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3.2 O sagrado e o profano no imaginário da comunidade escolar

3.2.8 Cruz – Sacrifício

O amor é facilmente reconhecido como um tema cristão e como tal associado ao sacrifício. Esse tema remete-nos necessariamente ao texto joanino escrito na figura 14: “Deus amou tanto o mundo que entregou o Filho Unigênito para que todo aquele que crer nele, não pereça mas tenha a vida eterna” (Jo 3, 16). A imagem do sacrifício no imaginário religioso cristão é diretamente associada ao símbolo da cruz. O amor sacrifical, amor renúncia, amor doação está representado na imagem do crucificado.

O crucifixo ou a cruz ademais marca profundamente o próprio imaginário religioso brasileiro. Sob o signo da cruz e da espada é que fomos colonizados e essa terra foi denominada de Terra de Santa Cruz. Não é difícil verificarmos, assim

como já observamos a respeito da Bíblia, a presença do símbolo da cruz nas casas, nas repartições públicas, nas praças, os cruzeiros; nos cemitérios, nas estradas e ruas a demarcar o falecimento de alguém; enfim, as pessoas portam no próprio corpo anéis, colares, tatuagens da cruz, ou simplesmente fazendo entre os católicos o sinal da cruz. Além disso, todos os anos em diversas partes do país as comunidades realizam de forma teatral a paixão de Cristo, um verdadeiro ritual de atualização do sacrifício na cruz que mobiliza uma multidão de pessoas. Assim, tudo indica que a imagem do sacrifício na cruz povoa o nosso imaginário coletivo.

FIGURA 25: Pessoa rezando, desenho de aluno de 13 anos.

Entre os desenhos e textos produzidos pelos participantes da pesquisa a imagem da cruz também foi levantada. A cruz surge relacionada ao templo (por exemplo na figura 5), ou relacionada à Bíblia e portanto à palavra (figura 7), aparece na oração de joelhos (figuras 25 e 26) e solitariamente (figuras 27 e 28). Nas figuras 25 e 26 a intenção dos seus autores é claramente associar a imagem da cruz à oração. O aluno que desenhou a figura 25 escreve que “é uma pessoa rezando” e o aluno que fez o desenho da figura 26 afirma “está explicando a religiosidade que é um homem rezando para Jesus”. Já observei a reverência, a devoção, o respeito e mesmo a submissão simbolizados no gesto de se ajoelhar (figuras 20, 25 e 26), como a dizer “reconheço a minha pequenez e inferioridade ante a grandeza e a superioridade do Altíssimo”. “O ajoelhar-se, se visto com Canetti, deveria ser ‘interpretado como súplica de uma graça’, diante de alguém forte e poderoso” (GOMES, 2000, p. 80).

FIGURA 26: Homem rezando para Jesus, desenho de aluno de 13 anos.

Na perspectiva da teologia cristã a cruz que outrora era o instrumento romano de tortura passa a ser o símbolo do sacrifício primordial, sacrifício redentor e vencedor da morte. Como se expressa a autora da figura 28 “a cruz mostra o sacrifício em que Jesus Cristo passou no meio de nós evangelizando o povo” (MERENDEIRA). É válido observar que em ambas as figuras da cruz solitária (27 e 28) existem raios, luz, uma cruz radiante, portanto a expressar a vitória sobre a morte. É a mais pura tradição cristã que passa a ver na cruz o símbolo da salvação, como atesta por exemplo São Paulo: “[...] nós pregamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucura para os pagãos, mas poder e sabedoria de Deus para os chamados, quer judeus, quer gregos” (1Cor 1, 23-24). A cruz na tradição cristã passa então a ser um sinal do poder e da sabedoria de Deus a guiar o homo religiosus cristão, o que nos remete certa forma à imagem da “mão de Deus”. É interessante observar no texto explicativo do professor que desenhou a figura 27 o desejo de que esse sinal, a cruz, estivesse presente na sala de aula:

Porque os sinais dizem muita coisa, nós seres humanos devemos perceber os sinais nas nossas vidas. Devia existir na escola e em cada sala de aula um crucifixo. Quando cada aluno entrar em sala de aula olha o crucifixo e pelo menos irá respeitar a palavra de Deus e consequentemente os seus colegas e professores. O crucifixo representa o que há de bom nas pessoas, porque representa a palavra de Deus (PROFESSOR).

FIGURA 27: Crucifixo, desenho de professor de 35 anos.

