terror na Revolução Francesa, cf. SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Hegel. São Paulo:

Loyola, 1996. p. 269 e ss.; e COELHO, Saulo de Oliveira Pinto. Revolução e terror como figuras-chave para a compreensão da liberdade no Estado racional hegeliano. In: SALGADO, Joaquim Carlos; HORTA, José Luiz Borges (Coord.). Hegel, liberdade e Estado. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 117-137.