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A prática de fornecer empréstimos em moeda estrangeira sofreu forte impulso no mundo a partir do início do século XIX, quando do momento de consolidação da Inglaterra como potência industrial da economia mundial.

A industrialização inglesa, ao despejar produtos em todo o mundo, havia intensificado o comércio internacional, incentivado maior fluxo de capitais entre as nações e modificado as relações de produção como nada antes na História.

Se para Arrighi, o avanço inglês no início do século XIX significava um novo ciclo de acumulação na economia mundial, maior que o ciclo Holandês que se encerrava28, para Hobsbawm, a Revolução Industrial era “a formação de uma única economia mundial liberal e a penetração e conquista finais do mundo subdesenvolvido e não-capitalista pelo capitalista”29.

Transformações decorrentes deste triunfo capitalista espalhavam-se pelo mundo. A indústria em pouco tempo adentraria outras nações, marcando a superação da economia mercantil. Na América Latina, uma onda liberal varreu os antigos impérios coloniais da Espanha e Portugal. Recém criados, os novos países precisavam de capital para pagar pelo processo de independência. Acompanhando as transformações da economia mundial, o capital atravessa o Oceano e aporta nas economias recém independentes da América Latina, tendo como origem

28 Ver ARRIGHI, O Longo Século XX: Dinheiro, Poder e as Origens do Nosso Tempo, 1996. 29 HOBSBAWM, Da revolução industrial inglesa ao imperialismo, 1969, p. 294

a Inglaterra. Segundo Saes, “O primeiro grande fluxo de capital inglês para a região foi realizado durante a década de 1820 como forma de pagamento das independências.”30

Junto com a autonomia nacional, nasce na América Latina a dívida externa. A título de exemplo, a tabela 1 abaixo mostra o volume de empréstimos originados da Inglaterra ao Brasil ao longo do século XIX.

Uma análise rápida da tabela evidencia a dependência econômica do Brasil, assim como de outros países que haviam conquistado a independência política recentemente do capital inglês, para alavancar sua economia. Sem atividade econômica de relevo e sofrendo intensa crise política, o Brasil apresentava-se como uma nação dependente do capital estrangeiro e atravessa a primeira metade do século XIX sobrevivendo às custas de dívidas, sempre renovadas com novos empréstimos ingleses.

Tabela 1 - Empréstimos para o Brasil no Século XIX

30 SAES, Conflitos do Capital, 2008, p. 18

Ainda que os empréstimos tenham sido constantes, o que possibilita perceber o grau de dependência de nossa economia, há um ponto de virada em meados do século XIX. Como se pode ver na tabela, a partir de 1863, o volume de capital emprestado foi multiplicado em várias vezes. Segundo Saes, esta mudança de padrão se dá por dois motivos:

(...) de um lado, as economias latinas entravam num importante momento de expansão, pois diante do crescimento das exportações que atraía investimentos e transformações para a região as economias exportadoras demandavam uma nova estrutura de transporte, impulsionando o bom ferroviário na região que, por sua vez, incentivou a modernização sócio-econômica da América Latina com o crescimento de outros processos como a urbanização e, ainda que com certas restrições, a industrialização; de outro lado, a Europa, e em especial a Inglaterra, incorporava os melhoramentos tecnológicos e econômicos provenientes da fase final da primeira revolução industrial e, com uma ampla capacidade de comunicação com ferrovias, navios, telégrafos, atendia às novas demandas de crescimento mundial.31

Cabe ressaltar que praticamente todos os empréstimos obtidos no exterior foram em moeda estrangeira (houve um único empréstimo em moeda local, em 1875, o qual veremos mais adiante), o que significava ao país assumir uma dívida em uma moeda que não dispunha e a uma taxa de câmbio que não controlava totalmente.

Borrowing abroad also implied borrowing in foreign currencies. Today, many emerging countries find it impossible to borrow abroad in their own currency (…). Something similar existed one century ago. According to John Francis (1859), exchange rate guarantees in international bond issues were innovation that had been pioneered by the London Rothschilds. The guarantees were widely of the 1820s (Fodor 2000). As foreign investment soared, this practice became widespread. Prior to the advent of the gold standard, countries were alternatively tied to gold, silver, or bimetallic currencies depending on the market they were tapping. With the spread of the gold standard on Western Europe, gold clauses generalized.32

A tomada de empréstimos em moeda estrangeira implica, em princípio, num maior risco também para o emprestador, dado que, pelo fato do tomador do empréstimo não controlar totalmente a taxa de câmbio e por adquirir obrigações numa moeda que não dispõe, o risco de default por parte deste é bastante maior nos casos de dívida externa do que num similar empréstimo em moeda local.

