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A partir da comparação entre duas pesquisas, a reportagem desenvolve a tese de que “as pessoas mentem mais no trabalho do que em casa” (p. 68).

O texto trabalha com uma tensão entre o mentir justificado e a desonestidade. O assunto está ligado à cultura organizacional, conforme o fragmento: “Cada país (...) tem a sua cultura profissional, modelada pela história do trabalho e pelo comportamento dos profissionais” (p. 68). E, assim, a matéria aborda um

componente comportamental.

Intertextualidade

A pauta é desenvolvida a partir de duas pesquisas, uma feita em 2012 na Universidade de Oxford, na Inglaterra, em parceria com a Universidade de Bonn, na Alemanha com pessoas que estavam em suas casas e outra feita em 2008 pela Universidade de Konstanz, na Alemanha, com entrevistados em laboratórios (ambientes de trabalho). Ambas são descritas em um longo nariz de cera16.

Além das pesquisas, as fontes consultadas podem ser agrupadas em:

Grupo 1 - Pesquisadores, consultores, coaches, escritores e especialistas sobre o assunto:

- Um economista comportamental da Universidade de Oxford, um dos pesquisadores que conduziu os estudos.

- Um professor de liderança na Fundação Instituto de Administração (FIA), de São Paulo, no Brasil.

- O presidente da Gutemberg Consultores, especializada em coaching e recolocação de executivos.

- Uma empresária, proprietária da consultoria Manhattan Studios autora do livro Liespotting (Detectando Mentiras, em tradução livre) lançado em 2011.

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Nariz de cera, no jargão jornalístico, significa uma abertura de matéria que não explicita o assunto, dando voltas até chegar ao assunto principal. Ocorre, em muitos casos, quando o jornalista tenta criar uma abertura diferente, criativa e atraente para seu texto, mas resulta em algo cansativo que pode levar o leitor a perder o interesse no assunto.

Sousa (2004) afirma que “a auscultação de especialistas pode resultar de um objetivo explicativo ou da necessidade de recorrer a argumentos de autoridade que solidifiquem o discurso” (p. 86).

Nas falas editadas, aparece a culpabilização do indivíduo: “‘(...) No trabalho, o funcionário inventa mais desculpas’, diz o alemão Johannes Abeler (...)” (p. 68). Há

um contraponto, que reflete a tensão referida no início da análise entre a mentira justificada e a desonestidade. Na fala de Alfredo Behrens, “a falta de liberdade nas empresas até induz os trabalhadores a serem desonestos” (p. 68).

Grupo 2 - Fonte que ilustra a opinião de um alto executivo:

- O presidente do Imovelweb, site brasileiro de anúncios imobiliários que pertence ao fundo Tiger Global, acionista também da Decolar e da Netshoes.

Grupo 3 - Especialistas que trabalham na prática com a identificação de mentiras em empresas e cujos relatos servem para corroborar a matéria e a opinião dos especialistas e do empresário:

- O responsável pelo serviço de aderência à ética da ICTS Global - O diretor de investigação de fraudes da Ernst & Young.

Grupo 4 - Professor que aborda um contraponto:

- Um professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

Ao todo, foram consultadas oito fontes, o que pode indicar, em princípio, uma maior polissemia de vozes e posicionamentos, embora numa mesma perspectiva.

Nota-se no Grupo 3 uma fonte ligada a um dos serviços prestados pelas empresas de auditoria econômica. Segundo o site da própria organização Ernst & Young (www.ey.com/BR), esse serviço tem como objetivo investigar suspeitas de corrupção, suborno e fraude que possam prejudicar os negócios das empresas. Assim, essas consultorias são capazes de encontrar “maneiras para administrar o risco, investigar supostas condutas indevidas e mensurar as implicações financeiras decorrentes de disputas”.

Tem sido prática recorrente e divulgada pela mídia ações das empresas que, mesmo auditadas, fazem alianças ilícitas de favorecimento com empresas privadas e até com governos. Isso indica que muitas auditorias, obrigatórias por legislação,

são manipuladas e acabam identificando apenas as corrupções cujos lucros não são direcionados ao capital da empresa e, sim, favorecem de modo específico apenas os executivos envolvidos nos casos. Outras situações comuns nos quais as auditorias são fictícias se referem a empresas financeiras, como bancos e financeiras que realizam empréstimos.

Interdiscursividade

O discurso científico é predominante na primeira página da reportagem, que se vale de três pesquisas sobre comportamento e estabelece comparações entre países.

O discurso empresarial também é representado no discurso: “Algumas companhias perceberam de prejuízos da falta de diálogo e das mentiras” (p. 69). A

partir daí o discurso passa estabelecer uma relação com a cultura organizacional desejada, sem, no entanto, adotar a postura imperativa de dicas. O discurso busca mostrar fatos ocorridos no ambiente empresarial e como eles podem ajudar a compreender o fenômeno.

Também são trazidas implicitamente, nessa matéria, as práticas preconizadas na gestão participativa (GP), situação em que os trabalhadores têm mais poder de decisão na organização do trabalho. Essa gestão democrática pode servir de estímulo para que o trabalhador se dedique mais e evite os “prejuízos” referenciados no texto. “A GP pode (...) resultar de estratégias patronais que, por meio de concessões localizadas, obtêm a redução de conflitos e mais envolvimento dos trabalhadores, o que resulta em ganhos de produtividade” (CATTANI, 2006, p. 145). Trata-se de uma estratégia ligada ao modelo de gestão flexível e se associa a outras modalidades como círculos de controle de qualidade e grupos semiautônomos, podendo, ainda, associar-se com as práticas de recursos humanos e seus programas de qualidade de vida no trabalho (CATTANI, 2006). O autor aponta a aversão, no Brasil, de formas de empoderamento do trabalhador; práticas como a GP são mais empregadas para dirimir conflitos e focos de resistência.

