• Nenhum resultado encontrado

Parte II – O Plano Baker e o Plano Brady

Capítulo 3: A Crise da Dívida

3.3 A crise da dívida na América Latina – Visão da Periferia

3.3.3 A Crise na América Latina

Como vimos na seção anterior, a crise econômica dos anos 1970 nos Estados Unidos resultou em inflação e estagnação econômica. Em 1979, diante da iminência de uma corrida internacional contra o cambaleante Dólar, o Federal Reserve dava início a uma mudança nas diretrizes econômicas dos Estados Unidos. Os novos rumos apontavam para o receituário da ortodoxia em substituição às políticas Keynesianas que perduravam desde os anos 1940. Reflexo desta nova mentalidade, a elevação dos juros internacionais iniciou-se ainda em 1979. A Tabela 11 abaixo, mostra a evolução das taxas de juros internacionais mais importantes, a prime e a Libor entre meados de 1975 e 1980:

Tabela 11 – Evolução das taxas de juros internacionais: 1975 - 1980

O resultado não poderia ser diferente, sendo os EUA a maior economia mundial: um afluxo gigantesco de capital internacional passou a se dirigir aos Estados Unidos que, com juros elevados, tornavam-se bastante atraentes e seguros para os investidores. Enquanto a potência americana “drenava” o capital de todo o mundo, sua moeda sofria nova valorização.

Como resultado, entre 1980 e 1982, o dólar teve uma valorização real de 28%. A política do presidente Ronaldo Reagan nos anos 1980, ao elevar os gastos militares e o déficit público, pressionou a taxa de juros para cima, atraiu mais recursos externos e manteve a tendência à valorização do dólar.215

A crise havia sido afastada do solo dos EUA. Mas, e no resto do mundo?

O resto do mundo assistiria nos anos 1980 o capital escoar de seus cofres rumo aos Estados Unidos. Para as economias centrais, o impacto não seria traumático. Alemanha e Japão abandonaram suas políticas de taxas de câmbio relativamente estáveis e, assim como outras nações centrais, adotaram medidas de privilégio a suas produções domésticas216. O crescimento verificado na “Era de Ouro” jamais se verificaria novamente, mas nos anos 1980 o cenário era de recuperação ante os fracos desempenhos dos anos 1970.

A situação tornou-se particularmente grave, porém, para os países da periferia que, durante a “Era de Ouro” contraíram dívida externa a ser paga em Dólares. Os países da América Latina, em particular, que, assim como o Brasil, habituaram-se no século XX a praticar uma política de financiamento externo baseado em sucessivos endividamentos (a rolagem da dívida) seriam afetados diretamente pela nova diretriz da economia dos EUA.

O ano de 1979 foi um marco crítico para as economias latino-americanas: o segundo choque do petróleo elevou os gastos dos países que dependiam da importação do produto; a política monetária restritiva dos Estados Unidos jogou a taxa de juros para níveis superiores a 10% ao ano, causando impacto sobre o serviço da dívida dos países latino-americanos. Ademais, o aumento do preço do petróleo e da taxa de juros teve impacto recessivo sobre a economia norte- americana (e mundial) nos anos iniciais da década de 1980, com reflexos negativos sobre os preços dos produtos exportados pelos países latino-americanos.217

Durante toda “Era de Ouro” do Capitalismo, as políticas de câmbio fixo possibilitavam a estratégia da rolagem da dívida com relativo baixo risco. O objetivo da estratégia adotada largamente pelos países periféricos não era pagar a dívida com moeda própria, mas rolá-la,

215 SAES e SAES, História Econômica Geral, 2013, p. 559. 216 SAES e SAES, História Econômica Geral, 2013, p. 559. 217 SAES e SAES, História Econômica Geral, 2013, p. 559.

contraindo novos empréstimos constantemente, até o momento que o crescimento econômico fomentado pelos empréstimos mitigasse o valor da dívida.

Ocorre que, com o fim do Câmbio Fixo, cada país fazia uso de políticas que mantivessem suas moedas num patamar que oferecesse maior proveito para si mesmos. Os riscos para os países tomadores de empréstimos tornaram-se enormes de repente.

Em suma, o fim do sistema monetário internacional construído em Bretton Woods deu origem a um regime de taxas flutuantes em que o câmbio pode ficar – e frequentemente fica – subordinado à definição das políticas domésticas cujos objetivos prioritários são outros que não a estabilidade da taxa de câmbio.218 O fim do câmbio fixo determinava o fim da política latino-americana de “substituição de importações” financiada por crédito externo a baixo risco. A suspensão do modelo, porém foi postergada, visto que se mantivera, no plano internacional, uma certa abundância de crédito, movida pela linha concedida por bancos privados internacionais a países do terceiro mundo. O modelo de obtenção de empréstimos e rolagem da dívida persistiu ainda por toda uma década, alimentando um processo industrial já incompleto.