Por sua vez, um empréstimo em moeda local significaria um risco cambial ao emprestador. Supondo uma desvalorização da moeda do país tomador do empréstimo, o valor a ser recebido como serviço da dívida poderia ser drasticamente reduzido e mecanismos de proteção cambial seriam necessários.

31 SAES, Conflitos do Capital, 2008, p. 20

A condição que se punha ao emprestador no século XIX era um trade-off entre fornecer empréstimos aceitando pagamentos em sua moeda corrente (moeda estrangeira para o tomador de empréstimo), assumindo um risco elevadíssimo ou fornecer crédito aceitando pagamento em outra moeda que não a sua (moeda local para o tomador de empréstimo), com menor risco de default, porém elevado risco cambial.

A prática largamente utilizada, como já adiantamos, foi a de fornecer empréstimos em sua moeda corrente, o que implicava ao tomador de empréstimo adquirir dívida em moeda estrangeira. Para pulverizar o risco de default, no entanto, os mecanismos de mercado não pareciam suficientes. Assim, além de maiores taxas de juros, os empréstimos eram acompanhados por uma lista de exigências para a economia nacional, um verdadeiro rol de condições as quais a economia receptora deveria seguir com o intuito de garantir a saúde financeira nacional e o pagamento da dívida. Estas listas de exigências implicam nas recomendações estrangeiras33.

Toda a condição, ainda que expusesse o emprestador a um risco muito elevado, levava a uma clara desvantagem ao país tomador do empréstimo. Segundo Eichengreen e Hausmann, (1999), se um país é incapaz de adquirir empréstimos estrangeiros em sua moeda local, ele está condenado a sofrer o chamado “Pecado Original”34, ou uma condição que resulta num acúmulo de desequilíbrio cambial na sua balança de pagamentos.

Segundo Eichengreen, Hausmann e Panizza35, há diversos passos a percorrer para minimizar este desequilíbrio. O mais óbvio é não adquirir empréstimos estrangeiros. Tal opção, óbvio, implica na restrição de capital, necessário para dinamizar a economia, sobretudo de nações recém nascidas. Um segundo passo a se percorrer consiste em acumular reservas estrangeiras para quitar suas obrigações. Também este passo implica num problema. Para os autores, “the yield on reserves is generally significantly below the opportunity cost of funds”36.

Diante da impossibilidade de se seguir estes dois passos, adquirir o empréstimo em moeda estrangeira, cometer o “Pecado Original”, mais do que uma saída para os problemas de falta de moeda para nações recém nascidas, implica em novos problemas:

33 Ver item I em ABREU e LOUREIRO, Palatable Foreign Control, 2011.

34 EICHENGREEN e HAUSMANN, “Exchange rates and financial fragility”, 1999, p. 329. 35 EICHENGREEN, HAUSMANN e PANIZZA, “The pain of Original sin”, 2005, p. 13. 36 EICHENGREEN, HAUSMANN e PANIZZA, “The pain of Original sin”, 2005, p. 13

Movements in the real exchange rate will then have aggregate wealth effects. This makes the real exchange rate a relevant price in determining the capacity to pay. Since the real exchange rate is quite volatile and tends to depreciate in bad times, original sin significantly lowers the credit worthiness of a country. Moreover, the wealth effects limit the effectiveness of monetary policy, as expansionary policies may weaken the exchange rate, cause a reduction in net worth, and are thus either less expansionary or even contradictory (…). This renders central banks less willing to let the exchange rate move, and they respond by holding more reserves and aggressively intervening in the foreign exchange market or adjusting short-term interest rates (…). The existence of dollar liabilities also limits the ability of central banks to avert liquidity crises in their role as lenders of last resort (…). And dollar denominated debts and the associated volatility of domestic interest rates heighten the uncertainly associated with public debt service, thus lowering credit ratings. 37 Os países com empréstimos em capital estrangeiro são mais instáveis e passíveis de crise – oferecem maiores riscos, portanto.38 Pior: além de arcar com uma obrigação em moeda estrangeira, a qual não possui mecanismos para controlar o preço, nem dispõe de reservas para cumprir os serviços da dívida, comprometer o crédito e tornar mais instável todo o sistema monetário nacional, a nação tomadora de empréstimo em moeda estrangeira pode ver sua soberania seriamente posta em cheque, como já ocorreu nos casos das missões internacionais do tipo Money Doctors citadas acima, que indicavam, e muitas vezes, pressionavam, por políticas econômicas interessantes aos organismos credoras, mas muito caras às populações das nações tomadoras de empréstimo.

