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3.2 O sagrado e o profano no imaginário da comunidade escolar

3.2.7 Mãos dadas – Mão amiga – Mão de Deus

E as mãos emprestam a sua simbologia para exaltar ao mesmo tempo tanto a confraternização e a amizade (figuras 16, 19, 21, 22 e 23) quanto à proximidade divina, “a mão de Deus” (figura 24). “Amizade é uma das coisas mais importantes na vida de uma pessoa”, explica em poucas palavras o aluno que desenhou a figura 21, numa espécie de louvação à amizade. O tema da amizade não deve ser menosprezado e parece estar associado à idéia de solidariedade, de fraternidade, de proximidade entre os membros da comunidade escolar. É o que reflete, por exemplo, os desenhos das mãos dadas (figuras 16, 19 e 22) e sobretudo o próprio texto explicativo da figura 22:

Sagrado é a parceria de todos da escola, principalmente alunos e professores. É preciso que todos sejam respeitados com as diferenças que lhes são peculiar, que haja diálogo amigável. De mãos dadas a escola melhora, a paz aparece e a auto-estima floresce. Sagrado é ninguém se sentir inferior e ninguém se fazer superior. A ilustração mostra diferenças pelo aspecto dos rostos, podendo ser a professora sempre bem humorada de mãos dadas com aquela aluna que parece estar brava, um outro com o olhar triste e por último outro aluno feliz independente de suas imensas dificuldades para sobreviver (PROFESSORA).

FIGURA 22: Mãos dadas, desenho de professora de 37 anos.

Os textos e os desenhos com as “mãos dadas” chegam mesmo a anunciar uma espécie de utopia da escola ou desejo de uma realidade paradisíaca onde o “sagrado é ninguém se sentir inferior e ninguém se fazer superior”. Se isto é de fato ou não uma realidade no espaço escolar, o presente estudo não tem a competência para afirmar. O que importa aqui é a constatação da permanência de um imaginário religioso que alimenta sonhos e utopias pedagógicas. Como não perceber nessas imagens as imagens arquetípicas do paraíso, da harmonia, do cosmo, de um mundo sem injustiças e sofrimentos, enfim, da felicidade humana, aqui reduzidas às dimensões do micro-cosmo escolar.

As mãos dadas são as mãos entre pessoas que partilham o mesmo espaço, conta, portanto, a amizade, as mãos dadas são mãos amigas para erguer e apoiar o outro. E, nesse sentido, a prática pedagógica, a ação do professor toma uma dimensão sagrada. O professor surge então como uma espécie de sacerdote, de xamã. A sua mão amiga e a sua palavra tornam-se eficazes, operam mudanças na vida dos alunos. Segundo a Técnica Administrativa que desenhou a figura 23:

Nossa sociedade, caracterizada por situações de injustiça e desigualdade, cria famílias que lutam com mil e uma dificuldades para sobreviver. Esses problemas atingem as crianças que enfrentam inúmeras dificuldades para aprender. Compreender essas dificuldades é o ponto de partida do trabalho do professor. Uma mão amiga, uma palavra de carinho pode mudar a vida de uma criança, na escola é importante que os alunos sejam valorizados, que tenham seus direitos de opinião e participação respeitados para que se sintam capazes e se desenvolvam normalmente.

Não é uma tarefa fácil, exige uma dose infinita de paciência e muito amor. (TÉCNICA ADMINISTRATIVA)

FIGURA 23: Mão amiga, desenho de técnica administrativo de 53 anos.

O texto explicativo da figura 23 associa a “mão amiga” à “palavra de carinho” no ofício do educador, revelando a atitude amorosa para com o educando. Numa visão religiosa, essa atitude amorosa reporta à imagem do “Papai do céu”, também representada no simbolismo judaico-cristão pela imagem do “pastor” que cuida das ovelhas, anteriormente analisado. Lembremos o que nos diz Eliade acerca da visão de mundo do homo religiosus:

É interessante notar que o homem religioso assume uma humanidade que tem um modelo trans-humano, transcendente. Ele só se reconhece verdadeiramente homem quando imita os deuses, os Heróis civilizadores ou os Antepassados míticos. Em resumo, o homem religioso se quer diferente do que ele acha que é no plano de sua existência profana. O homem religioso não é dado: faz-se a si próprio ao aproximar-se dos modelos divinos (ELIADE, 2001, p. 88).

