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Na reportagem, o assunto de seleção está ligado ao tema da cultura organizacional, uma vez que esta deve ser considerada no momento em que o candidato a uma única vaga escolhe a empresa empregadora. Vejamos o seguinte trecho: “Se houver encontros com diferentes profissionais durante o processo, aproveite para verificar se há uma coerência no discurso dos envolvidos. Isso ajuda a identificar contradições na cultura organizacional e problema de gestão que podem atrapalhar o cotidiano do trabalho” (p. 62).

Nota-se, nesse trecho, uma inversão ideológica proposta pela representação discursiva: em um processo de recrutamento, a empresa, em geral, recebe mais candidatos para uma vaga. Enquanto isso, o profissional desempregado, mesmo um alto executivo, dificilmente possui mais de uma empresa ofertando uma vaga. No entanto, pelo olhar da revista, a representação é de que o candidato não sofre pressões típicas do desemprego (escassez de recursos financeiros, cobrança familiar, precarização do mercado de trabalho com baixos salários e grandes cobranças por resultados etc.). É como se o indivíduo tivesse mais força que a empresa no momento de seleção.

Intertextualidade

As fontes consultadas podem ser agrupadas em dois tipos:

Testemunhais: narram experiências de suas vidas profissionais

- Uma profissional de 33 anos, consultora de comércio eletrônico da Carvajal, multinacional de serviços de TI, de Vila Velha, Espírito Santo;

- O gerente comercial da Samsung, fabricante de eletroeletrônicos, de São Paulo.

Nas falas de ambos, nota-se a autorresponsabilização dos trabalhadores por terem entrado em uma “roubada”. De acordo com o sentido do texto, há tarefas que devem ser cumpridas no momento da seleção e ambos foram, de alguma forma, precipitados. Ou seja, não seguiram as dicas dos especialistas. A precarização nas relações de trabalho é indicada como sendo um fenômeno pontual e pertinente a algumas empresas somente. “Logo na primeira semana, Sabrina percebeu que a gestão antiquada da empresa não permitiria que executasse o trabalho da maneira

que considerasse correta. Faltavam recursos, sobrava burocracia e as promessas de benefícios não se cumpriam” (p. 62).

O efeito do antes e depois é bastante explorado. O antes é retratado como uma situação ruim e que devido à mobilidade de mercado e empregabilidade do indivíduo, foi solucionada chegando a uma situação positiva e ideal (hoje).

Especialistas: analisam o tema em pauta

- o presidente da Produtive, empresa de planejamento e transição de carreira, de Porto Alegre.

- o diretor da Michael Page, empresa de recrutamento, de São Paulo. - o sócio-gerente da empresa de recrutamento Asap, de São Paulo.

Os especialistas conferem o tom educativo e legitimado do texto, que irá se manifestar no interdiscurso.

Interdiscursividade

A reportagem trabalha na esquematização erro-dica-exemplo, explicitando erros – na maioria dos casos, cometidos pelos empregados, ilustrados com exemplos por meio das fontes testemunhais e resolvidos com as dicas das fontes especializadas. Um exemplo: “De acordo com a Produtive, a reputação negativa da empresa é o segundo motivo mais alegado para a saída dos funcionários (...). Então, para saber como uma companhia é vista no mercado, busque notícias e relatórios financeiros (...)” (p. 62).

Isso confere à reportagem uma aproximação com o gênero dos manuais prescritivos de autoajuda, em que a receita do “faça você mesmo” ou “o que todo o mundo deve fazer ou saber antes de...”. Essa característica está em trechos como:

“Tarefas preliminares – cinco tarefas que todo profissional deve fazer antes de aceitar um emprego” (p. 62, título do quadro).

Atrelado ao tema da seleção há vários outros que são trazidos transversalmente. Um deles é a ativação das redes sociais, tanto pessoais quanto na internet (LinkedIn e Facebook são as redes mais utilizadas na atualidade). “Não hesite em pesquisar em redes sociais e contatar funcionários e ex-funcionários. O LinkedIn, por exemplo, pode ajudá-lo a descobrir pessoas que já trabalharam na

companhia ou que conhecem um atual funcionário” (p. 62). Conforme discutido, as

redes sociais estão amplamente ligadas à empregabilidade do indivíduo, ao seu acesso e mobilidade no mercado de trabalho. As redes são, portanto, sintomáticas para o entendimento dos novos valores capitalistas (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009).

Figuras de linguagem

A metáfora que aparece em três fragmentos, incluindo a manchete, é a comparação implícita entre uma empresa e uma roubada, gíria que designa algo ruim, conforme atestamos nos trechos: “Evite roubadas” (p. 62), “A empresa era, em resumo, uma roubada” (p. 62) e “Para quem recebe um convite de emprego, o desafio é detectar roubadas antes de aceitá-lo” (p. 62).

Outra metáfora compara o processo de recrutamento a um relacionamento amoroso, o que também indica um tom eufemístico: “(...) o momento da seleção é quando a companhia se vende e faz seu jogo de conquista” (p. 62). Mais uma vez, percebe-se a inversão de uma situação na qual quem mais precisa é o indivíduo, portanto, este passa a ser o principal agente no processo de obtenção de uma vaga. Uma figura que chama atenção é o eufemismo da palavra “desafio”, que substitui palavras mais fortes como “problema” ou “dificuldade”. Estes são os trechos dessa ocorrência: “Para quem recebe um convite de emprego, o desafio é detectar roubadas antes de aceitá-lo” (p. 62) e “‘Na ânsia de pegar um projeto diferente, deixei de avaliar itens importantes para mim’, afirma Flávio. O desafio foi aceitar que não havia feito a escolha certa” (p. 63). A palavra desafio também possui um eixo

metafórico, uma vez que pertence ao campo semântico das lutas, competições e disputas.