A crise latino-americana que então explodiu era essencialmente consequência de duas decisões tomadas no início dos anos 70: pelo lado da América Latina, a decisão de continuar com uma estratégia de crescimento e com um modo de intervenção estatal (a substituição de importações) que não mais funcionavam; pelo lado dos países credores, a decisão de financiar essa estratégia, assegurando assim sua sobrevida artificial.219

A manutenção das políticas de rolagem da dívida ante um câmbio internacional flutuante por toda a década de 1970 mostrou-se uma escolha errada. O “Pecado Original”, que durante quase todo o século XX significava somente a possibilidade de uma ameaça, agora em 1979, com a elevação dos juros internacionais sentenciava a iminência de uma crise sem precedentes para os países a América Latina, tal qual descrito por Eichengreen, e aqui detalhado na seção 1.2. Quem contraíra dívida em moeda estrangeira (“Pecado Original”) durante a “Era de Ouro”, agora teria suas escassas reservas escoadas rumo aos países credores.

Grosso modo, a crise internacional, originada de escolhas feitas no centro do sistema nos anos 1940, atacara as economias centrais nos anos 1970. As economias periféricas, levadas a fazer escolhas que pareciam seguras tendo em vista o panorama internacional desde a década de

218 SAES e SAES, História Econômica Geral, 2013, p. 559. 219 PEREIRA, “Uma interpretação da América Latina”, 1993, p. 41.

1950, agora pagariam a conta da crise e possibilitariam a retomada do crescimento no centro do sistema nos anos 1980, mergulhando, elas mesmas, num problema muito maior.

Este preço pode ser entendido com a constatação de que com a nova configuração da economia internacional a partir da elevação dos juros internacionais a partir de 1979, os países da América Latina precisariam pagar um preço mais elevado pelo petróleo e por insumos e pagar juros maiores pelo dinheiro emprestado, em Dólar, considerando que a moeda americana agora se valorizava dia a dia. Como se não bastasse o aumento das despesas, ainda haveria uma redução significativa nas receitas, dado que seus produtos de exportação tinham perdido valor.

A dimensão do problema pode ser entendida ainda pela citação de Calderon e Fontes abaixo, usando o caso brasileiro como exemplo:

As taxas nominais de juros subiram de 9% em 1978 para 17% em 1981 e, consequentemente, a LIBOR subiu para mais de 14% entre 1980-82. O Brasil não só foi prejudicado com o aumento das taxas de juros externas, como também lesado duplamente no âmbito das relações comerciais. Primeiro, porque os preços das

commodities caíram no mercado internacional em 13,3% a.a. no período 1979-81,

enquanto que o preço dos manufaturados caíram apenas 2,4% a.a.; e segundo, porque o preço do petróleo, elemento em grande parte importado e indispensável à estrutura produtiva brasileira, aumentou significativamente.220

No Brasil, os tomadores privados de empréstimos não tinham como arcar com o novo patamar dos juros e do Dólar. A solução encontrada foi simples: o Estado comprou estas dívidas, elevando os débitos nacionais, num processo muito similar à antiga prática de privatização dos lucros e de “socialização dos prejuízos” descrito por Furtado quando da política de defesa do preço do café nas primeiras décadas do século XX.221

Parte desse movimento ocorreu como consequência da política de estabilização do dólar e de combate à inflação através dos juros altos e do endividamento do Tesouro dos EUA, do governo Reagan. A taxa de juros que chegou a ser negativa, dada a elevada inflação nos Estados Unidos, atingiu mais de 20% ao ano, levando inicialmente México e Argentina a declararem moratória em 1982. Esse fato quase provocou a quebra generalizada dos grandes bancos e empresas. No Brasil, como os tomadores de empréstimos privados não podiam pagar os novos patamares de juros (as taxas eram flutuantes), a dívida foi estatizada e convertida em dívida pública, evitando-se a moratória naquele momento.222

A dívida total dos países em desenvolvimento, importadores de petróleo, aumentava rapidamente. Segundo Cerqueira, o total das dívidas “que em 1973 estava em patamares

220 CALDERON e FONTES, “Credibilidade e mercado secundário da dívida externa brasileira”, 1998. p. 72. 221 FURTADO, Formação econômica do Brasil, 2005, p.148.

inferiores a US$ 100 bilhões, em 1981 elevou-se para US$ 450 bilhões e em 1982 para US$ 500 bilhões”223.

Saes e Saes ressaltam que estas dificuldades, no entanto, não representaram um colapso imediato na estratégia de rolagem da dívida. “Apesar da crescente fragilidade, financeira, os bancos continuaram a emprestar para a América Latina até que, em 1982, o primeiro sinal da crise da dívida foi acionado.”224

Segundo Cerqueira225, em 1982, uma série de fatores sucessivos vieram a deflagrar a crise anunciada. O autor cita a instabilidade política no Oriente Médio, a insolvência da Polônia, as dificuldades de grandes empresas alemãs, canadenses e americanas e a guerra das Malvinas no Atlântico Sul.

Em agosto de 1982, somando-se aos fatores acima, o México decretou moratória de sua dívida, levando aí sim ao colapso o fornecimento de crédito para os países da América Latina. Como resultado, uma crise sem precedentes na região se estabeleceu.