Diante disto, não é de se admirar que, em geral, países afetados pelo “Pecado Original” tenham um difícil e longo caminho para equilibrar as contas públicas. Suas taxas de juros são mais variáveis e o capital é mais volátil que em outros países “livres do pecado”39. Pior, como emprestar para estes países mais voláteis e instáveis, representa um risco maior, o prêmio pelo risco do emprestador cobrado é maior, levando estes países ao limite da insolvência.

Eichengreen, Hausmann e Panizza, assim, definem a escolha por contrair empréstimos em moeda estrangeira a uma “Escolha de Hobson”40. Reduzir o capital estrangeiro é limitar o crescimento. Aumentar o capital estrangeiro é tornar-se mais instável e suscetível às crises. Como já adiantamos, empréstimos em moeda estrangeira foram norma no século XIX, condição precípua para o fornecimento de crédito, perpetuado no século XX. A pergunta que fica implica em tentar entender o porquê da preferência pelo “Pecado Original”, mediante o

37 EICHENGREEN, HAUSMANN e PANIZZA, “The pain of Original sin”, 2005, p. 28 38 EICHENGREEN, HAUSMANN e PANIZZA, “The pain of Original sin”, 2005, p. 30 39 Exceção à regra, o Brasil apresenta no século XIX taxas de juros notavelmente estáveis.

40 “Hobson’s choice”, definido como uma escolha com uma única alternativa possível. EICHENGREEN, B., HAUSMANN e PANIZZA, “The pain of Original sin”, 2005, p. 28

alto risco de default para a nação credora e os evidentes prejuízos às nações devedoras. Se ao emprestador, o risco de não receber o serviço da dívida era tal a ponto de, além de cobrar altas taxas de juros, implicar num rol de recomendações estrangeiras, por que simplesmente não aceitar um empréstimo em moeda local, com garantias de proteção quanto ao risco cambial? A resposta implica em entender a condição internacional em que a cláusula teve início.

De fato, no século XIX, os países tomadores de empréstimo (grupo ao qual o Brasil pertence) eram, na sua maioria, nações com independência recente e moedas não representativas, sem paridade com o sistema financeiro internacional.

Para as jovens nações, desprovidas de capital (ou já endividadas, no caso brasileiro41), a única forma de se capitalizar e impulsionar a atividade econômica era através da obtenção de empréstimos no exterior. Porém não havia garantias a oferecer aos credores. Teríamos um problema de credibilidade, portanto, como força motriz por trás dos empréstimos em moeda estrangeira. Outras nações, sem credibilidade, também estariam fadadas ao “Pecado Original”.

Por “credibilidade”, podemos compreender as instituições formalmente aceitas como saudáveis. Aquelas pregadas pelos Money Doctors são um bom exemplo: adesão ao Padrão- Ouro (para o caso dos empréstimos / recomendações até a década de 1930), criação de um Banco Central independente e superávit nas contas públicas, de modo a garantir recursos para honrar os compromissos com a dívida, além de uma legislação que garanta os direitos de propriedade. Em resumo, por credibilidade, entendemos um status internacional de bom pagador – algo difícil para uma nação recém nascida ou de poucos recursos.

Definimos esta visão como a “explicação institucional” para o problema do “Pecado Original”. Neste ponto de vista, mais ortodoxo, o “Pecado Original” enfatizaria as expectativas. Alguns países não têm reputação suficiente para obter empréstimos em sua moeda, então o mercado os classifica de modo a dificultar as tomadas de empréstimos. A resposta para este problema está em gerar credibilidade criando algumas instituições saudáveis: um banco central independente, uma legislação reguladora e a proteção aos direitos de propriedade42.

41 BOUÇAS, História da dívida externa, 1950, p. 59.

42 FLANDREAU e SUSSMAN, “Old sins: Exchange Clauses and European Foreign Lending in the Nineteenth Century”, 2005, p. 154.

A explicação institucional é defendida por autores como Rogoff e Reinhart. Segundo estes, “a disposição de pagar, não a capacidade de pagar, é o principal determinante dos calotes soberanos”43. As instituições do país (legislação que garanta o direito à propriedade, liberdade para o capital e Estado solvente) estariam na raiz do fornecimento de empréstimos em moeda estrangeira ou local. Ns opinião dos autores, a reputação do país é fundamental para o empréstimo que ele venha a obter44.