Modalidade

A manchete “Evite roubadas” (p. 62, grifo nosso) já indica a modalização da

reportagem, que investe no modo verbal imperativo para dar dicas, conselhos e comandos ao leitor/trabalhador, mostrando como este deve proceder - “Como avaliar

uma empresa antes de aceitar um convite de emprego” (p. 62, linha fina).

A narrativa dos fatos (de insucesso) dá suporte para dicas: “Na reunião com os recrutadores, faça perguntas também” (p. 62); “Aproveite para verificar se há uma coerência no discurso dos envolvidos” (p. 62); “Questione (...)” (p. 62), “(...) busque

notícias e relatórios financeiros, cheque se há envolvimento com corrupção (...)” (p.

62).

Ao final, a modalização é mais atenuada, menos categórica que a manchete imperativa. “A empresa é boa? A resposta a essa pergunta dificilmente será sim

ou não. A questão é se ela serve para você neste momento da carreira” (p. 63) Mas

a oração seguinte retoma a dica final, a conclusão, que volta a ser imperativa. “Por isso, pergunte sempre mais” (p. 63, grifo nosso). Ou seja, por mais dicas que sejam

dadas, a incerteza é a tônica, e deve ser solucionada pelo profissional. Se houver insucesso no processo, a culpa será do profissional, que não buscou informações suficientes sobre a empresa.

Ethos

Ao iniciar a análise pela abertura da matéria (uma descrição visual), delineia- se um ethos narrador, contador de histórias, preocupado em ambientar o leitor no clima e no assunto a ser tratado. É aquele que observa a experiência das pessoas e aprende (ou ensina) a partir delas.

O ethos se posiciona como um narrador-observador, que conta as experiências sem nelas interferir, e dá espaço para o jogo de vozes das diversas fontes. Com isso, sua imagem é mais “apagada” uma vez que ele não interfere diretamente com sua opinião, mas repete, a partir do discurso indireto, aquilo que o outro diz sobre o assunto. Nessa etapa da composição discursiva, portanto, o ethos tem uma postura de afastamento, deixando os seus rastros apenas ao inserir a fala do outro.

O comportamento do ethos irá se modificar, contudo, ao dar inúmeros conselhos, valendo-se da assertividade (conforme verificamos na modalização) e do modo imperativo como forma de levar o leitor a uma ação. O ethos se projeta como um professor de gestão, que aponta os caminhos, que sabe lidar com as situações.

“Se houver encontros com diferentes profissionais durante o processo, aproveite para verificar se há uma coerência no discurso dos envolvidos” (p. 62) e “E, em todas as conversas, avalie se o discurso das pessoas tem afinidade com seus valores e hábitos profissionais e pessoais” (p. 62).

Campo lexical Profissionais Recrutadores Funcionário Fotografia

Na fotografia da página 63, em primeiro plano, aprece uma executiva, fonte da reportagem. Ela está em pé, com uma roupa formal, porém mais leve, na cor azul; ela sorri discretamente olhando para a câmera. Uma das mãos está no bolso e a outra está solta, alinhada à perna. A posição é suave e destaca sua figura, contraposta a um segundo plano desfocado em que aparece a arquitetura da Terceira Ponte, em Vila Velha, no Espírito Santo. A obra denota um ambiente urbano, uma intervenção planejada do homem sobre a natureza. A água do rio, ao fundo, concorda com a cor da roupa da executiva. A legenda da foto dá mais informações: “Sabrina Muller, da Carvajal: lição aprendida após uma avaliação ruim”

(p. 63). O texto passa o sentido de que após um erro seu, a executiva aprendeu a lição e pressupõe que agora ela esteja bem (uma vez que se encontra em uma empresa) e expõe um aspecto agradável na foto.

A imagem, portanto, reforça um tom já identificado nas reportagens da Você

S/A: quando o empregado está em uma empresa ruim, cabe a ele a

responsabilidade de mudar para outra empresa, uma vez que sua “escolha” foi incorreta. A culpabilização e a responsabilização da situação negativa é tendencialmente do empregado e não da empresa. A fórmula “cada uma deve aprender com seus erros” é, então, a tônica discursiva que a fotografia traz. Sabrina é um exemplo que deve ser seguido. E ela aprendeu e venceu com seu próprio erro, transformando uma dificuldade em uma motivação para superar essa dificuldade e procurar outras oportunidades.

Percebe-se, ainda, que o discurso passa pela questão da mobilidade como algo necessário e natural, contrariando o princípio da estabilidade da carreira em uma mesma empresa. O paradigma cultural da flexibilização está, portanto, norteando os valores disseminados pelo discurso da mídia.

Nas páginas 62 e 64, o quadro “Tarefas Preliminares” traz de maneira

didática, simplificada e resumida, quais os passos a serem seguidos para aprender a lição: pesquisar, encontrar, conferir, entrevistar e concluir. Cada ícone tem figuras

genéricas e quebram o padrão predominante na revista, com cores diversas e contrastantes (rosa, amarelo, azul, laranja e preto). Pelo discurso do quadro, mais uma vez, cabe ao candidato a responsabilidade de conseguir um emprego. Pressupõe-se um contexto socioeconômico no qual várias empresas estão à disposição do candidato e que, na verdade, quem as seleciona é o empregado. Isso fica atestado em trechos como: “Cinco tarefas que todo profissional deve fazer antes de aceitar um emprego” (p. 62) e “No momento da entrevista de emprego, faça perguntas também” (p. 63).