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Reportagem 8 "Matemática, emprego e teoria dos jogos" (Ed.176, p 72-75)

4 ANÁLISE DO DISCURSO E CULTURA ORGANIZACIONAL

4.2 Formação discursiva, formação ideológica e sujeito

Quando traçamos um determinado período na história, de tempo e espaço, com características próprias, emerge para a Análise do Discurso o que chamamos de formação discursiva, no qual o discurso nasce e se realiza.

A formação discursiva é uma importante categoria da Análise do Discurso e define-se como “aquilo que numa formação ideológica dada – ou seja, a partir de uma posição dada em uma conjuntura sócio-histórica dada – determina o que pode e deve ser dito” (ORLANDI, 2002, p. 43). Trata-se do parâmetro daquilo que se pode dizer discursivamente dentro de um determinado contexto econômico, social e histórico. “As FDs são posicionadas em complexos de FDs relacionadas referidas

como ‘interdiscurso’, e os sentidos específicos de uma FD são determinados ‘de fora’ por sua relação com outras no interdiscurso” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 53).

A formação discursiva se insere em uma formação social (capitalista) e está atrelada à formação ideológica, entendendo-se a ideologia não como ideias, mas como práticas. É na FD que se dá a constituição do sentido (PÊCHEUX, 1988). A Análise do Discurso inglesa busca compreender as “práticas discursivas que constroem as várias ordens sociais vigentes e (...) as formações discursivas que engendram as relações de poder, as representações e identidades sociais e os sistemas de conhecimentos e crença (...)” (MELO, 2009, p. 9).

Chamaremos, então, de formação discursiva aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa etc.) (PÊCHEUX, 1988, 160).

Considerando a formação discursiva atual, o discurso adotado pela mídia evita o termo trabalhador, sendo mais comuns os usos de “colaborador” ou “funcionário”. O emprego desses termos em detrimento daquele indica uma relação importante entre indivíduo e a linguagem. O discurso sobre o trabalho e do trabalho, tal como outros discursos, são suscetíveis a mutações históricas que podem ser apreendidas na língua. Assim, língua e história estão intrinsecamente ligadas. Por exemplo, no enunciado “Os empregados devem atender aos seus patrões” denota- se uma formação discursiva da luta de classes. Se tivermos outro enunciado tal como “Os colaboradores são motivados a seguirem o seu líder”, já nos referimos a uma formação discursiva distinta, da competição individual. As duas frases, portanto, recortam o mundo a partir de formações discursivas distintas no interior de uma mesma formação ideológica (capitalista).

O discurso da cultura organizacional voltada ao sucesso do indivíduo busca elidir a luta de classes polarizada (patrão x trabalhador). Daí cria-se uma cisão entre o trabalhador e o executivo, ainda que este também seja um trabalhador, porém, em um grau menor de subordinação. Nesse processo, o indivíduo (executivo ou subordinado) passa a se identificar ou, melhor, passa a se subjetivar em um lugar discursivo, assumindo um discurso alinhado a Você S/A. O título da publicação, portanto, sintetiza esse tratamento temático. O trabalhador, em diversos graus hierárquicos, passa a se identificar mais consigo enquanto indivíduo em uma

competição pelo sucesso do que por um indivíduo pertencente a uma classe social inserido no conflito capital x trabalho.

Para compreendermos os sentidos produzidos a partir do discurso da mídia acerca da cultura do trabalho contemporânea, é preciso considerar a formação discursiva na qual a revista e seus discursos estão relacionados.

No entanto, mesmo inseridos em uma determinada formação discursiva, existem “irregularidades” na textura discursiva. Os discursos não são homogêneos uma vez que estão inseridos em uma formação discursiva (FD) que traz resquícios de outras épocas, circunstâncias, falas, acontecimentos, ideias etc. As formações discursivas revelam as formações ideológicas que as integram e delimitam o que pode ou não ser dito em uma dada situação conjuntural.