Eichengreen e Hausmann (1999) vão além desta visão. Os autores reconhecem que as nações recém formadas e diversos países com poucos recursos careciam de instituições que os tornasse confiáveis às vistas dos credores. Na ausência destas, só restaria às nações devedoras obter o empréstimo em moeda estrangeira com altas taxas de juros. No entanto, esta percepção, por si só, não responderia a questão do porquê da preferência pelo “Pecado Original”:

To some, why emerging markets cannot borrow abroad in their own currencies is self-evident. Foreign investors are reluctant to hold claims on countries with poor policies and weak market-supporting institutions: one should not expect foreigners to do things that even residents are unwilling to do (…). There may be something to this view. But there are reasons to think that the problem is more complex than this explanation would suggest. The weakness of institutions of contract enforcement and the instability of macroeconomic and financial policies may help to explain why some countries cannot borrow at all, but this is not the same as explaining why some countries that can in fact borrow nonetheless find it so hard to borrow in their own currencies.45

Em outras palavras, se o problema era a ausência de instituições que ofereceriam um colchão de segurança aos emprestadores, por que o empréstimo em moeda estrangeira era comum também aos países possuidores destas instituições?

Os autores apontam uma explicação para esta condição. Na opinião deles, o “Pecado Original” não está atrelado a problemas institucionais dos países tomadores de empréstimo, mas a algo relacionado à estrutura do sistema financeiro internacional.

Michel D. Bordo e Marc Flandreau e (2003), na tentativa de entender a necessidade dos empréstimos em moeda estrangeira, chegam a uma resposta que aprofunda o problema. Na opinião dos autores, obter empréstimos com serviço em moeda local implicaria em oferecer uma proteção cambial aos credores, porém esta proteção só poderia existir em países com um

43 ROGOFF e REINHART, Oito séculos de delírios financeiros: Desta vez é deferente, 2010, p. 54. 44 ROGOFF e REINHART, Oito séculos de delírios financeiros: Desta vez é deferente, 2010, p. 58. 45 EICHENGREEN e HAUSMANN, “Exchange rates and financial fragility”, 1999, p. 5.

mercado financeiro secundário bem formado, onde os títulos das dívidas seriam negociados de modo a mitigar o risco dos emprestadores. Um novo elemento, assim, é elencado na explicação: a existência ou não de um mercado financeiro secundário desenvolvido. Consideramos esta explicação de fundamental importância e voltaremos a ela mais adiante. Estas condições não eram condizentes com a realidade dos novos países da América Latina. Sem este mercado secundário, os empréstimos em moeda estrangeira eram preferidos. Agravava a situação a ausência de instrumentos desenvolvidos de proteção cambial (tal como os instrumentos de hedge cambial da atualidade) no sistema financeiro internacional do início do século XIX. Mais que isto, na ausência de mecanismos de segurança, cabia ao Padrão- Ouro resolver o problema da moeda: “While local issues could be easily inflated away, foreign issues with gold clauses provided safe guards, precisely because they in turn induced governments to be on their guard”46.

Os investidores, avessos ao risco, não poderiam contar com a proteção do governo destas novas economias ou de companhias financeiras em caso de empréstimos em moeda local, porém, para o caso de empréstimos em moeda com paridade (lastro), o sistema financeiro internacional (Padrão-Ouro) oferecia toda a proteção cambial necessária. Daí a preferência por empréstimos com serviços em moeda estrangeira (ou moedas lastreadas ao ouro), ainda que isto implicasse o risco de default - risco este mitigável mediante altas taxas de juros, missões militares ou missões de especialistas com listas de exigências, recomendações às economias tomadoras de empréstimos.

A discussão sobre o porquê da obrigatoriedade para certos países de realizar o pagamento de suas dívidas em moeda estrangeira não se encerra em Eichengreen e Hausmann. Outros autores também estudam este tema, sob o prisma de que o capital possui uma dinâmica própria e que as flutuações do mercado e a própria liquidez das moedas, enquanto expressão da soberania de um país, são fundamentais para conferir a estas credibilidade e receptividade. Tal discussão, mais profunda, relacionada à própria natureza da moeda e seu papel social, remete à Escola da Regulação, com autores como Aglietta e Orlean. Para efeito deste trabalho, porém, nos reteremos à explicação proposta por Eichengreen e Hausmann.

Assim, retomando nossa linha de estudo, diante da resposta elaborada por estes autores, uma nova peça do quebra-cabeça surge. O Padrão-Ouro estaria na raiz dos empréstimos em moeda estrangeira e seria fundamental para fomentar a crença na segurança ao emprestador quanto ao título de dívida emitido.