A gestão participativa está relacionada à autonomia, um dos valores essenciais do processo de trabalho contemporâneo. Na nova abordagem, a gestão empresarial autoritária é substituída pelos grupos de trabalho. Os gerentes de todos os níveis tornam-se exemplos, mas sua aplicação é maior no nível mais elevado da hierarquia administrativa (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009). Como muitas práticas

gerenciais do trabalho flexível, o discurso sobre e democracia na gestão torna mais atrativo o método em si do que sua efetiva aplicação, muitas vezes superficial e efêmera.

Figuras de linguagem

O texto não apresenta a ocorrência notória de figuras de linguagem como a metáfora e o eufemismo na geração de sentidos relevantes.

Modalidade

A modalização discursiva predominante é a assertividade, ou seja, afirmações diretas, principalmente quando se vale do discurso didático: “Algumas companhias perceberam os prejuízos da falta de diálogo e das mentiras” (p. 69) e “Outra causa das mentiras é a vontade de evitar conflitos para conservar bons relacionamentos”

(p. 69).

Em alguns momentos, a ponderação também aparece como em “É claro que, em alguns momentos, mentir é inevitável e inofensivo” (p. 69).

A modalização é deixada por conta das falas das fontes que relatam casos, resultados de pesquisas e, por isso, utilizam o presente do indicativo para serem diretos e claros em suas demonstrações.

Ethos

O ethos constrói, no início, uma imagem compreensiva, que busca entender os motivos de quem mente no trabalho, colocando-se como parte desta situação, conforme a linha fina da matéria. “Pesquisa revela que mentimos mais no trabalho do que em casa. Receio de conflitos e falta de diálogo são alguns dos motivos” (p.

68). Dessa maneira, o efeito de culpabilização é neutralizado no discurso.

O ethos é aquele que conversa com o leitor estabelece uma conversa informal, em tom conciliador, de quem ouve o problema e aconselha. Isso coincide com a modalização mais amena e menos assertiva (conforme veremos adiante).

Seguindo a “receita”, o ethos usa a voz de comando mais incisiva no final do texto: “Se a mentira profissional está incomodando, procure um trabalho que faça você se sentir em casa. De verdade.” (p. 69, grifo nosso). A última expressão, além

de funcionar como um reforço, faz um jogo de sentido com o tema as matéria: a mentira. Gera, ainda, um tom de informalidade uma vez que esse tipo de expressão

é mais usado na linguagem oral. E, por final, aproxima o ethos da figura de um amigo, que quer o bem de seu interlocutor.

No trecho final, percebemos uma das marcas discursivas da revista Você S/A, que transfere ao indivíduo as consequências do que lhe acontece no ambiente de trabalho. Trata-se da responsabilização do indivíduo. É como s fosse uma opção do indivíduo e nunca um problema da empresa. A recolocação profissional é um conselho recorrente dado pela revista, como se a mobilidade no mercado fosse fácil e as oportunidades, abundantes.

Fotografia

Em primeiro plano, o executivo está em pé, apoiado em uma parede/divisória de vidro. A expressão do rosto e a postura do corpo indicam uma posição de relaxamento e descontração; esta imagem será reforçada pela segunda parte da legenda: “funcionários devem ficar à vontade”. Assim, o próprio da presidente da

empresa dá o exemplo e a expressão “ficar à vontade” adquire múltiplos sentidos pois pode se referir ao comportamento em relação à honestidade do funcionário (tema da reportagem), à execução de tarefas, e até as roupas para trabalhar. Isso porque o executivo em questão se veste com roupas informais (camisa polo branca, calça jeans e tênis cinza). As cores da vestimenta concordam com as cores do ambiente (teto claro aparentemente escurecido por manipulação digital; carpete dividido em quadrados com listras, em tons acinzentados; mobiliário e computadores nas cores cinza e preto). Essa cromia passa a sensação de frieza, neutralidade e ainda concorda com o próprio setor ao qual se refere a empresa (tecnologia).

A foto faz uma representação bem genérica de um executivo em uma empresa, e poderia ser encaixada em muitas matérias sobre organizações com o objetivo de mostrar de maneira concreta uma das fontes consultadas na reportagem. A imagem em primeiro plano se refere ao presidente da empresa. Ao fundo, aparecem ao menos três funcionários, sentados lado a lado e de costas para o ambiente, em frente ao computador, trabalhando. É possível perceber que se vestem com roupas formais (camisa social de manga longa) e que estão concentrados. A disposição na qual os trabalhadores são colocados na empresa sugerida na foto indica que eles ficam de costas para portas e para o corredor de passagem.

Portanto, o segundo plano está em contraste com o primeiro. O presidente é quem tem o controle, pois pode ver o que cada trabalhador está fazendo ou acessando em seus computadores. Enquanto isso, os trabalhadores estão de costas e conseguem ver apenas seus próprios computadores e os funcionários sentados do outro lado da bancada. Eles não estão descontraídos e, sim, concentrados e não podem, supostamente, ir com roupas informais. Eles trabalham enquanto o presidente “cruza os braços” e fala por eles. A imagem do fundo, portanto, vai de encontro à legenda “funcionários devem ficar à vontade”, marcando