Por isso, a formação discursiva segue o primado do interdiscurso, isto é, o entrelaçamento de diferentes discursos. “A FD é marcada por regras de controle social e é sempre formada por outras FDs, o que já anuncia a noção de heterogeneidade do discurso, que passa conceber a função interdiscursiva como cerne do funcionamento da linguagem” (MELO, 2009, p. 8). Para verificar essas relações entre os discursos olha-se para a materialidade linguística (como léxico, construções sintáticas, modalidades enunciativas). Said (1977, tradução nossa) aponta uma forma de estudo denominada local estratégico, cuja definição aproxima- se, na Análise do Discurso, do posicionamento, noção esta relacionada à formação discursiva. Trata-se de uma maneira de descrever a posição do autor em um texto. A formação estratégica é outra noção trazida e possibilita a análise da relação entre textos e a maneira na qual grupos de textos, tipos de textos, até mesmo gêneros textuais adquirem densidade e poder referencial entre si e também na cultura em um segundo momento. Traduzido no texto, essa posição (location) inclui tipos de voz de narrativa que se adota, tipo de estrutura, tipos de imagens, temas e motivos que circulam no texto.

A partir de sua identificação com a formação discursiva que o domina (isto é, que o constitui) é que o indivíduo se transforma (PÊCHEUX, 1988). Trata-se, pois, do processo de assujeitamento. Na visão de Fairclough (2001), o sujeito ora se conforma à formação discursiva, ora resiste a elas através da ressignificação.

A noção de sujeito trabalhada coincide com a própria noção do indivíduo, que segue uma “autonomia controlada” ou uma “liberdade sob pressão”. Não há como

posicionar o sujeito/indivíduo em um dos polos, mas sim entendê-lo como um ente que transita entre esses polos.

A noção de assujeitamento que buscamos está relacionada aos mecanismos ideológicos, sem deixar de lado a dimensão de negociação. “A noção de assujeitamento se presta, por vezes, a certas confusões. Assujeitar-se é a condição indispensável para ser sujeito. Ser assujeitado significa antes de tudo ser alçado à condição de sujeito, capaz de compreender, produzir e interpretar sentidos”. (FERREIRA, 2003, p. 43). O assujeitamento é imposto-dissimulado sob a aparência da autonomia, isto é, da estrutura discursiva da forma-sujeito (isto é, o efeito representado por um sujeito). Ao reconhecer-se como sujeito, este se “esquece” das determinações que o colocaram no lugar que ele ocupa (PÊCHEUX, 1988). Segundo Pêcheux, a forma-sujeito não é um ponto de partida, mas sim um efeito (GUILBERT, 2013).

O indivíduo-sujeito busca e, ao mesmo tempo, cria sua identidade no trabalho. “Nem a hipertrofia do sujeito cheio de vontades e intenções, nem o total assujeitamento e a determinação de mão única. O sujeito assim como é afetado pela formação discursiva na qual se inscreve, também a afeta e determina em seu dizer” (FERREIRA, 2003, p. 43).

No âmbito jornalístico das grandes empresas de comunicação, as formações discursiva e ideológica são determinadas de maneira explícita por meio da linha editorial. É nela que estão explicitados o que interessa ao veículo desde a temática até o tratamento dessa temática, quais pontos serão aprofundados, quais serão editados ou até mesmo silenciados.

A linha editorial, por sua vez, alinha-se aos preceitos de controle das ferramentas de gestão, que buscam o consenso de maneira bastante atenuada. Vejamos o trecho de um livro de administração, ao abordar como as discrepâncias entre o papel do trabalhador e a percepção do trabalhador em relação ao seu papel:

Ações corretivas, em um primeiro momento, devem ser sucedidas em ações preventivas que visem reverter os valores sociais circulantes, possibilitando o surgimento de representações sociais posicionadas com as tendências contemporâneas do papel do trabalhador diante do trabalho, ou seja: postura proativa, iniciativa, empreendedorismo habilidade para lidar com as ambiguidades, flexibilidade e aumento de sua autoestima, o que o tornará mais confiante e disposto a assumir os desafios que surgem continuamente (...) (KANAANE, 1999, p. 108).

Vejamos a seguir quais categorias serão consideradas a fim de identificarmos as heterogeneidades discursivas da mídia no que tange à cultura contemporânea do trabalho.