De tal forma, a “mão amiga”, o gesto amoroso e solidário do educador aproxima-se do modelo divino. Ama-se, cuida-se porque assim a divindade faz e quer que o faça também os homens. A “mão de Deus” estendida ao homem é o modelo da “mão amiga”, da mão estendida ao outro. Faz recordar o preceito cristão que reza: “Assim como eu vos amei, amai-vos também uns aos outros” (Jo 13, 34). Como afirma a aluna autora da figura 24: “[...] fiz o que para mim é importante, desenhei uma mão. A mão de Deus, por isso dê sempre a mão ao próximo como Deus deu a mão para você” (ALUNA).

FIGURA 24: A mão de Deus, desenho de aluna de 14 anos.

Segundo Leloup, a palavra mão na tradição hebraica está associada ao conhecimento. “Tocar a mão, apertar a mão, é se apresentar, é firmar um conhecimento” (LELOUP, 2005, p. 124). De acordo com esse estudioso, encontramos a expressão “a mão de Deus” em diferentes tradições religiosas, em todo caso expressa sempre a imagem de um poder que protege e guia o homo religiosus.

Algumas vezes podemos nos sentir guiados, como se tivéssemos uma mão pousada em nosso ombro, em nossa cabeça, nas nossas costas, para fazer avançar, para nos manter de pé. Há momento onde nos fundimos. E alguns de nós sentiram bem profundamente esta mão, esta mão invisível. Como terapeutas podemos trabalhar, cooperando com esta mão (LELOUP, 2005, p. 126).

Devemos observar ainda no desenho da “mão de Deus” a sua grandeza, não se trata de uma mão minúscula, o que pode indicar o que Durand chama de “processo religioso de gigantização da divindade” (1997, p. 135). A divindade, como observa Eliade, é imaginada como o “Altíssimo”, grande e potente a exemplo do pantocrator cristão. Eis, portanto, “a poderosa mão de Deus” (1Pd 5, 6) de que fala São Pedro e da qual a tradição judaico-cristã está repleta de exemplos. A “mão de Deus” simboliza o poder e a grandeza do Altíssimo, que também no imaginário

religioso se faz magnânimo em misericórdia o que nos reporta à imagem do Grande Deus-Pai associado ao céu, pai celeste, à semelhança da Grande Deusa-Mãe associada a terra e ao mar.

Afinal o que essa série de imagens da Confraternização – Oração – Mãos Dadas – Mão Amiga – Mão de Deus pode revelar sobre o imaginário religioso? Penso que seja a santificação da vida (Eliade). Para o homo religiosus o seu espaço-tempo, o seu corpo e o seu agir cotidiano revestem-se de uma áurea sacra, portanto, é necessário marcar o espaço-tempo com essa sacralidade. Isso é feito por meio de símbolos e rituais. A festa, a celebração, o ornamento, a oração são reveladores dessa necessidade de sacralização da vida de forma geral e no seu cotidiano. As mãos – mão amiga, mão de Deus – remetem à imagem do toque, revelam a proximidade do outro e do grande Outro que para o homo religiosus protege, guia e santifica aquilo que toca.

Como observa Eliade, para o homo religiosus “a vida como um todo é suscetível de ser santificada” (2001, p. 137) e “os ritos sacralizam a vida” (2002, p. 374). Nesse mesmo contexto o historiador faz notar também que: “O ideal do homem religioso é, evidentemente, que tudo o que ele faz se desenrole de maneira ritual ou, por outras palavras, seja um sacrifício” (ELIADE, 2002, p. 374). Mas como já observei o aspecto ritual será mais aprofundado no capítulo seguinte, vale, no entanto, perceber a relação das imagens da “confraternização – celebração – oração – amor” com o sacrifício uma vez que também surgiram imagens (desenhos e textos) relativas a esse tema.