FIGURA 28: Sacrifício, desenho de merendeira de 37 anos.

Certamente não é o propósito deste estudo adentrar na perspectiva teológica, seja ela de que matriz religiosa for, mas aperceber-se do imaginário religioso que se manifesta entre os participantes da pesquisa (que em sua maioria se declaram cristãos). Nesse sentido, o simbolismo da cruz e o ritual do sacrifício remontam a um imaginário religioso riquíssimo que remonta às “imagens arquetípicas” (Eliade) da experiência religiosa primitiva e que foram resignificados pelo simbolismo cristão.

De acordo com Eliade, a cruz cristã retoma o simbolismo da Árvore Cósmica, a árvore da vida presente em várias tradições religiosas pré-cristãs. “O cristianismo utilizou, interpretou, ampliou esse símbolo [Árvore Cósmica]. A Cruz,

feita da madeira da Árvore do Bem e do Mal, toma o lugar da Árvore Cósmica; o próprio Cristo é descrito como uma Árvore (Orígenes)” (ELIADE, 2002, p. 161). O historiador das religiões ainda lembra que “foi enquanto símbolo do Centro do Mundo que a Cruz foi assimilada à Árvore Cósmica” (ELIADE, 2002, p. 163), de tal forma que observamos a imagem da cruz constelar com os símbolos ascensionais da escada, da coluna, da montanha. Durand concorda com Eliade a respeito da relação existente entre o símbolo da cruz e o simbolismo da vegetação.

A cruz cristã, enquanto madeira erguida, árvore artificial, apenas drena as acepções simbólicas próprias a todo simbolismo vegetal. Com efeito, a cruz é muitas vezes identificada a uma árvore, tanto pela iconografia como pela lenda, tornando-se com isso escada de ascensão, porque a árvore [...] é contaminada pelos arquétipos ascensionais. Na lenda da cruz enxerta-se igualmente o simbolismo da bebida de eternidade, do fruto da árvore ou da rosa que floresce na madeira morta. Poder-se-ia também sublinhar que a cruz cristã é uma inversão de valores tal com encontramos freqüentemente no Regime Noturno da imagem: emblema romano infame, torna-se símbolo sagrado, spes única. Mas, sobretudo, através de todas essas tônicas sobredeterminantes, é preciso constatar que a cruz é símbolo da totalização espacial [...]. O símbolo da cruz é uma união dos contrários. (DURAND, 1997, p. 328-329).

Na perspectiva durandiana tanto o simbolismo da cruz como o ritual do sacrifício estão inseridos no Regime Noturno da Imagem. Para Durand o ritual dos sacrifícios se insere no simbolismo do ciclo lunar e vegetal, portanto, relaciona-se aos símbolos cíclicos relativos ao tempo e ao desejo humano de dominá-lo. “É, assim, no poder sacramental de dominar o tempo por uma troca vicariante e propiciatória que reside a essência do sacrifício. A substituição sacrifical permite, pela repetição, a troca do passado pelo futuro, a domesticação de Cronos” (DURAND, 1997, p. 311). Tal perspectiva não é estranha à própria teologia cristã, uma vez que Cristo é identificado como o “cordeiro de Deus” imolado para pagar o pecado original da humanidade, morrendo para a salvação de todos e, com sua morte, mata a morte pela ressurreição.

Na linguagem durandiana, diríamos que para o imaginário religioso cristão, o Cristo ressuscitado representa a vitória sobre a angústia temporal, o domínio do tempo e da morte. É esse mesmo imaginário que está presente também entre os participantes da pesquisa, portanto, povoa o universo simbólico da comunidade escolar e talvez seja uma pista para podermos compreender a relação da comunidade escolar com temas como tempo, morte, futuro, violência, existência.

Talvez a própria escola para os alunos e alunas da classe popular esteja inserida numa perspectiva de angústia temporal. De um tempo que não lhes é favorável e que se apresenta sob a imagem teriomórfica de um animal devorador dos seus sonhos, ou ainda sob a imagem nictomórfica da escuridão da falta de perspectivas para o presente. Nesse sentido, a escola, enquanto portadora da educação e do saber, pode representar a arma para vencer esse animal devorador ou a casa acolhedora a fornecer um facho de luz. Mas tudo é muito ambíguo, uma vez que também a escola pode revelar-se enquanto face devorante e escura de uma deusa cruel a exigir sacrifícios dos seus devotos, inclusive o sacrifício da própria identidade cultural e etária.